eliot ts notas para a definio

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    T.S.Eliott - Notas para uma definio de cultura

    T.S.ELIOTT

    NOTAS PARA

    UMA DEFINIO

    DE CULTURA

    Editora Perspectiva

    1988

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    T.S.Eliott - Notas para uma definio de cultura

    T.S.Eliott

    Notas para uma definio de cultura

    Prefcio de Nelson Ascher

    Editora Perspectiva

    Ttulo do original em ingls:

    Notes Towards the Definition of Culture

    Copyright Faber and Faber Limited

    Equipe de realizao Traduo: Geraldo Gerson de Souza; Reviso: Plnio

    Martins Filho; Produo: Plnio Martins Filho e Cristina Ayumi Futida

    Coleo Debates

    Dirigida por J. Guinsburg

    Debates 215

    Direitos de lngua portuguesa reservados

    EDITORA PERSPECTIVA S.A

    Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025

    01401 So Paulo SP Brasil

    Telefones: 885-8388/885-6878

    1988

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    A

    PHILIP MAIRET

    Com gratido e admirao

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    SUMRIO

    O Conservadorismo de Eliot ....................................................................... 9

    Prefcio Edio de 1962 ........................................................................... 19

    Prefcio Primeira Edio .......................................................................... 21

    Introduo .................................................................................................... 23

    1. Os Trs Sentidos de Cultura ................................................................ 33

    2. A Classe e as Elites ................................................................................. 49

    3. Unidade e Diversidade: a Regio ............................................................ 67

    4. Unidade e Diversidade: Seita e Culto ..................................................... 87

    5. Uma Nota Sobre Cultura e Poltica .........................................................105

    6. Notas sobre Educao e Cultura: e Concluso ........................................119

    APNDICE: A Unidade da Cultura Europia ............................................137

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    O CONSERVADORISMO DE ELIOT

    Depois das quase infinitas reavaliaes a que a sujeita cada nova vertentecrtica, a poesia de T. S. Eliot parece ter seu lugar assegurado entre os pontosculminantes da imaginao criativa deste sculo. Embora as opinies sedividam a respeito de quais sejam seus melhores poemas os radicais da

    juventude ou os elaboradamente meditativos da meia idade , certo que arevoluo representada por Prufrock(1917), Poems (1920), The Waste Land(1922) e The Hollow Men (1925) marcou um indiscutvel ponto de inflexo na

    curva da poesia de lngua inglesa e, sendo esta particularmente influente, abriutambm vrios caminhos inovadores para a arte potica ocidental. Not with abang but a whimper, no com um estrondo, mas com uma espcie de lamriasilenciosa, Eliot tornou corriqueiras comparaes estranhas

    9

    como a de um fim de tarde com um paciente anestesiado sobre a mesa (deoperao), habituou ouvidos sequiosos de cadncias melodiosas aos ritmossperos da fala, frustrou as expectativas dos que viam na poesia umdivertimento fcil, minando-a com citaes eruditas e requerendo, devido a

    sua sintaxe elptica, uma ateno exaustiva. Se The Waste Land sua obramais famosa dessa fase, The Hollow Men o poema que expressa de modomais conciso, discretamente alusivo e desesperado, a viso de mundo do poeta

    jovem.

    Journey of the Magi (1927) j reverbera um pensamento diferente, umpensamento que, buscando esperanas (segundo a declarao famosa) naigreja anglicana, na monarquia britnica e no classicismo artstico, atingiriasua mais ambiciosa materializao potica em Four Quartets (concludos em1942), e conquistaria para seu autor as mais variadas antipatias. No que Eliot

    no estivesse acostumado a ataques. Seu programa esttico, toanticonvencional quanto o dos dadastas e surrealistas (mas mais realizado queo deles), rendeu-lhe a desaprovao e desconfiana dos meios literriostradicionalistas. Sucede que, ao tomar essas posies que manteria at o fimda vida, Eliot rompeu certo pacto tcito de acordo com o qual inconformismo

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    artstico e progressismo social e poltico deveriam desenvolver-separalelamente, endossando, de modo involuntrio, aqueles que, como oLukcs stalinista, gostariam de ver simplisticamente correlacionadosmodernismo literrio e poltica reacionria. Com isso ele criou um problema,posteriormente agravado pela adeso de seu amigo Ezra Pound ao fascismoitaliano, que est longe de ter sido adequadamente discutido. Sua prosa crticaoferece problemas semelhantes, demandando uma discusso prpria.

