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    GIZELE G. PARREIRA ELIAS

    MATTHEW LIPMAN E A

    FILOSOFIA PARA CRIANAS

    UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS

    MESTRADO EM EDUCAO

    GOINIA - 2005

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    GIZELE G. PARREIRA ELIAS

    MATTHEW LIPMAN E A

    FILOSOFIA PARA CRIANAS

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora do Mestrado em Educao da

    Universidade Catlica de Gois como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de

    Mestre em Educao, sob a orientao do

    professor Dr. Jos Ternes.

    UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS

    MESTRADO EM EDUCAO

    GOINIA - 2005

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    Banca Examinadora

    ___________________________________

    Prof. Dr. Jos Ternes

    - Presidente -

    ___________________________________

    Prof Dr Maria Helena de Oliveira Brito

    - Universidade Catlica de Gois -

    ___________________________________

    Prof. Dr. Marcos Antnio Lorieri

    - Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo -

    Data: __________________

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    A Jordana,

    grandiosa paixo.

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    ... pois fazer filosofia no uma questo de idades, masde habilidades em refletir escrupulosa e corajosamentesobre o que se considera importante.

    Matthew Lipman

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    RESUMO

    Este estudo busca uma reflexo sistematizada da proposta existente no programade Filosofia para Crianas de Matthew Lipman e sua aluso na formaoeducacional dos infantes desde os primeiros anos escolares. Para tanto,examinamos as consideraes a respeito da criana, buscando em tericos de

    diferentes pocas, sustentaes que nos permitiram construir o conceito de infncia.Investigamos tambm, os conceitos de educao e o de pensar que se entrecruzamao analisarmos uma proposta cuja finalidade iniciar as crianas na Filosofia. Istoposto, analisamos os pressupostos tericos e metodolgicos do programa deFilosofia para Crianas suscitando os elementos constitutivos de sua estruturao,sua legitimidade e suas implicaes numa Educao para o Pensar. Em seguidapontuamos sobre os aspectos comuns s crianas e aos filsofos conferindopossibilidades de aproximao. Sendo a filosofia uma rea do conhecimentoessencial para a formao do pensamento reflexivo, e considerando a importnciade pensar melhor os elementos presentes na proposta elaborada por MatthewLipman, realizamos uma leitura da Filosofia subjacente nos pressupostos destepensador. Nas consideraes finais, buscamos os limites e as possibilidades da

    proposta norte-americana de Filosofia para Crianas. Para tanto, analisamos o papeldo professor e do sistema educacional frente a uma proposta de educao para opensar, propondo uma interlocuo com o filsofo francs, Gaston Bachelard, a fimde articular elementos que corroboram a necessidade de uma postura diferenciadados educadores no sentido no de ensinar coisas, mas de ensinar a pensar.

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    ABSTRACT

    This research tries to achieve a systematic reflection of the purpose of MatthewLipmans Philosophy program for Children and its allusion in the educationalformation of the infants since the first school years. For this, we examined theconsiderations about the child looking for, in the theorists from different times,support that permitted us to construct the concept of childhood. We also examinedthe concepts of education and of the thought that rise when we analyze a purposewhose objective is to initiate children to the Philosophy. Then, when we analyze the

    theoretical and methodological presuppositions of the Philosophy program forChildren raising the constitutive elements of its structure, its legitimacy and itsimplications in an education to think. After this, we reflect about the common aspectsto the children and to the philosophers creating possibilities for them to stay together.Since the Philosophy is a branch of knowledge that is essential to the formation ofthe rational thoughts and, considering the importance of thinking better theelements that appear in the purpose, elaborated by Matthew Lipman, we also did areading of the subjacent Philosophy in the presuppositions of this thinker. At the finalconsiderations, we looked for the limits and the possibilities of the north-americanpurpose of Philosophy for Children. For this, we analyzed the role the teacher playsand the educational system presented in the lipmanian program, making the purposeof a conversation with a theoretical perspective, which corroborates the necessity ofa different position of the educators in the sense of not teach things, but teach how tothink.

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    SUMRIO

    INTRODUO 10

    CAPTULO 1 - O CONCEITO DE INFNCIA 25

    1.1 PLATO: DO INTERESSE POLTICO E DA INFNCIA 28

    1.2 ARIS: DA INVENO DA INFNCIA 34

    1.3 ROUSSEAU: DO CUIDADO COM O INFANTE 36

    1.4 FREUD: DA EMOO NA INFNCIA 42

    1.5 PIAGET: DA GNESE COGNITIVA E A INFNCIA 46

    1.6 VYGOTSKY: DA CONSTRUO SOCIAL DA INFNCIA 49

    CAPTULO 2 - A EDUCAO, O PENSAR E A FILOSOFIA PARA CRIANAS 56

    2.1 DO SENTIDO DE EDUCAR 56

    2.2 DO PENSADOR QUE LEVA A FILOSOFIA S CRIANAS 62

    2.3 DAS DIFERENAS DO PENSAR 67

    2.4 DO PENSAMENTO DE ORDEM SUPERIOR E A FILOSOFIA 75

    2.5 DAS HABILIDADES DE PENSAMENTO 84

    2.6 DA COMUNIDADE DE INVESTIGAO 902.7 DAS NOVELAS FILOSFICAS 97

    CAPTULO 3 - CONSIDERAES FINAIS - INFINITAS INTERPRETAES 105

    3.1 DAS SIMILITUDES ENTRE A CRIANA E O FILSOFO 106

    3.2 DOS LIMITES E DAS POSSIBILIDADES DA FILOSOFIA PARA CRIANAS 115

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    BIBLIOGRAFIA 133

    ANEXOS 144

    Anexo A- MATERIAL DIDTICO PROGRAMA DE FILOSOFIA PARA CRIANAS,

    ORIGINAL EM INGLS 145

    Anexo B- PROGRAMA DE FILOSOFIA PARA CRIANAS, TRADUO EM

    PORTUGUS 146

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    INTRODUO

    Este estudo origina-se de um incansvel empenho, j h alguns anos, para

    ampliar nossa compreenso em relao aos aspectos envolvidos no processo de

    aprendizagem infantil, e importncia de tornar a sala de aula um ambiente

    significativo o suficiente para beneficiar o desenvolvimento cognitivo das crianas,

    por meio da mediao do professor.

    Trabalhando em instituies escolares, tanto de Educao Infantil quanto do

    Ensino Fundamental, houve algo que sempre nos chamou ateno: a dificuldade

    apresentada por muitos alunos para assimilar o contedo de modo significativo e

    consequentemente, eficiente. A constante participao dentro do contexto escolar

    possibilitou-nos observar que muitas crianas, na verdade, apresentam dificuldades

    para interagir com espontaneidade junto aos professores dentro da sala de aula, ou

    seja, no tm liberdade para perguntar, o que muitas vezes, torna difcil a apreenso

    do contedo em si.

    Alunos, cujos mestres no se dispem a uma educao em que o processo

    de ensino e aprendizagem seja diferente da tradicional relao eu te ensino e voc

    aprende no conseguem apropriar-se autenticamente daquilo que lhes oferecido

    em termos cognitivos.

    Segundo Wartofsky (2000, p. 111),

    As crianas no aprendem sozinhas; da a educao. Mas com freqncia oque oferecido como educao no passa de doutrinao, mesmo quandoas doutrinas so liberais e cientficas. E doutrinao no verdadeiraaprendizagem. Uma criana doutrinada que no possusse contedocognitivo algum alm da doutrina predominante, por mais esclarecida eavanada que essa doutrina pudesse ser, no teria se desenvolvidocognitivamente.

    A distncia imposta nesse tipo de ao educacional tira da criana o desejo

    pelo saber, pelo conhecer, pelo fazer diferente. A triste educao bancria,

    assinalada por Paulo Freire, afasta o aluno daquilo que pode ser uma afianada

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    motivao para seu processo cognitivo, dentro da escola. Visto que, a mesma o

    priva da possibilidade de se aproximar de seu mestre e estabelecer com ele a

    interao necessria ao seu processo educativo para a fluidez da sua

    aprendizagem.

    Quando pensamos em interao entre criana e professor, colocamos nocampo da nossa intencionalidade, a possibilidade de educao escolar cujo ensino e

    aprendizagem, sejam alicerados no dilogo genuno1 aspecto por ns

    compreendido, como elemento fundamental na conexo da criana no somente

    com a figura do professor, mas tambm com seu desenvolvimento cognitivo. A

    educao escolar com o suporte do dilogo genuno permite ao aluno liberdade e

    reconhecimento daquilo que ele verdadeiramente , o que contribui sobremaneira no

    pilar de sua aprendizagem.

    Assim, diante do exposto sobre uma educao pautada no dilogo, importante relatarmos que, seguindo os passos que nos conduziram em direo ao

    processo dialgico da aprendizagem, presenciamos numa sala de Educao Infantil

    uma aula estruturada dentro dessa perspectiva. Entrementes, os alunos eram

    questionados, da mesma forma que experimentavam a liberdade para questionar a

    respeito de temas diversos, tanto trazidos pela professora, quanto pelas prprias

    crianas. A seguir, davam incio a sesses de conversas interessantssimas, onde

    todos podiam ouvir o outro e falar com eloqncia. Aquilo tudo, pareceu-nos muito

    original e despertou intensamente a nossa curiosidade.

    Ao questionarmos a professora responsvel por tal atividade, soubemos

    tratar-se de uma aula de Filosofia. Qual no foi, ento, nosso espanto diante da

    informao recebida. Entretanto, o espanto no nos esquivou da experincia que

    tivemos ao lado daquelas crianas ainda to pequenas para filosofar. Como isso era

    possvel? s propiciar a elas! Foi a resposta da professora nossa pergunta. E

    isto nos bastou para que comessemos a nos interessar pelo pensamento

    filosfico das crianas.

    1 Entendemos por genuno puro, verdadeiro e isento de intenes que tiram a criana do focoprincipal de seu mestre. No pretendemos nos estender a esse respeito, por no se tratar do focoprincipal a ser apresentado neste nosso estudo. Fazemos apenas uma referncia com base em umoutro estudo por ns realizado, a saber, A relao dialgica como instrumento facilitador do processoensino-aprendizagem na educao infantil (ELIAS, 2000). Trata-se de um trabalho de concluso docurso de Especializao em Educao Infantil, da FE da UFG, no qual apontamos as possibilidadesde uma relao entre professores e alunos, assentada na relao dialgica proposta por MartinBuber. Ressaltamos ainda que, o trmino desse trabalho marca o surgimento do nosso interesse peloobjeto de estudo que analisaremos na dissertao que ora damos incio.

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    profissionais da educao e conquistando espao, inclusive, na mdia americana.

    Em 1991, a teoria do filsofo americano tornou-se tema de um programa de

    televiso da BBC, o Transformers.

    No Brasil, o programa de Matthew Lipman chegou em 1980, por intermdio

    de Catherine Young Silva3

    . Graduada em Filosofia pela USP e pela PUC SP, afilsofa americana naturalizada brasileira, cursou o mestrado em Filosofia para

    Crianas no IAPC, USA. Em 1985, ela juntamente com outros professores de

    Filosofia interessados no programa de FpC, fundaram o Centro Brasileiro de

    Filosofia para Crianas CBFC, com sede na cidade de So Paulo. Segundo Walter

    Omar Kohan (1999), o Brasil tem um lugar de destaque entre os pases que

    trabalham com a indicao do filsofo americano, dada a significativa divulgao e

    adequada institucionalizao da proposta em nosso pas4.

    Atualmente, existem centros regionais em Belo Horizonte, Recife, Campinas,Cuiab, Curitiba, Florianpolis, Petrpolis, Ribeiro Preto, So Paulo e So Lus do

    Maranho somando um total de mais de 9365 escolas cadastradas pelo CBFC,

    trabalhando com o programa de Matthew Lipman no Brasil.

    Nossa pesquisa nos revelou que a originalidade lipmaniana, de certa forma,

    provoca uma diviso na comunidade educacional: interesse em uns, desconfiana

    em outros e impacto em todos. Todavia, esta situao no impediu Lipman no

    avanar de sua idia a respeito da aproximao entre as crianas e a Filosofia.

    Na apresentao do livro Filosofia para Crianas: a tentativa pioneira de

    Mathew Lipman, Kohan (1999a, p. 9) assevera que:

    Mathew Lipman se incomodava com a forma como os filsofos tinhamfechado suas portas para as crianas. Considerou este impedimentoinsensvel injusto. Lanou a idia de que as crianas podem e merecem teracesso filosofia. No apenas lanou a idia, mas criou uma instituio edesenvolveu materiais e metodologia para que esta idia fosse umarealidade.

    Ainda sobre isso, o prprio Lipman (1999a, p. 22) assegura: Eu no tinha

    dvidas que as crianas pensavam to naturalmente como falavam e respiravam.3 De acordo com Kohan (1998, p. 100), Catherine Young Silva foi uma destacada figura domovimento de filosofia para crianas, no s no Brasil mas tambm internacionalmente. [...] faleceuem 1993 [...].4 Segundo Trentin (2001), inicialmente, a implementao do programa de filosofia para crianas foimaior na rede particular de ensino, entretanto, contou tambm, com o apoio de rgos oficiaisestaduais e municipais; a saber, os estados de so Paulo, Paran e Santa Catarina incentivaram arealizao de experincias com o programa na rede pblica de ensino.5 Estes dados foram gentilmente fornecidos pela secretaria do Centro Brasileiro de Filosofia paraCrianas, por meio de correspondncia eletrnica, em maio de 2005.

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    programa de Filosofia para Crianas, outras seis novelas filosficas6, cada uma

    delas, destinada a idades e graus de escolaridade diferentes. So elas:

    Hospital de Bonecos e Geraldo destinados aos primeiros anos da Educao

    infantil, ambos trabalham a iniciao aos procedimentos da investigao

    filosfica; Elfie destinado Educao Infantil, trabalha a investigao filosfica em

    comunidade;

    Rebeca7 destinado Educao Infantil, trabalha o imaginrio infantil;

    Issao e Guga destinado s 1 e 2 srie do Ensino Fundamental, trabalha

    filosofia da natureza;

    Pimpa destinado 3 e 4 sries do Ensino Fundamental, trabalha o

    significado da linguagem e sua significao;

    Nous destinado 3 e 4 sries do Ensino Fundamental, trabalha a

    formao tica.

    Lusa destinado 8 srie do, trabalha tica e moral;

    Suki destinado ao Ensino Mdio, trabalha esttica;

    Mark destinado ao Ensino Mdio, trabalha Filosofia social e poltica.

    Sobre o programa apresentado acima Kohan (1998, p. 88) salienta que: Os

    romances apresentam em todos os casos, personagens modelo da mesma idade

    das crianas que os lem. Cada romance apresenta uma espinha dorsal de

    habilidades cognitivas que se aplicam a inmeros problemas filosficos.

    Segundo Lipman, essas habilidades quando desenvolvidas desde cedo,

    oferecem criana instrumentos essenciais para o desenvolvimento de sua

    racionalidade, e conseqentemente do pensar bem.

    Lorieri (2002), assim descreve as habilidades cognitivas postuladas por

    Lipman:

    6 Os romances Hospital de Bonecos (The Doll Hospitl) e Geraldo so de autoria de Ann MargaretSharp, colaboradora direta de Matthew Lipman, no tm traduo para o portugus. Nous, Suki eMark tambm no esto disponveis em portugus. A distribuio dos romances de acordo com assries escolares americanas se difere das brasileiras, em funo da subdiviso das sries no Brasilno ser igual a dos EUA. Ao final, em anexo disponibilizamos, para visualizao, o material quecompe o currculo de FpC no IAPC e no CBFC, bem como a distribuio dos romancesconformecada srie, desde os primeiros anos da Educao Infantil, no Brasil ou Early Childhood, nosEUA.7 O romance Rebeca de autoria de Ronald Reed (in memorian), colaborador de Lipman. No Brasil, oCBFC utiliza-o na Educao Infantil.

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    Habilidades de raciocnio permitem o conhecimento pelas inferncias ou

    concluses corretas que so feitas a partir de conhecimentos anteriores e que

    permitem manter a coerncia, preservando a verdade das idias e do

    discurso de cada um.

    Habilidades de formao de conceitos permitem analisar os conceitos eidentificar seus componentes, percebendo suas relaes, tornando-os

    instrumentos de compreenso.

    Habilidades de investigao esto associadas a execuo de mtodos

    cientficos ou com a busca de caminhos para se chegar as respostas ou s

    solues dos problemas.

    Habilidades de traduo so necessrias compreenso de discursos

    falados ou escritos permitindo aos ouvintes ou leitores, dizer com suas

    prprias palavras, o que ouviram ou leram preservando o significado.

    Na sala de aula, tais habilidades so trabalhadas por intermdio do que

    Lipman chama de comunidade de investigao, onde professores e alunos

    conversam de maneira articulada, a partir dos romances filosficos, deslocando seus

    pensamentos uns para os outros, dando incio a verdadeiras discusses, as quais

    estimulam o ato de pensar de modo organizado e coerente, ao mesmo tempo em

    que aprendem uns com os outros num verdadeiro dilogo investigativo. Este,

    segundo o Centro Mineiro de Filosofia para Crianas (CEMEP) um dos aspectos

    centrais do programa de Mathew Lipman no que diz respeito Educao para o

    Pensar. Segundo o CEMEP (2003, p. 7):

    O dilogo diferente da polmica, pois os interlocutores no buscam fazerprevalecer, a qualquer custo, seus pontos de vista e sim, buscam juntos aconstruo coletiva de um conhecimento maior sobre o tema em discusso.Os pontos de vistas individuais so submetidos ao exame crtico dosparceiros da comunidade de investigao e se somam ao esclarecimento dotema.

    Em sntese, a Filosofia para Crianas um programa de Educao para o

    Pensar, o qual busca desenvolver no mbito da sala de aula, desde a infncia,condies ou instrumentos do pensamento, denominadas habilidades cognitivas, por

    intermdio do dilogo investigativo, com uma metodologia especfica dentro da

    comunidade de investigao. Tudo isso, para alcanar o que Lipman chama: pensar

    bem. Porm, no somente pensar bem sobre o conhecimento cientfico, mas,

    tambm, construir significados culturaisavaliando-os, em vez de apenas receb-los.

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    Observamos em nossas pesquisas que a inteno de Lipman em implantar a

    Filosofia nos currculos escolares, visa, alm do pensar melhor, um objetivo mais

    amplo, o qual aponta para a construo de uma sociedade onde as pessoas vivam

    melhor, de modo mais justo e responsvel, pensando por si prprios. Por fim, uma

    sociedade onde as pessoas possam viver como cidados autnomos, constituindouma democracia.

    Lipman compreende a sociedade democrtica com muita proeminncia,

    tanto que, ao questionar a prtica educacional vigente no contexto escolar, o autor

    revela sua preocupao com a necessidade de currculos escolares cujos

    ensinamentos contemplem o essencial para que os alunos sejam educados na e

    para a democracia. Para o pensador norte-americano, organizar as salas de aulas

    de modo a privilegiar o dilogo investigativo, o caminho mais adequado para

    preservar o esprito inquisitivo das crianas, o que contribui de maneira significativapara a construo de um tipo de pensamento nas pessoas, cujos atributos lhes

    confirmem uma formao para a cidadania.

    Na obra A Filosofia vai escola (1990, p. 13), Lipman diz: a Filosofia

    oferece um frum, no qual as crianas podem descobrir por si mesmas, a relevncia

    para suas vidas, dos ideais que norteiam a vida das pessoas.

    Kohan (1998, p. 9) diz que afirmando-se pelo pensamento, a Filosofia antes

    abre do que fecha portas, justifica-se diante disso as palavras do terico sujeito

    dessa pesquisa: Talvez em nenhum outro lugar a Filosofia seja mais bem-vinda do

    que no incio da vida escolar, at agora um deserto de oportunidades perdidas

    (LIPMAN, 1990, p. 20).

    Ao afirmar a propsito do adequado lugar que a Filosofia deve ocupar no

    incio da educao escolar a infncia Lipman se coloca diante de enfrentamentos

    diversos a esse respeito. Tal posio do filsofo pode ser vista no captulo II, ainda

    da mesma obra: Para outros, a filosofia afigurou-se muito difcil s crianas ou muito

    frvola ou muito rida; alguns at acharam muito perigosa. O que havia com a

    filosofia para ocasionar essas apreenses? (1990, p. 28 e 29).

    Entretanto, segundo Lorieri8, Lipman no se desvia destes enfrentamentos.

    Ao contrrio, apresenta consideraes a favor do trabalho filosfico srio com

    crianas e jovens, no qual o objetivo, alm do desenvolvimento dos processos de

    8 Professor Lorieri foi um dos fundadores e coordenadores do CBFC, Centro Brasileiro de Filosofiapara Crianas. A citao apresentada se trata de comunicao pessoal.

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    ajuizamento e argumentao (que por si s no bastam), deve ser a busca

    constante da compreenso e produo de significados.

    As crianas deveriam adquirir a prtica em discutir os conceitos que elasconsideram importantes. Fazer com que discutam assuntos que lhes soindiferentes priva-as dos prazeres intrnsecos de se tornarem educadas eabastece a sociedade com futuros cidados que nem discutem o que lhes

    interessa nem se interessam pelo que discutem (LIPMAN, 1990, p. 31).