    Tais problemas no esto contidos tanto em sua crtica literria cujacontribuio para o desvelamento do fenmeno potico foi capital e cujainfluncia continua forte o bastante para levar um ensasta como George

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    Steiner a afirmar que Eliot teria sido provavelmente o ltimo dos grandes

    crticos a no lanar mo das descobertas da lingstica moderna quanto emseus escritos mais genericamente voltados para a crtica social.

    Estes compem uma parte apenas minoritria do conjunto de sua prosa, sendoque seu texto central, onde suas preocupaes sociais e, at certo ponto,polticas aparecem mais claramente delineadas, precisamenteNotes Towardsthe Definition of Culture, publicado originalmente em 1948, ano em que seuautor recebeu o Prmio Nobel de Literatura. No se trata, seguramente, domelhor livro do poeta, nem tampouco pode ser considerado uma obra-prima ou, ao menos, um apanhado abrangente e elucidativo do iderio

    conservador. Ainda assim, um volume imprescindvel. H vrias razes paratanto. Em primeiro lugar, trata-se de uma tentativa de definio do conceito decultura realizada por algum que contribuiu de fato e positivamente para acultura. Em segundo, porque procura ensaiar as bases tericas mais amplas detoda uma obra potica, ensastica, dramtica cuja complexidade segueaberta e convidativa a uma srie infindvel de exegeses. Finalmente, porquevrios tpicos no necessariamente aqueles que o autor julgava os maisrelevantes desenvolvidos no livro so defensveis e merecem ser levados emconsiderao.

    Convm, contudo, situar T. S. Eliot no mbito do pensamento poltico e socialcontemporneo. A um tal exerccio, de resultados forosamente provisrios,subjazem riscos inevitveis, entre os quais o mais grave , sem dvida, atentao de reduzir a poesia mera formulao de um rol pr-determinado deidias. Essa tentao costuma ser agravada pelo hbito que certas vertentes

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    interpretativas sociologicamente orientadas possuem de descobrir,implcitas em cada poema, aquelas mesmas idias que j haviam sido, deforma mais ou menos feliz, explicitadas na prosa, sobretudo a de carter maisefmero, do poeta. No caso especfico do escritor anglo-

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    americano, tal atitude implicaria uma reduo simplificadora de sua poesia aoseu posicionamento ideolgico (deduzido, freqentemente, das formulaesempobrecidas que Eliot lhe dava em declaraes intempestivas), ao invs daleitura mais nuanada que a prpria riqueza da poesia permitiria realizar dosreferidos posicionamentos. Ler uma das poesias mais densas do sculo comose fosse a manifestao ataviada de uma mentalidade autodefinida comoconservadora em poltica, classicista em literatura e anglo-catlica em

    religio, muito mais fcil do que interpretar, na arquitetura e nas filigranasdos Four Quartets, o sentido e a verdade de cada uma dessas tomadas deposio. Mas nem sempre a melhor crtica segue os atalhos do menor esforo.