    Ao enfatizar a importncia de uma Educao para o Pensar, Lipman coloca

    a reflexo filosfica como recurso privilegiado para o pensar bem, isto , o pensar

    crtico, reflexivo e investigativo.

    Instigante e literalmente original, a proposta de Filosofia para Crianas de

    Mathew Lipman, j h algum tempo, vem sendo pesquisada por estudiosos

    interessados numa Educao para o Pensar. Em 1996, Walter Omar Kohan

    escreveu sua tese de doutoramento intitulada: Pensando la filosofia en la educacinde los nios, pela Universidad Iberoamericana do Mxico.

    Em seguida, tornou-se, no Brasil, o organizador da srie Filosofia na Escola,

    publicada pela Editora Vozes, sendo o volume I, A tentativa pioneira de Mathew

    Lipman. Tais obras constam de trabalhos de pesquisadores brasileiros, dentre

    outros, e do prprio Kohan, a respeito do programa de Lipman e a Filosofia com

    Crianas.

    Em Goinia, pela Faculdade de Educao da Universidade Federal de

    Gois, temos dois estudos realizados nesse mesmo intento. A saber, a dissertaode mestrado de Rita Mrcia Magalhes Furtado, em 2000, com o tema: Filosofia

    para Crianas9, e a tambmdissertao de mestrado do Professor Mardnio Pereira

    da Silva, em 2001, intitulada O Programa de Filosofia para Crianas de Mathew

    Lipman: um estudo crtico. Semelhante perspectiva referente ao programa de FpC,

    encontramos na tese de doutoramento de Ren Jos Tretin Silveira, intitulada A

    Filosofia vai Escola?Estudo do Programa de Filosofia para Crianas de Mathew

    Lipman, pela UNICAMP em 1998. Lembrando que esta pesquisa tornou-se o livro: A

    Filosofia vai escola?Em 2001, pela Editora Autores Associados.

    9 O estudo realizado por essa autora, inicialmente como pesquisa para sua dissertao de mestrado,tornou-se agora em 2005, um livro, publicado com o mesmo ttulo, pela Editora da UFG. Assim comoo de Rita Mrcia, inmeros outros estudos foram realizados, inicialmente como pesquisas demestrado ou doutorado, se tornando livros posteriormente, em outros estados do Brasil. Taispesquisas podem ser mais bem conferidas no site do Centro Brasileiro de Filosofia para crianas:www.cbfc.org.com.br.

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    Apesar de considerarmos a importncia desse tipo de pesquisa10, no sentido

    de explicitar e problematizar os pressupostos da teoria e suas implicaes numa

    Educao para o Pensar, o estudo que realizamos adota outro caminho. Buscamos

    desde o incio, uma minuciosa reflexo, no somente do programa proposto nos

    romances filosficos e nos respectivos manuais por Matthew Lipman, mas tambm,e principalmente, da sua fundamentao terica, para que possamos reunir os

    subsdios necessrios e ento compreender as postulaes lipmanianas, libertos de

    conceitos pr-estabelecidos, que podem nos desapropriar da apreenso de sua

    essncia.

    Como modo de pesquisar o que existe, Edmund Hurssel refere-se descrio exaustiva do fenmeno e aos invariantes detectados nasdiferentes descries, de modo que a reflexo sobre tais invariantes,baseada na inteligibilidade do que permitem compreender, nos conduzisse essncia do fenmeno investigado. E a essncia desvela isto que existe

    pelo modo que existe (BICUDO, 2000, p. 73),

    Postas estas questes, nos objetivamos ento, a uma fundamentao

    terica e metodolgica da proposta do filsofo e professor norte americano de iniciar

    as crianas no pensamento filosfico, investigando, analisando e interpretando os

    aspectos nela encontrados.

    Assim, preferimos pensar nosso objeto de estudo de modo sistematizado e

    com especfico rigor, apropriando-nos de uma investigao, na qual o uso de

    instrumentos metodolgicos necessrios pesquisa bibliogrfica, nos possibilitasse

    a organizao da pesquisa garantindo-nos o carter cientfico a que nos propomos

    para a mesma. Visto que, Os procedimentos metodolgicos esto a servio da

    funo epistmica, ou seja, s tm sentido se forem boas ferramentas para o

    exerccio do conhecimento bem construdo (SEVERINO, 2001, p. 13).

    De posse de tais colocaes verificamos adequar-se melhor investigao do

    tema em questo, a adoo da pesquisa qualitativa, pois de conformidade com

    CHIZZOTTI (2003, p. 79),

    A abordagem qualitativa parte do fundamento de que h uma relao dinmicaentre o mundo real e o sujeito, uma interdependncia viva entre o sujeito e oobjeto, um vnculo indissocivel entre o mundo objetivo e a subjetividade dosujeito. O conhecimento no se reduz a um rol de dados isolados, conectadospor uma teoria explicativa; o sujeito-observador parte integrante do processode conhecimento e interpreta os fenmenos, atribuindo-lhes um significado. Oobjeto no um dado inerte e neutro; est possudo de significados e relaesque sujeitos concretos criam em suas aes.

    10 Voltaremos a nos referir sobre a importncia da crtica no final desta introduo.

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    Assim, percebemos que em oposio ao mtodo experimental, a proposta da

    pesquisa qualitativa a descrio do objeto de estudo tal qual ele se mostra num

    dado contexto, possibilitando ao pesquisador considerar esse objeto numa

    perspectiva totalizadora, sem emitir sua crena, expectativa ou opinio, o

    pesquisador limita-se a registrar os fatos como so, a fim de elucidar seussignificados.

    Diante disso, a sistematizao necessria do objeto que nos intencionamos

    pesquisar tiveram nesse estudo, o suporte da pesquisa bibliogrfica, metodologia

    mais formal, que leva a um maior aprofundamento e conhecimento do material

    bibliogrfico existente e seu melhor aproveitamento para a fundamentao terica,

    quanto nas conseqentes concluses. Asseguramos-nos de nossa afirmao nas

    palavras de Gil (1996, p. 48),

    A pesquisa bibliogrfica desenvolvida a partir de material j explorado,constitudo principalmente de livros e artigos cientficos. Embora em quasetodos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, hpesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliogrficas.

    Ruiz (1996, p. 58) tambm aponta que: A pesquisa bibliogrfica consiste no

    exame desse manancial, para levantamento e anlise do que j se produziu sobre

    determinado assunto que assumimos como tema da pesquisa cientfica.

    Para tanto, inicialmente esquadrinhamos:

    Livros de leitura corrente;

    Livros de referncia (informativa e remissiva);

    Publicaes peridicas (jornais e revistas);

    Impressos diversos (artigos, palestras e entrevistas).

    Aps tais descries pudemos delinear as etapas do processo de

    investigao da proposta de Filosofia para Crianas de Mathew Lipman. No qual

    nossa finalidade foi:

    Fazer um levantamento do estado da arte existente sobre o tema em

    questo, analisando e selecionando o que mais contribui com o tema proposto em

    nossa pesquisa;

    Fazer um levantamento bibliogrfico das publicaes especficas do autor

    pesquisado, a fim de reunir dados relevantes que ampliem a apreenso da proposta

    lipmaniana;

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    Realizar as devidas leituras acerca do material selecionado como fonte de

    pesquisa bibliogrfica;

    Fazer uma leitura das novelas filosficas escritas por Lipman no seu

    programa de Filosofia para Crianas para conhecer na ntegra o material e a

    metodologia por ele apresentados; Realizar entrevistas com o autor pesquisado por intermdio de

    correspondncias eletrnicas, a fim de maiores esclarecimentos e compreenso do

    objeto pesquisado11.

    Realizar entrevistas com autores e pesquisadores brasileiros que tm o

    programa lipmaniano como objeto de estudo 12;

    Assistir as fitas VHS editadas pelo Centro Brasileiro de Filosofia para

    Crianas, contendo entrevistas com Mathew Lipman e seus colaboradores mais

    diretos, alm da apresentao do seu programa e das novelas filosficas;

    Participar dos cursos de capacitao dos professores para utilizao em

    sala de aula do material didtico e metodologia especfica do Programa de Filosofia

    para Crianas Educao para o Pensar, oferecido pelo CBFC.

    Discutir e rever o material bibliogrfico selecionado como fonte de

    pesquisa, bem como os passos a seguir, com o professor responsvel pela

    orientao do nosso estudo.

    O transcorrer de nossas leituras evidenciou-nos, porm, a necessidade de

    uma reflexo acerca de outros conceitos antes de adentrarmos propriamente, na

    teoria de Matthew Lipman. Dessa forma, demos incio elaborao da nossa

    dissertao recorrendo leituras que nos permitiram um percurso bibliogrfico que

    nos fundamentasse, primeiramente, sobre o conceito de infncia.

    Tendo sido nosso alvo analisar uma proposta que sugere a ampliao das

    possibilidades de transformao do pensar da criana, foi essencialmente

    necessria, a compreenso do conceito que envolve o infante. Buscamos, ento,

    autores clssicos e suas respectivas teorias sobre a infncia, as quais sustentaram

    11 O autor vive hoje em Nova Jersey EUA, onde participa como professor Snior do Institute for theAdvancement of Philosophy for Children, na Universidade de Montclair. Em captulos adiante,explanaremos pormenorizadamente a biografia de Lipman.12 Espalhado pelo mundo inteiro desde 1976, e tendo atualmente 50 pases envolvidos neste projeto,o Brasil o pas que mais abarca pesquisadores interessados no programa lipmaniano de Filosofiapara Crianas.

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    potencialidades da natureza como as aes de outros agentes (WARTOFSKY,

    2000, p. 89).

    Dessa forma, adentramos sob a luz de outras reas do conhecimento, o

    universo da curiosidade e da facilidade da criana para aprender. Nosso intento foi o

    de buscar, por meio de uma descrio sistematizada, a gnese do esprito inquisitivoe da potencialidade infantil, alm de verificar aspectos sobremaneira importantes,

    apontados por diversos pensadores simpatizantes do trabalho com Filosofia para

    crianas, como pontos propiciadores do encontro entre o infante e o filsofo. Para

    tanto, recorremos Psicologia experimental russa, Neurocincia, alm da prpria

    Filosofia. Assim o fizemos, por entender necessrio o respaldo de outras reas para

    investigarmos, de modo objetivo, a respeito de aspectos caracteristicamente comuns

    aos infantes e aos filsofos.

    Um sinal admirvel de que o ser humano encontra em si fonte de suareflexo filosfica est nas perguntas das crianas. Ouvem-sefrequentemente de seus lbios as palavras cujo sentido mergulhadiretamente nas profundezas filosficas. Eis alguns exemplos: um diz comespanto: tento sempre pensar que sou um outro, e eu sou, apesar disso,sempre eu. Ele atinge assim ao que constitui a origem de toda certeza, aconscincia do ser no conhecimento de si. Ele permanece tolhido diante doenigma do eu, este enigma que nada pode resolv-lo. Ele estaciona a,diante deste limite, ele interroga. Um outro que escutava a histria dagnese: no comeo Deus criou o cu e a terra, logo perguntou: que haviaento antes do comeo? Ele descobrira assim que as questes seengendram at o infinito, que o entendimento no conhece limites em suasinvestigaes e que, para ele, no existe resposta verdadeiramenteconcludente. (JASPERS, 1984, p. 385).

    Partindo do pressuposto da existncia de tal semelhana, demos incio

    jornada final desta pesquisa, na qual nosso intento foi investigar os aspectos que

    apontam para as possibilidades e tambm para os limites da proposta de Matthew

    Lipman de iniciar as crianas na Filosofia.

    Para tanto, propomos uma interlocuo com o filsofo Gaston Bachelard a

    fim de analisamos a importncia de uma mudana do papel do professor e do

    sistema educacional frente a uma proposta de educao para o pensar, articulando

    elementos que apresentam pontos de convergncia entre a teoria de Lipman e osprincpios bachelardianos. Isto posto, tecemos consideraes sobre os impactos e

    as adeses experimentadas pelo programa FpC, na perspectiva de compreend-las

    por meio de uma investigao desnuda de preconceitos para que pudssemos

    chegar essncia da proposta lipmaniana.

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    O que, no entanto, no nos redimiu de um olhar alm das aparncias, ou

    seja, de um olhar filosfico que se deslumbrou inicialmente, mas, em seguida, se

    inquietou e realizou indagaes. Afinal, nosso intento para essa pesquisa foi o de

    uma reflexo autntica13 da proposta de Filosofia para Crianas, de modo a

    descrev-la, desde sua fundamentao terica at sua metodologia, despidos dequalquer a priori, em busca do significado da sua realidade, isto , da sua essncia.

    No se pode separar a essncia e o significado da coisa-em-si: o queaparece ! E como aparece tal . Os significados, diria Aristteles, estonas sombras tambm; ou melhor, a figura to transparente que no fazsombra. A realidade est nas coisas, so elas que detm um significado emsi(PETRELLI, 2003, p. 33).

    Apreciar a proposta de Mathew Lipman FpC sob a luz do prprio

    pensamento filosfico, nos indicou um adequado caminho para que pudssemos

    examinar os aspectos de sua aplicao, de seu propsito e de suas implicaes,

    atingindo os seus limites e as suas possibilidades.

    Todo esse intento consistiu para ns, num grande desafio.

    13 Utilizamos o adjetivo autntico por entend-lo sinnimo de fundamentado, aprofundado, enraizadoenfim. Nossa intencionalidade almeja uma reflexo do todo, e no somente de partes que constituemesse todo.

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    CAPTULO 1

    OS CONCEITOS DE INFNCIA

    Ao nos interessamos pela proposta de FpC

    14

    de Matthew Lipman elegendo-a como alvo principal de nossas reflexes, no pretendemos nenhuma apologia

    acerca de um modelo de educao para o pensar com crianas, via Filosofia.

    Mesmo porque, antes de perguntar sobre a viabilidade disso, entendemos que

    preciso pensar no s o programa de FpC, mas toda a proposta que o sustenta,

    buscando um estudo bibliogrfico aprofundado o bastante, para que possamos

    compreender sua idia e seu valor, ou seja, v-lo naquilo que verdadeiramente , e

    assim, poder chegar sua essncia.

    Antes, porm, necessrio voltarmos o olhar a um outro aspecto importantena investigao de uma proposta com um programa especfico para iniciar crianas

    na Filosofia. Referimo-nos compreenso do conceito de infncia. Afinal, a ela

    que nos reportamos quando nos prontificamos a estudar o intento lipmaniano de

    FpC, por se tratar de um tema que inevitavelmente entrecruza-se com outro.

    No h como falar de Filosofia com crianas sem nos remetermos, antes, ao

    conceito de infncia.

    Ao encarregarmo-nos dessa tarefa, constatamos a diversidade de campos

    ou reas do conhecimento que tm colocado a partir do sculo XX, a infncia comocentro de suas atenes e/ou inquietaes. Todavia, diante da preocupao de no

    nos distanciarmos do objetivo proposto em nossa pesquisa, concentramos nossos

    esforos sobre trs reas especficas, a fim de pensar o conceito de infncia. A

    saber: a Filosofia, a Histria, e a Psicologia.

    14 Programa de Filosofia para Crianas.

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    Assim posto, entendemos que preciso dentro dos campos escolhidos,

    uma reflexo que nos aponte aspectos importantes, os quais ao longo da histria da

    humanidade mesmo antes do sculo XX cooperaram para a especificao deste

    conceito. Para tanto, consideramos imprescindvel uma volta ao passado, para

    delinear o panorama histrico15

    que de certo modo, envolveu a infncia. Voltar opensamento para o que, grosso modo, parece definido e certo, a fim de refletir e

    poder conhecer teorias que sustentaram uma poca, o primeiro passo para

    buscarmos seu significado e entendermos no tempo presente, esse conceito.

    Iniciamos pois, nossas reflexes pelo campo da Filosofia, em que pudemos

    observar a similaridade entre alguns estudiosos ao afirmarem que na poca clssica

    dos grandes pensadores, pouco se discutiu sobre questes particulares da infncia,

    visto ser reduzido o nmero de referncias nas obras daquela poca, que apontam

    individualmente para o tema em questo. Isto mostra de certo modo, segundoKohan e Kennedy o desinteresse dos filsofos pela infncia. Desinteresse este,

    que nos chama ateno. Ainda de conformidade com os autores:

    A filosofia da infncia tem uns vinte anos de vida. Parece pouco tempo nahistria toda da humanidade. Mas assim mesmo. Os filsofos no tm sepreocupado sistematicamente com a infncia, a no ser recentemente.Ocorreram certamente, por milnios, referncias espordicas, aforsticas,como por exemplo, em Lao Tse, Herclito, Aristteles ou Montaigne (1999,p. 9).

    As referncias a respeito da infncia nas obras clssicas so, a bem da

    verdade, encontradas em meio a textos cuja inteno evidencia uma preocupao

    com transformaes polticas e sociais das futuras sociedades; dentro desses textos,

    que esporadicamente, se argumenta sobre a importncia de educar bem a criana,

    para que a mesma se torne um bom cidado. E o que significa ser um bom cidado?

    Para responder a essa questo buscamos Chau (2003, p. 40). Em seu livro

    Convite Filosofia, a autora relata que na Grcia antiga16, antes da instituio da

    democracia, as cidades viviam sob o domnio das famlias aristocrticas, as quais

    criaram um modelo de educao onde o homem ideal era aquele que se

    apresentava como um guerreiro belo (a ginstica, a dana e os jogos de guerra eram

    15 Gostaramos de frisar que a proposta neste primeiro captulo pesquisar em campos significativosdo conhecimento, idias clssicas a respeito da infncia, para que assim possamos ampliar asinvestigaes em nossa pesquisa. Portanto, no nos prestaremos a definies que possam nosdistanciar de nosso objetivo no decorrer deste. Verificaremos em cada obra, apenas o eixo norteadordas idias de cada autor e sua relao com o tema proposto, o conceito de infncia.16 Chau refere-se ao perodo socrtico ou antropolgico.

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    responsveis pela formao do corpo tal qual os dos heris de Tria) e bom

    (Homero, Pndaro e Hesodo eram os referenciais para que se pudesse aprender as

    virtudes apreciadas pelos deuses a coragem diante da morte na guerra).

    Na medida em que o comrcio e o artesanato foram perdendo espao para a

    economia advinda das atividades agrrias, fazendo com que surgisse nas cidades,em Atenas principalmente, uma classe social urbana rica que deseja exercer o

    poder poltico, at ento privilgio da classe aristocrtica (CHAU, 2003, p. 40), aos

    poucos, a democracia foi sendo instituda para corresponder s aspiraes da nova

    classe social. E dessa forma os aristocratas foram sendo destitudos do poder, em

    benefcio dos cidados. Diante disso, O antigo ideal educativo ou pedaggico

    tambm foi sendo substitudo por outro. O ideal da educao da Grcia clssica j

    no a formao do jovem guerreiro belo e bom, e sim a formao do bom

    cidado. (CHAU, 2003, p. 40).Ainda segundo Chau (2003), o cidado para exercer sua cidadania

    precisava discutir, opinar e deliberar nas assemblias, para tanto a nova educao

    estabelece como padro ideal, a formao do bom orador, isto , aquele que saiba

    falar em pblico e persuadir os outros na poltica. De acordo com a autora, em

    substituio a educao dos poetas, surgiram os sofistas, primeiros filsofos ainda

    do perodo socrtico, para cuidar da educao dos jovens ensinando-os a ser bons

    cidados, e preparando-os para a vida na plis.

    Percebemos nesse breve relato a partir das palavras de Chau, que para os

    pensadores clssicos, a formao do bom cidado condiciona-se necessariamente

    educao do jovem. Sobre isso, Kohan (2003, p. 25) reafirma: Os filsofos gregos

    do perodo clssico deram, de forma quase unnime, uma importncia singular

    educao. E completa ao citar Antifonte: A educao o principal para os seres

    humanos e que quando se semeia num corpo jovem uma nobre educao, esta

    floresce para sempre, com chuva ou sem chuva (2003, p. 26).

    Na verdade, observamos que a educao nos textos clssicos assume o

    papel protagonista, enquanto a criana assume o de coadjuvante, uma vez que a

    infncia em si no problematizada em suas questes; ela apenas apresentada

    como um momento da existncia humana, o qual por ser o primeiro, deve receber

    ateno diferenciada (educao) para que o problema da degradao dos jovens

    possa, segundo Kohan (2003), ser enfrentado.

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    Percebemos que dentro da filosofia clssica, o conceito de infncia

    constitudo no em suas particularidades, mas paralelo a dois outros conceitos: ao

    de educao e ao de poltica, principalmente nas idias de Plato.

    Estas idias a respeito da infncia, consideradas importantes e

    fundamentais ao tentarmos pensar seu conceito, a partir do caminho percorrido pelamesma ao longo da histria da humanidade, sero particularmente refletidas aqui,

    sob alguns pontos de vista de Walter Kohan17.