    A evoluo do pensamento eliotiano percorreu caminhos e descaminhosinusitados. Descendente de uma famlia unitarista da classe mdia alta daNova Inglaterra radicada no Estado sulista de Missouri, Eliot desdenhou desdecedo a seita da qual seu av paterno havia sido pastor (uma seita que, sob umponto de vista ortodoxo, pode ser considerada hertica por rejeitar o dogma daencarnao de Cristo) e, ainda criana, chegou a simpatizar com o catolicismo

    romano. Nos seus anos de ps-graduando em filosofia, estudou o snscrito einteressou-se pelo budismo, fato que transparece em The Waste Land. Poroutro lado, j durante sua estada na Frana, no perodo imediatamente anterior Primeira Guerra, manifestara interesse pelas idias de Charles Maurras, umanti-Dreyfusard, anti-semita e, posteriormente, pr-fascista. Contudo, a grandevirada que, no final dos anos 20, marcaria a direo definitiva de seupensamento e de sua vida foi, para todos os efeitos, menos radical, consistindona adoo da cidadania britnica e na converso ao anglicanismo. Cabeobservar que essas foram atitudes conscientes e longamente pensadas de umnorte-americano voluntariamente exilado na Europa e que elas se originaram

    no s nas angstias individuais do poeta, como tambm em uma longareflexo acerca dos destinos da cultura ocidental.

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    Segundo o crtico Northrop Frye, tal reflexo teria levado Eliot a uma teoriado declnio dessa cultura:

    De acordo com esta, o pice da civilizao foi alcanado na Idade Mdia,

    quando a sociedade, a religio e as artes expressavam um conjunto comum decritrios e valores. Isso no quer dizer que as condies de vida eram melhoresento um item cuja importncia deveria ser minimizada mas que a sntesecultural da Idade Mdia simboliza um ideal de comunidade europia. Toda ahistria posterior representa uma degenerescncia desse ideal. O cristianismose decompe em naes, a Igreja em heresias e seitas, o conhecimento emespecializaes, e o fim do processo o que o escritor est pesarosamenteobservando em seu prprio tempo a desintegrao da cristandade, adeteriorao de uma crena comum e de uma cultura comum.

    Essa viso, embora sustentada to esquerda quanto estava WilliamMorris, mais congenial a apologistas catlicos tais comoChesterton, e a crticos literrios como Ezra Pound, cujo conceitode usura resume boa parte de sua demonologia. A crtica social deEliot, e muito de sua crtica literria, enquadra-se nesse esquema.Ele, uniformemente, ope-se a teorias do progresso que recorrem autoridade da evoluo, e despreza escritores que, como H. G.Wells, tentam popularizar um ponto de vista progressista. Adesintegrao da Europa comeou pouco depois da poca deDante; uma reduo de todos os aspectos da cultura tematormentado a Inglaterra desde a rainha Anne; o sculo XIX foi

    uma era de progressiva degradao; nos ltimos cinqenta anosas provas do declnio so visveis em cada setor da atividadehumana. Eliot adota tambm o recurso retrico, presente emNewman e outros, de afirmar que H duas e apenas duas hiptesessustentveis a respeito da vida: a catlica e a materialista. O quequer que no seja uma das duas, incluindo o protestantismo, osprincpios dos whigs, o liberalismo e o humanismo, est no meio, eforma conseqentemente uma srie de nauseantes hesitaes detransio, cada uma pior que a anterior (Northrop Frye, T. S. Eliot An Introduction).

    E a definio que o poeta Stephen Spender d ao reacionarismo de Eliot no

    destoa da de Frye:Eliot era, no sentido mais rigoroso do termo, um reacionrio. Elereagiu contra o no-conformismo, o liberalismo, as idias deprogresso e de perfectibilidade do homem. Melhor

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    considerar o homem como vil e cado do que deix-lo ouvir a vozde sua prpria conscincia e julgar-se segundo seus prprioscritrios humanos.

    Ele era um reacionrio tambm no promover sua idia da Europa daIdade Mdia, na qual havia unidade de crena nos valorescompartilhados por toda a sociedade, em detrimento do ocidentemoderno, com suas metas e valores fragmentados. Contudo, apesarde ter pontos de vista morais e religiosos que erram medievalistas,ele no tinha nostalgia por esse passado (Stephen Spender,Eliot).