    Ao optarmos por incluir reflexes deste autor a respeito do conceito de

    infncia, no estudo que aqui pretendemos, nossa inteno foi buscar um respaldo

    terico de algum com renomada experincia no somente na filosofia com

    crianas, mas especificamente no PFpC de Lipman. At porque, na introduo

    deste, propusemos a utilizao tambm, de leituras de referncia para ampliar nossa

    fonte de pesquisa sobre o tema proposto.Consideramos deste modo, extremamente valiosa e interessante a forma

    como o pensador argentino valeu-se no somente da leitura de Plato, buscando

    tambm em Philippe Aris, um campo a mais para pensar o conceito de infncia.

    Feito este que o possibilitou sair do campo estrito da filosofia da educao, e

    embrenhar-se no campo da histria das mentalidades e das relaes que permeiam

    a famlia e a infncia.

    1.1 PLATO: DO INTERESSE POLTICO E DA INFNCIA

    Walter Omar Kohan (2004, p. 52) em seu artigo intitulado, A infncia da

    educao: o conceito devir-criana, assinala que:

    No pensamento filosfico educacional da tradio ocidental, educar ainfncia a melhor e mais slida maneira de introduzir mudanas e

    17 Walter Omar Kohan argentino. Doutor em Filosofia; professor de Filosofia da Educao da UERJe atual coordenador do Ncleo de Estudos Filosficos da Infncia (NEFI); escreveu Infncia. EntreEducao e Filosofia, cujo tema principal a infncia. De acordo com a apresentao desta obra, osentido maior da mesma transformar as relaes dos educadores que trabalham com crianas porintermdio da Filosofia e da Educao. O livro aqui mencionado apenas um dentre tantos que esteautor tem, no que se refere a refletir sobre a infncia e as possibilidades educativas da filosofia comcrianas, bem como de formas de pensar e praticar essas possibilidades. J h algum tempo Kohanest envolvido nessa proposta, visto ser ele tambm, o autor dos primeiros, e por que no dizer damaioria, dos livros que fazem referncia ao programa deFpC de Mathew Lipman no Brasil.

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    infncia (2003, p. 28) que por si s, justifica-se no lhe cabendo qualquer referncia

    quilo que, na verdade, mais se aproxima de caractersticas psicolgicas da criana.

    Imaginamos diante disso, que Plato no evidenciou a essncia da infncia

    em si, em funo deste pensador consider-la apenas como poca em que os

    atributos mais significativos para a formao do homem para a polis, podem seriniciados.

    Em se tratando de um conceito filosfico ento, observamos que a inteno

    de Kohan ao designar termos especficos para pensar o conceito de infncia, incide

    justamente sobre esta questo. Pois, segundo ele, a no especificidade do conceito

    de infncia nos escritos platnicos, no significa necessariamente que o filsofo

    clssico no tenha pensado este conceito. Kohan (2003) afirma que os escritos

    platnicos compem um certo conceito complexo, difuso, variado em relao

    infncia. Esta por sua vez, situa-se numa problemtica mais ampla do pensamentode Plato. com essa leitura que Kohan distingue algumas marcas deixadas pelo

    pensamento platnico, sobre o conceito de infncia.

    A primeira delas, a infncia como pura possibilidade. Haveremos de

    entender que a idia de Kohan aqui, parece estar relacionada ao fato de Plato no

    se abster do atributo que confere infncia o ttulo de etapa primeira da vida, o que

    por sua vez parece acrescer o valor desta, em funo dos efeitos que pode imprimir

    vida adulta. Entretanto, preciso tomar certo cuidado com o que sugere tal idia.

    Para tanto, Kohan assegura que no se trata de que, para Plato, a natureza

    humana se consolide e torne-se imodificvel a partir de certa idade (2003, p. 35). E

    continua justificando sua afirmao com algumas palavras extradas de AS LEIS: O

    Ateniense, diz que os jovens sofrem muitas mudanas todo o tempo, durante toda

    sua vida. Entretanto, um primeiro crescimento bom o mais importante para uma

    boa natureza, tanto entre as plantas, entre os animais quanto entre os humanos.

    (AS LEIS, XI 929 e VI 765 apud KOHAN 2003, p.35)

    Eis a observaes que apontam para o valor proferido por Plato, bem

    como por seus interlocutores, educao. Kohan sintetiza: ainda que Plato pense

    que a educao seja importante em toda a vida de um ser humano, tambm

    considera que muito mais nos momentos em que se forjam seus caracteres

    (2003, p. 35).

    Segundo o autor argentino, para o filsofo grego, a educao a

    responsvel pela justia ou injustia na plis, pois permite a aprendizagem do que

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    No se trata de acusar Plato de insensvel, adultocntrico ou de violentaros direitos das crianas. Esse no parece um eixo de anlise interessante.As realidades histricas so complexas demais para permitir juzos tosuperficiais. (2003, p. 48-49).

    Interessante a cautela de Kohan ao se pronunciar desta forma, afinal sua

    inteno nos remete a um olhar atento para as idias platnicas, no sentido decompreender o conceito de infncia tal qual ele fora construdo historicamente, bem

    como suas implicaes para o conceito que intencionamos pensar no momento

    presente.

    Do segundo conceito postulado por Kohan a partir do pensamento platnico,

    incide a terceira marca acerca da infncia. A infncia como outro desprezado.

    Kohan (2003) utiliza-se desse termo reportando-se a algumas discusses ocorridas

    principalmente entre Scrates e queles que se referiam infncia como algo intil e

    desprezvel por representar, dentre outros aspectos, a falta de experincia. Pornatureza ento, coisas sem importncia. Tal propsito acontece em funo do

    descrdito dado Filosofia por uns, que a acreditavam uma diverso e como tal,

    ocupao dos mais jovens, aos mais velhos ela teria apenas a funo de corromp-

    los. Nas palavras de Clicles:

    Porque ainda que esteja bem dotado intelectualmente, quando se fazfilosofia at a idade avanada, necessariamente seremos inexperientes emtudo aquilo que devemos conhecer bem, para ser algum reputado e bemconsiderado. (GRGIAS484, apud KOHAN, 203, p.51).

    Em resposta s acusaes, de acordo com as observaes de Kohan,Scrates tambm utiliza o significado atribudo s crianas em sua poca, para

    rebater as acusaes que lhe pesavam, e assim depreciar a imagem daqueles com

    os quais diferenciava seu pensamento acerca da poltica, da retrica, do bem e do

    prazer, comparando-os s crianas que so incapazes de perceber com

    discernimento o que verdadeiramente preciso conhecer.

    A esse respeito Kohan (2003, p. 55), nos esclarece que tanto para os

    filsofos gregos quanto para os que no compartilham da idia dos mesmos, as

    crianas so vocs, os outros. E, finalmente, acrescenta, brilhantemente, sobre ainfncia como o outro desprezado:

    As crianas so a figura do no desejado, daqueles que no aceitam aminha verdade, do rival desqualificado, de quem no compartilha umaforma de entender a filosofia, a poltica, a educao e por isso deve servencido, azotado, expulsado da plis. As crianas so para Scrates epara Clicles, portanto, para Plato, uma figura do desprezo, do excludo, oque no merece entrar naquilo de mais valioso disputado por Plato,

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    teoricamente, com os sofistas: a quem corresponde o governo dos assuntosda plis, t politik. (KOHAN, 2003, p.55)

    A ltima marca do pensamento platnico sobre a infncia apresentada por

    Kohan como a infncia como material da poltica. Percebemos isso pelo fato do

    discurso de Plato constituir-se basicamente sobre comentrios que revelam suapreocupao com aspectos polticos. Na verdade, as infindveis discusses do

    pensador grego junto aos seus interlocutores, conforme fora citado anteriormente,

    demonstram o interesse do mesmo pela vida na plis.

    Concordamos com W. Kohan quando o mesmo diz: em A Repblica, tantos

    cuidados na criao e na educao dessas pequenas criaturas se justificam porque

    sero eles os futuros guardies da plis, seus governantes(2003, p. 56).

    Contudo em Plato, percebemos tambm que antes mesmo de investir na

    educao das crianas, preciso aumentar as chances de que a educaooferecida a elas realmente alcance o objetivo pretendido. De tal forma que o

    pensador grego traa uma distino a respeito de um modelo de procriao

    superior, a qual deve acontecer entre homens e mulheres considerados de elite,

    para que assim a prole tenha naturalmente, maiores chances para aproveitar a

    educao que lhes ser dada, e assim se constituir como lder. Os frutos dessas

    unies, previamente organizadas 20, seriam entregues a pessoas designadas como

    guardies, figuras responsveis pelo cuidado dos filhos dos indivduos superiores,

    as quais receberiam os primeiros cuidados, em local diferenciado dos demais 21. S

    ento as crianas seriam submetidas, a jogos rigorosamente regulamentados, para

    que aprendessem, desde pequenas, apreciarem as leis; o que de certa forma,

    futuramente, garantiria a qualidade humana da plis. Todo esse empenho assim

    justifica-se:

    A repblica, uma vez que esteja bem lanada, ir alargando como umcrculo. Efetivamente, uma educao e instruo honestas que seconservam tornam a natureza boa, e, por sua vez, naturezas honestas quetenham recebido uma educao assim tornam-se ainda melhores que seusantecessores, sob qualquer ponto de vista, bem como sob o da procriao,tal como sucede com os outros animais. (A REPBLICA, IVb)

    20 Para maiores esclarecimentos a respeito da forma de unio apontada como ideal para garantircrianas com mais potencial para governar sabiamente, vide: A Repblica, IV 424b-e; V 460c-d.21 Tambm no livro V de A Repblica de Plato aparece a forma pela qual os filhos de homens emulheres considerados inferiores, ou os bebs que tivessem alguma deformidade eram levados aparadeiro desconhecido e secreto, como meio seguro de preservar a pureza da raa dos guerreiros.

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    Diante dessas afirmaes notamos a dimenso da preocupao e do

    empenho de Plato no sentido de garantir indivduos superiormente preparados para

    governar e viver na plis. No interessando os mtodos utilizados para tal projeto.

    Diante dessa perspectiva, Kohan pronuncia-se citando Larrosa:

    Encontramos nesse esquema os dois elementos bsicos que definem umaclssica pedagogia formadora. Por um lado, educa-se para desenvolvercertas disposies que se encontram em estado bruto, em potncia, nosujeito a educar; por outro lado, educa-se para conformar, para dar forma,nesse sujeito, a um modelo prescritivo, que foi estabelecido previamente. Aeducao entendida como tarefa moral, normativa, como o ajustar o que a um dever ser. (LARROSA apud KOHAN, 2003, p. 57)

    Assim, notamos no pensamento de Kohan, que a idia de infncia em Plato

    no apenas encontra-se atrelada ao conceito que para o filsofo grego muito mais

    importante, a educao; na verdade, ela se restringe ao significado que a criana

    tem como matria-prima que deve ser intensa e vigorosamente trabalhada via

    educao, para a aumentar as possibilidades de alcanar, em Plato, a plispor ele

    sonhada, ou seja, ela representa o material a ser trabalhado na construo de um

    ideal social e poltico.

    Enfim, Kohan (2003, p. 59) diz: possibilidade, inferioridade, outro

    rechaado, material da poltica. Marcas sobre a infncia deixadas por um

    pensamento, o de Plato.

    1.2 ARIS: DA INVENO DA INFNCIA

    Dando continuidade inteno inicial desta pesquisa, no sentido de reunir

    subsdios para pensar no presente, o conceito de infncia, nos transpomos para

    uma apreciao, que nas palavras de Kohan: Ao ser inventado tornou-se um divisor

    de guas entre os historiadores da psicologia social(2003, p. 63). Sendo importante

    ressaltar aqui, a nossa concordncia em relao opo de Kohan ao se apropriar,

    num segundo momento, do pensamento de Ph. Aris22

    para refletir sobre o conceitode criana. No h como deixar, num intento como esse, de recorrer a este

    historiador.

    22 Philippe Aris nasceu em 24 de junho de 1914, na Frana, e concluiu seus estudos de Histria naSorbonne.

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    No clssico, A Histria Social da Famlia e da Infncia23, Ph. Aris relata que

    na civilizao medieval, o conceito de infncia praticamente deixa de existir, se

    que chegou a ser construdo anteriormente a ela, pois segundo as idias descritas

    pelo historiador francs,

    At por volta do sculo XII, a arte medieval desconhecia a infncia ou notentava represent-la. difcil crer que essa ausncia se devesse incompetncia ou falta de habilidade. mais provvel que no houvesselugar para a infncia nesse mundo (1973, p. 50).

    Em sua minuciosa pesquisa iconogrfica, o autor verifica que at o fim do

    sculo XIII nas obras de arte e nos quadros no existiam crianas caracterizadas

    por uma expresso particular, e sim homens de tamanho reduzido. (ARIS, 1973, p.

    51).

    Aris sustenta a tese de que, na Idade Mdia, a infncia no existia,

    surgindo apenas na Frana do sculo XVI. Em sua obra, acima mencionada, eleaponta o modo pelo qual a civilizao medieval remetia-se s crianas da poca. De

    acordo com esse terico:

    A durao da infncia era reduzida ao seu perodo mais frgil, enquanto ofilhote do homem ainda no conseguia bastar-se; a criana ento, maladquiria algum desembarao fsico, era logo misturada aos adultos, epartilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela setransformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas dajuventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Mdia e que setornaram essenciais nas sociedades evoludas. (ARIS, 1973, p. 10).

    Na verdade, a criana recebia os cuidados bsicos para sua sobrevivnciaat seu desmame tardio, o qual acontecia por volta dos sete anos de idade, a partir

    de ento, ela era inserida no mundo do adulto tornando-se o mesmo em miniatura,

    aprendendo valores, costumes e habilidades na medida em que o auxiliava em suas

    atividades e tarefas. No havia preocupao com uma educao especificamente

    para a infncia.

    A participao das crianas no mundo dos adultos prolongou-se at o fim do

    sculo XVI, quando ento, volta evidncia a preocupao com a educao dos

    pequenos. Esse acontecimento inspirou a igreja na fundao de ordens religiosasvoltadas ao ensino. Porm, no mais ao ensino de adultos, e, sim, ao ensino de

    crianas e jovens, o que na verdade visava a moralizao da sociedade. Diante

    dessa inteno da igreja, juntamente com o novo sentimento da famlia em relao

    infncia, segundo Aris, a partir do sculo XVII, passou-se a admitir que a criana

    23 Do ttulo original em francs LEnfant et la vie familiale sous lAncien Rgime.

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    no estava madura para a vida, e que era preciso submet-la a um regime especial,

    a uma espcie de quarentena antes de deix-la unir-se aos adultos(1973, p. 277).

    A nova preocupao com a educao, respaldada pela moral imposta na

    poca, impeliu os pais a se organizarem em torno dos filhos de modo a assegurar-

    lhes uma preparao para a vida por intermdio da escola. A aprendizagem queantes acontecia livremente em meio convivncia com os adultos, passou a ser

    responsabilidade exclusiva da escola. Esta, por sua vez, utilizava mtodos severos

    para imputar nas crianas um regime disciplinar e regras rigorosas, privando-as da

    liberdade anteriormente experimentada, com a argumentao de que era a escola o

    mercado da verdadeira sabedoria (ARIS, 1973, p. 277).

    Verificamos que o novo sentimento de infncia surgiu, submetido

    novamente, a um modelo educacional que tinha no controle a mola propulsora para

    moldar e preparar o infante conforme suas regras e impresses, e agora, no maisapenas com uma preocupao social e poltica, tal como em Plato, mas tambm,

    com uma preocupao moral, tirando da criana a oportunidade de expressar

    livremente os seus desejos e intenes. Conforme nos assevera Wartofsky24: O

    modelo que v a criana como organismovazio e inocente aguardando a impresso

    que ir mold-lo (2000, p. 109).

    1.3 ROUSSEAU: DO CUIDADO COM O INFANTE

    Interessante observarmos que, este novo sentimento surgido em relao

    infncia no final do sculo XVII, alm de vir atrelado mais uma vez, educao,

    conforme argumentamos no pargrafo anterior, despertou em alguns pensadores o

    interesse para o fato de que, mais do que educar a criana para ser submetida ao

    controle e s regras impostas pela sociedade e pela igreja, o importante era

    averiguar e tomar cuidado com as especificidades e particularidades que fazem

    parte do universo infantil, para que a partir da, a criana possa reunir os elementos

    necessrios para amadurecer e enfrentar os problemas na vida adulta.

    24 Marx W Wartofsky era professor de filosofia no Baruch College e no Graduate Center of the CityUniversity of New York. Morreu em maro de 1999.

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    O interesse desses pensadores ganha no sculo XVIII mais concretude nos

    escritos de Rousseau, filsofo suo que publica em 1762, o EMLIO25;um tratado

    romanceado da educao de um jovem, desde seu nascimento at sua entrada na

    vida adulta. Em tal obra, Rousseau aponta possibilidades de uma educao

    domstica26

    , permitir ao homem o enfrentamento da vida civil, sem, no entanto,desvirtuar sua natureza, visto que, segundo ele, era na vida da sociedade civil que o

    homem se corrompe. No nos cabe aqui uma discusso pormenorizada a respeito

    das imbricaes polticas27 contidas nas idias apregoadas no livro. Isso envolveria

    um outro tipo de reflexo, possvel at, porm em outro estudo. Aqui nos coube

    assinalar as idias rousseaunianas a respeito do conceito de infncia. Ainda porque,

    foi o seu iderio, o primeiro postulado especfico a respeito das particularidades do

    infante. Por ser assim, supomos importante a aluso a este pensador, tendo em

    vista a descrio da trajetria histrica do conceito de infncia aqui proposto.Conforme dito antes, vlido notar que para Rousseau, existem algumas

    caractersticas que o homem deve encerrar para arcar na sociedade civil, com o

    sofrimento que a vida social e poltica ocasiona. Dessa forma, ele quer educar o

    EMLIOpara que este, antes de tudo, possa conhecer a si mesmo e assim reunir os

    subsdios28 necessrios para lidar melhor com as intempries sociais, alm de suas

    prprias emoes. Para tanto, o menino deve ser educado desde tenra idade, longe

    da sociedade civil, e por um nico preceptor. Eis por que:

    impossvel uma criana que passe sucessivamente por tantas mosdiferentes ser bem educada. A cada mudana ela faz secretas comparaesque sempre tendem a diminuir sua estima para com aqueles que educam e,conseqentemente, a autoridade deles sobre ela. (ROUSSEAU, 2004, I- p.40)

    25 Publicado originalmente em francs, mile ou De LEducation, tem como personagem cardeal oEmlio; a saber: apesar de principal, fictcio.26 A educao domstica, trata-se em Rousseau, de uma educao das crianas desde seunascimento, fora da escola, no campo, prximo natureza e de tudo que esta pode lhe oferecer;

    longe das corrupes mundanas bem como das perverses comum a elas. Segundo Rousseau, oinfante deve dentro dessas condies, ter o acompanhamento de um preceptor, cujas caractersticaso fizessem um mestre digno de ser assim chamado. Para o pensador em questo: para ser chamadomestre da criana, preciso ser mestre de si mesmo(EMLIO, 2004, p. 102).27 No percebemos em o EMLIOuma preocupao especfica de Rousseau com a questo poltica,ou de educar o infante para um cidado para a plis, por exemplo. Seu interesse em relao aobem estar do homem; refletindo sobre a condio humana. Aquele que de ns melhor soubersuportar os bens e os males desta vida, para mim, o mais bem educado (EMLIO, 2004, I- p. 15).28 Entendemos este por caractersticas tais como: prudncia, estima pela virtude, justia,generosidade, dentre outras, as quais sero apontadas no transcorrer das idias contidas no estudoque hora se faz presente.

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    As consideraes de Rousseau sobre a importncia de educar a infncia

    junto natureza so por ele justificadas:

    Os homens no so feitos para serem amontoados em formigueiros, maspara se espalharem pela terra que devem cultivar. Quanto mais se renem,mais se corrompem. As doenas do corpo, assim como os vcios da alma,so o efeito infalvel dessa associao muito numerosa. De todos os

    animais, o homem aquele que menos pode viver em rebanho. Homensreunidos como carneiros morreriam em pouqussimo tempo. O hbito dohomem mortal para seus semelhantes; isto no menos verdadeiro nosentido prprio do que no figurado (ROUSSEAU, 2004, I- p. 43).

    A respeito da vida em sociedade este pensador explana:

    As cidades so o abismo da espcie humana. Ao cabo de algumasgeraes, as raas morrem ou degeneram. preciso renova-las, e sempre o campo que traz essa renovao. Enviai pois vossos filhos paraque se renovem, por assim dizer, a si mesmos e retomem nos campos ovigor que se perde no ar insalubre dos lugares povoados demais.(ROUSSEAU, 2004, I- p. 43).

    Devemos tomar cuidado diante destas palavras, para no imaginar uma

    apologia de Rousseau ao individualismo em detrimento dos valores humanos, ou

    algo semelhante. Para ele, o papel do mestre educar seu discpulo para tornar-se

    um homem, sem, no entanto, desconsiderar o contexto social do qual provavelmente

    um dia ele far parte. Para tanto, ele incumbe-se de traar um mtodo educacional

    que amplia as possibilidades do discpulo, para quando chegada hora do convvio

    social, ele no se deixe corromper pelo artificialismo da sociedade civil.

    Com efeito, Rousseau cr que a infncia caracterizada como um perodo

    iniciado logo aps o nascimento, o momento em que nascem os erros e os vcios,

    sem que possamos ter instrumentos para aniquil-los. Acreditamos aqui, dada a falta

    de discernimento dos pequenos, o que justifica a teoria deste pensador, sobre a

    necessidade de educar a criana de modo a prevenir os maus hbitos.

    Assim posto, Rousseau aprecia inicialmente, a importncia de considerar a

    criana, a partir da prpria criana. Nesta passagem podemos encontrar mais

    clareza a esse respeito:

    A natureza quer que as crianas sejam crianas antes de serem homens.Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos tempores, queno estaro maduros e nem tero sabor, e no tardaro em se corromper;teremos jovens doutores e crianas velhas. A infncia tem maneiras de ver,de pensar e de sentir que lhe so prprias; nada menos sensato do quequerer substituir essas maneiras pelas nossas. (ROUSSEAU, II- p. 91)

    Percebemos na premissa de Rousseau, que a criana tem seu jeito de se

    apropriar do mundo em que est. E isso fundamentalmente deve ser levado em

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    considerao durante uma educao que tem como objetivo apreciar o ser em suas

    especificidades.

    Desassossegado com a condio humana, nosso pensador versa sobre a

    demanda da liberdade, aspecto imprescindvel criana para que a mesma possa

    aprender, viver e assim alcanar a maturidade de modo virtuoso29

    . Vejamos suaspalavras sobre essa questo:

    Os maiores riscos da vida esto no comeo; quanto menos tivermos vivido,menos deveremos esperar viver. [...] que devemos pensar, ento, dessaeducao brbara que sacrifica o presente por um futuro incerto, queprende uma criana a correntes de todo o tipo e comea por torna-lamiservel, para lhe proporcionar mais tarde no sei que pretensa felicidadede que provavelmente no gozar jamais? Mesmo que eu considerasserazovel essa educao por seu fim, como encarar sem indignao essaspobres infelizes submetidas a um jugo insuportvel e condenadas atrabalhos contnuos como os galeotes, sem ter certeza de que tantostrabalhos algum dia lhes sero teis! A idade da alegria passa-se em meio a

    prantos, a castigos, a ameaas, escravido. Atormenta-se a infeliz paraseu prprio bem, e no se v a morte que a chama e vai apanha-la no meiodessa triste condio.quem sabe quantas crianas morrem vtimas daextravagante sabedoria de um pai ou de um professor? Felizes porescaparem sua crueldade, a nica vantagem que tiram dos males quelhes fizeram sofrer morrer sem ter saudades da vida, de que sconheceram os tormentos. (ROUSSEAU, 2004, II- p.72)

    Constatamos, todavia, que o conceito de liberdade em Rousseau no se

    restringe no imposio de limites s crianas. Adverso a isso, o pensador

    entende que os pequenos devem ser educados com instrumentos que deixam de

    lado a rivalidade, o cime, a inveja, a vaidade, a avidez, o temor vil, os quais, deacordo com esse pensador, fermentam e corrompem a alma ainda antes que o

    corpo esteja formado (2004, p. 94). Em Rousseau, o instrumento mais apropriado

    para educar uma criana a liberdade bem regrada. Pois segundo ele:

    O constrangimento perptuo em que conservais vosso aluno irrita suavivacidade; quanto mais constrangidos ficarem vossa frente, maisturbulentos ficaro s vossas costas; preciso que tenham algumacompensao pelo duro constrangimento em que os conservais.(ROUSSEAU, 2004, II- p. 94)

    Da o imperativo de educar a criana livremente no campo, junto natureza,

    onde ela possa ter espaos e caminhos abertos para ir e vir, sem se expor aos

    perigos que porventura possam ameaar sua integridade fsica, intelectual e/ou

    moral. Rousseau afirma que nascemos capazes de aprender, mas sem nada saber

    e nada conhecendo (2004, I- p. 46).

    29 De acordo com Rousseau, coragem temperana, amizade e cooperao tambm fazem parte dasvirtudes.

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    No campo, a criana tem mais oportunidade para aprender, alm dos

    cuidados atentos do preceptor, experimentando por ela mesma tudo o que lhe atrair

    a ateno. E por intermdio das intervenes do seu mestre, conforme a demanda,

    as oportunidades de questionar e indagar a respeito do que est vivenciando,

    ampliam-se. Ainda segundo Rousseau, a importncia de dar liberdade30

    s crianas(inclusive liberdade fsica), ao oposto de domnio, deve-se ao seguinte fato: quando

    permitido ao infante que ele faa mais por si mesmo, ele aprende a exigir menos

    dos outros. E limitando seus desejos somente s suas foras, menos a criana

    sofrer diante do que no estiver ao seu alcance.

    A reside um outro aspecto importante nos postulados rousseuanianos. Para

    ele o mais bem educado dos homens o que melhor suportar as intempries da

    vida; e o mais feliz, o que sente menos sofrimento. Assim, a educao prxima da

    natureza pode, de conformidade com Rousseau, propiciar desde a infncia, oequilbrio entre o poder e o desejo, porque quanto mais prximo do seu estado

    natural, menor ser a diferena entre seu desejo e sua competncia. Rousseau trata

    a esse respeito nestas linhas:

    Em que, ento, consiste a sabedoria humana ou o caminho da verdadeirafelicidade? No exatamente em diminuir nossos desejos, pois, se elesestivessem abaixo de nossa potncia, uma parte de nossas faculdadespermaneceria ociosa, e no gozaramos de todo nosso ser. Tambm noconsiste em ampliar nossas faculdades, pois, se nossos desejos ao mesmotempo se ampliassem em maior proporo, tornar-nos-amos maismiserveis. Trata-se, pois, de diminuir o excesso de desejos relativamente

    s faculdades, e de igualar perfeitamente a potncia e a vontade. Somenteento, estando todas as foras em ao, a alma permanecer tranqila e ohomem se encontrar bem ordenado. (ROUSSEAU, 2004, II- p. 74-75)

    Sintetizando, para Rousseau, o homem incontestavelmente bom em seu

    estado natural, pois os primeiros movimentos da natureza so sempre direitos: no

    h perversidade original no corao humano. No se encontra nele um s vcio de

    que no possamos dizer como e por onde entrou (ROUSSEAU, 2004, II- p. 95). O

    que o corrompe o estado social com seus vcios e injustias. Um outro intento do

    pensador proporcionar uma educao que permita ensinar ao seu discpulo oofcio de viver. Em suas palavras:

    Ao sair de minhas mos, concordo que no ser magistrado, nem soldado,nem padre; ser homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deveser, ele ser capaz de ser, se preciso, to bem quanto qualquer outro; e,

    30 O livro I de o EMLIOcontm uma descrio detalhada sobre a maneira pela qual a liberdade deveser ofertada ao infante, desde o nascimento, inclusive em suas vestimentas.

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    ainda que a fortuna o faa mudar de lugar, ele sempre estar no seu.(ROUSSEAU, 2004, I- p. 15)

    Deste modo, ele entende que a infncia o caminho para cultivar a

    sabedoria necessria ao homem, a fim de que o mesmo possa atingir o equilbrio

    entre seus desejos e o que pode fazer por si prprio (conforme fora mencionado

    antes). Criando o infante desde seus primeiros momentos de vida, numa condio

    que no o distancie da natureza e considerando suas peculiaridades, a abertura

    assinalada por Rousseau, que distingue com veemncia, aes e atitudes

    adequadas do preceptor em relao criana, estimulando o desenvolvimento de

    suas potencialidades naturais e afastando-a dos males causados pela sociedade

    civil.

    Apesar do ttulo de filsofo, interessante ver a maneira como Rousseau

    analisa, sob o ponto de vista da psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem,as aes infantis, ponderando as atitudes que devem ser tomadas por seu cuidador

    ou o mestre, no sentido de atender suas necessidades de sobrevivncia, ao mesmo

    tempo em que investe em aspectos fundamentais para sua boa educao31.

    No seu tratado apreendido um conceito de criana e infncia diferente do

    conhecido at ento. Embora o mesmo ainda venha atrelado questo da

    educao, e enquanto em outros pensadores a criana vista como um instrumento

    do qual o adulto se servia, por intermdio da educao, para alcanar um objetivo

    determinado, em Rousseau ela percebida como ser nico e repleto departicularidades que lhe configuram suas especificidades. Deste modo, ao

    reconhecer a criana em sua unicidade, Rousseau propende educ-la no apenas

    ensinando a virtude ou a verdade, mas protegendo seu corao do vcio e seu

    esprito contra o erro (2004 II- p. 97). Cultivando nos pequenos o respeito genuno

    para com o outro, contudo, um respeito que nasce do amor prprio e no do orgulho.

    Essas reflexes nos mostram que Rousseau no foi precursor a respeito da

    infncia, nem mesmo foi inusitado em relao a isso. At porque, mesmo ele

    colocando em evidncia particularidades a respeito da criana, tambm em sua

    31 Rousseau, em o EMLIO, tem o cuidado de descrever minuciosamente cada etapa experimentadapela criana, bem como as necessidades surgidas em cada uma delas, desde a idade do beb, aquem ele chama de infans, passando pelo 'puer, dos 2 aos 12 anos, em seguida pela idade dafora, dos 12 aos 15, da razo e das paixes, dos 15 aos 20, at chegar idade da sabedoria e docasamento, dos 20 aos 25.

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    obra, o conceito vem atrelado ao de educao32. Pensamos diante disso, que a

    ateno dada infncia e s suas necessidades, em o EMLIO, tem o intuito de ver

    e investigar o que faz parte do universo infantil, e a maneira como a criana se

    apropria do mundo a sua volta. Mas, a preocupao de cuidar preventivamente do

    adulto no qual obviamente ela se tornar, ainda permanece, s que dessa vez comum aparato maior, visto o reconhecimento dado ao ser criana, em dimenses que

    extrapolam a do intelecto. A saber, a dimenso fsica, emocional, moral e religiosa.

    No obstante, observamos que no sculo XVIII, Rousseau quem evidencia

    apontamentos sobremaneira importantes, para pensarmos a respeito do infante

    como tal. Haveremos de convir que aps o EMLIO, caminhos foram abertos, e o

    nascimento de um novo olhar permitiu, em certa medida, o reconhecimento da

    criana como um ser humano dotado de especificidades diferentes das do adulto,

    proporcionando mesma, o centro da preocupao de outros estudiosos nelainteressados aps J.-J. Rousseau33.

    1.4 FREUD: DA EMOO NA INFNCIA

    Apesar de constatarmos um novo olhar para a infncia aps as idias de

    Rousseau, observamos que o perodo entre o fim do sculo XIX e comeo do sculo

    XX foi marcado por uma perspectiva, a primeira vista, distante e diferente da

    rousseauniana, mas que tambm traz tona aspectos infantis.

    Tratamos agora, de um tempo em que a infncia foi considerada o locus

    onde so firmados os alicerces pessoais do indivduo, tendo seu conceito arrolado

    ao processo de desenvolvimento da personalidade. Tal idia advm das postulaes

    do mdico psicanalista Sigmund Freud34 nas anlises de pacientes acometidos por

    32 Apesar de ter sido em sua poca, o pioneiro ao descrever meticulosamente sobre odesenvolvimento infantil, bem como as especificidades da infncia, bem clara sua inteno deinvestir numa nova proposta de educao, tanto assim, o ttulo de sua obra: EMLIO ou Da Educao.33 A idia rousseuaniana de uma educao que valoriza o estado natural do homem, tem suasrazes no pensamento de Montaigne. Tornando-se a partir do sculo XVIII a inspirao de mtodospedaggicos de vrios outros pensadores, tais como Pestalozzi, Montessori e Piaget.34 Sigmund Freud nasceu em Viena, em 1856 e formou-se em medicina em 1881, especializando-seem psiquiatria. Interessado em compreender de maneira sistemtica sobre as manifestaes dopsiquismo humano, criou uma teoria denominada Psicanlise, que considerada tambm comomtodo de investigao e como prtica profissional.

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    doenas nervosas35. Ao investigar a histria de vida desses pacientes, para buscar

    a gnese de suas manifestaes neurticas, Freud observou que elas procediam de

    situaes desagradveis experimentadas pelo indivduo ainda na infncia, e que

    eram esquecidas ao longo do seu desenvolvimento. Fenmeno este, destacado

    como amnsia infantil, a qual por sua vez, oculta os incios mais precoces dainfncia (FREUD, 1972, VII, p. 178).

    Em suas pesquisas analticas36, Freud (1972, XIII, p. 218) observou que:

    A psicanlise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos vida das crianas e teve de levar a srio o velho ditado que diz que acriana o pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil ea mente adulta e observou tambm transformaes e os remanejamentosque ocorrem no processo. Na maioria de ns existe, em nossas lembranas,uma lacuna que abrange os primeiros anos da infncia, dos quais apenasalgumas recordaes fragmentrias sobrevivem.

    Entrementes, no conveniente imaginar com isso, que o terico descarta

    a dimenso do que vivido durante os primeiros anos. Vejamos o que Freud

    observa nessas linhas:

    Temos bons motivos para acreditar que no h perodo em que acapacidade de receber e reproduzir impresses seja maior do queprecisamente durante os anos da infncia - durante esses anos, dos quaisposteriormente nada retemos em nossa memria, a no ser umaslembranas ininteligveis e fragmentrias, reagimos de maneira vvida aimpresses, somos capazes de expressar dor e alegria de maneira humana,damos prova de amor, cime e outros sentimentos apaixonados que nosemocionam fortemente na poca, e chegamos mesmo fazer observaesque so consideradas pelos adultos como boa prova de que possumosdiscernimento e os primrdios de uma capacidade de julgamento (1972, VII,

    p. 179).

    Ainda que muitos no se lembrem das prprias vivncias infantis, Freud nos

    adverte sobre as marcas encerradas no indivduo durante a meninice. Em suas

    anlises ele ressalva:

    Por outro lado, devemos supor, ou podemos nos convencer mediante umexame psicolgico de outras pessoas, de que as mesmas impresses queesquecemos deixaram, no obstante, os mais profundos traos em nossasmentes e tiveram um efeito determinante sobre a totalidade de nossodesenvolvimento subseqente. Portanto no h que se falar de qualquer

    35 Assim era chamada a histeria, que poca era considerada um quadro de manifestaessintomticas isentas de comprometimento orgnico que as justificasse. Em ESTUDOS SOBRE AHISTERIA (1893-1895), Freud publica junto com Josef Breuer, consideraes importantes sobre omecanismo psquico dos fenmenos histricos e de casos clnicos tradicionais que ilustram oassunto. Alm de enumerar importantes relaes entre as neuroses do adulto e as lembranasinconscientes da infncia. Essas reflexes constam do volume II das OBRAS COMPLETAS.36 Interessantes estudos descrevem as pesquisas realizadas por Freud para explicar claramente suaproposta terica. Mais especificamente Interpretao dos sonhos, Um caso de histeria, Trs ensaiossobre sexualidade, Cinco lies de psicanlise, Conferncias introdutrias sobre psicanlise,(volumes IV E V, VII, XI E XVrespectivamente, nas Obras Completas).

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    abolio real das impresses da infncia, mas antes de uma amnsiasemelhante quela que os neurticos exibem em relao a eventosulteriores, e cuja essncia consiste em simplesmente afastar estasimpresses da conscincia, ou seja, reprim-las (1972, VII, p. 179).

    Tais afirmaes, dentre outras37, fizeram com que o terico de Viena

    alterasse de maneira drstica, o modo de pensar a vida psquica das pessoas. Opsiquismo que at ento, era considerado apenas pelos aspectos da conscincia,

    teve seus processos emblemticos colocados em evidncia para que fossem

    averiguados cientificamente. Dessa forma, a interioridade do homem, seus

    esquecimentos, sonhos e fantasias ganham relevncia na investigao da vida

    psquica do indivduo, em detrimento da supervalorizao da conscincia, uma vez

    que, nas postulaes freudianas, os contedos inconscientes constituem a base

    geral da vida psquica, porque renem aspectos no presentes no campo da

    conscincia, pelo fato da representao penosa que tm.Tal episdio evidentemente, conseqncia de algum trauma (infantil), acaba

    esquecido, ou seja, relegado instncia no consciente da mente, por intermdio de

    um mecanismo38 que busca preservar o indivduo do incmodo vivido poca

    traumtica. Outrossim, aqueles contedos no deixam de existir. Eles ficam latentes

    na psique humana, em forma de lembranas carregadas de emoo que escapam

    na vida adulta, sob a forma de sintoma neurtico.

    De acordo com Freud, a propenso neurose deve provir por outra

    maneira, de uma perturbao do desenvolvimento (1972, XI, p. 43). O que nos

    revela de imediato, a importncia de vivncias infantis libertas de situaes que

    possam desencadear traumas responsveis por manifestaes neurticas no adulto.

    Entendemos, com este autor, que a criana logo ao nascer comea a

    experimentar necessidades de sobrevivncia e a presena de um adulto

    indispensvel para auxili-la na satisfao dessas necessidades. A cada etapa do

    desenvolvimento, os imperativos infantis vo se diferenciando, contudo a presena

    do adulto e a maneira como ele se dispem nessa relao, fundamentalmente

    37 Todo o tratado freudiano encontra-se reunido nos vinte e quatro volumes que compe sua obra. Asaber: EDIO STANDARD BRASILEIRA DAS OBRAS COMPLETAS DE SIGMUND FREUD.Deteremo-nos neste estudo, s questes especficas a respeito da importncia da infncia naformao da personalidade do indivduo.38 Referimo-nos aqui ao mecanismo de defesa do ego, conceituado por Freud como represso,processo psquico que tem por objetivo encobrir e/ou retirar da conscincia aspectos insuportveisque se encontram na origem do sintoma, e so levados instncia psquica notada inconsciente(Volume XIV das Obras Completas).

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    importante para que a criana internalize aspectos do meio externo, no sentido de

    formar sua percepo deste. A partir da percepo que ela tem, dentro das relaes

    estabelecidas com o outro no meio onde se desabrocha ela conquista seu modo de

    sobrevivncia, o qual lhe atribui caractersticas especficas que so traduzidas na

    sua personalidade.Essa percepo do funcionamento da psique humana, com nfase nas

    lembranas inconscientes (dos infantes), marca a diferena do pensamento

    freudiano sobre a estruturao do aparelho psquico, no apenas por trazer tona

    obscuridades da vida psicolgica dos indivduos, mas, tambm, por atribuir

    infncia consideraes significativas quanto ao seu papel na histria de cada pessoa

    adulta. Mais do que uma fase de aumento fsico, ela o tempo em que o indivduo

    apropria-se de seus instrumentos para viver, ou mais, nos primrdios da existncia

    humana que instalam-se as possibilidades futuras de uma estruturao psicolgicasadia ou no.

    Sendo assim, de acordo com a perspectiva do psicanalista vienense, a

    infncia assume um papel decisivo na histria de vida do indivduo, pois as

    experincias iniciais de cada um afetam (de modo positivo ou no), no somente a

    formao bsica do carter adulto, mas, tambm, do equilbrio das emoes intra e

    interpessoais nas pessoas. Freud adiciona ainda:

    Vemos que os indivduos adoecem quando, por obstculos exteriores ouausncia de adaptao interna lhes falta na realidade a satisfao dasnecessidades. Observamos que ento se refugiam na molstia, para comauxlio dela encontrar uma satisfao substitutiva (1972, XI, p. 46).

    As reflexes freudianas ao pensarmos o conceito de infncia podem ser

    assim sintetizadas:

    Algumas descobertas notveis foram efetuadas no curso dessa investigaoda mente infantil. Assim foi possvel confirmar o que j fora muitas vezessuspeitado a influncia extraordinariamente importante exercida pelasimpresses da infncia (e particularmente pelos seus primeiros anos) sobretodo o curso da evoluo posterior. Isso nos conduz ao paradoxopsicolgico que somente para a psicanlise no paradoxo de seremprecisamente estas, as mais importantes de todas as impresses, as que

    no so recordadas em anos posteriores. A psicanlise pode estabelecer ocarter decisivo e indestrutvel dessas primeiras experincias da maneiramais clara possvel. (FREUD, 1972, XIII, p. 218)

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    equilibrao, que a perspectiva piagetiana descreve a evoluo cognitiva infantil. Do

    ponto de vista da noo de equilbrio, o pensador suo assevera,

    O desenvolvimento mental uma construo contnua, comparvel edificao de um grande prdio que , medida que se acrescenta algo,ficar mais slido, ou montagem de um mecanismo delicado, cujas fasesgradativas de ajustamento conduziriam a uma flexibilidade e uma

    mobilidade das peas tanto maiores quanto mais estvel se tornasse oequilbrio. (PIAGET, 1995, p. 14)

    A construo consecutiva do desenvolvimento mental na criana acontece

    por intermdio de ininterruptos processos de equilibraes e desequilibraes.

    Todavia, Piaget salienta que, embora constantes, estes processos experimentam

    etapas ou perodos42 diferenciados, os quais organizam a atividade mental na

    infncia construindo estruturas cognitivas. Em suas postulaes