    Em face das evidncias desenterradas pela historiografia, seria difcil, mesmopara o mais empedernido conservador (que tivesse, entenda-se bem, aintegridade e a inteligncia de Eliot), sustentar hoje uma imagem to idlica da

    Idade Mdia europia. Contudo, apesar do prprio Eliot, sua crena acabouadquirindo, em seus poetisas e ensaios, uma funo heurstica, tomando-seuma hiptese de trabalho que, por contraste, permitia-lhe observar seu prpriomundo. A produtividade desse mtodo atinge o mximo nos melhorespoemas, diminuindo medida que os temas de sua prosa se tomam mais emais genricos. O decrscimo da produtividade no , no entanto, contnuo,pois varia de acordo com o meio de expresso em que o mtodo empregado, e segundo a capacidade do autor em cada momento durante aelaborao de seus trabalhos. Assim, sua viso da histria enquanto declniono o impede de observar, num ensaio de juventude, Tradition and the

    Individual Talent(1919), que cada nova obra relevante altera a configuraode toda uma tradio, ou seja, que no s o passado determina o presente, masque o inverso tambm ocorre. O papel da tradio na sua poesia e crticaliterria assumido, em seus escritos sociais, pela histria, com a diferena deque esta aparece como uma construo na qual o autor acredita.

    Ao contrrio de tantos que projetaram suas utopias redentoras no futuro, Eliotimaginou a sua no passado, descartando-se, de passagem, de suas eventuaisfunes

    14consoladoras e aceitando a carga de carregar uma imagem negra do presente.Foi isso que lhe permitiu elaborar uma viso devastadora de seu mundo, queconseguiu formular com maior ou menor sucesso em diferentes partes de sua

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    obra. A despeito de inmeras descontinuidades, essa viso aparece tanto emThe Waste Landquanto em Notes Towards the Definition of Culture. Pondode lado o conjunto de valores que lhe serviram de instrumento para odiagnstico do paciente, o quadro que surge suficientemente aterrador parainduzir reflexo, e se peca por algo conforme notou George Steiner pela omisso. Afinal, dificilmente se pode aceitar que um livro voltado para aidia de cultura e sua decadncia deixe de fazer qualquer referncia a tudo oque, durante a Segunda Guerra, ocorreu com as populaes europias. Talvezseja esse seu principal ponto cego. Para muitos, outra de suas falhas gravesser o completo desprezo que o autor manifesta pelas concepes quemostram a cultura e a civilizao como entidades profundamente clivadas porconflitos internos, derivados de interesses antagnicos. Conceda-se,entretanto, a uma anlise conservadora o mrito de procurar nessas entidades

    algum tipo de unidade ou de continuidade, procura habitualmente relegada aoesquecimento pelos que vem no conflito o nico mvel da histria.

    O livro passvel de crtica mais dura no que diz respeito aos seus desnveis,seus altos e baixos. No que tem de melhor, ele consegue oferecer um conceitode cultura mais compreensivo que o da mdia de conservadores eprogressistas, definindo tambm com agudeza as relaes entre culturasregionais e as centrais, bem como destas todas com unidades culturaismaiores, entremostrando-se, no geral, menos elitista que exigente. No que temde pior, desce ao nvel de um panfleto poltico e a um fraseado dogmtico.

    Essas caractersticas decorrem do modo como o livro foi elaborado, ou seja,como uma

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    tentativa a ltima do poeta de conciliar vrias idias, formuladas emdistintos planos de abstrao e nem sempre exaustivamente trabalhadas, numconjunto que pende para a heterogeneidade (cujo carter est expresso notermo notes do ttulo original). O saldo positivo do livro a anlisedevastadora que revela, mais que um encadeamento causal, a desolao deuma realidade com a qual Eliot nunca fez as pazes. Como observa o estudioso

    Raymond Williams, num ensaio sobre o poeta:A desolao, que um tipo de disciplina, inteiramente salutar: oNovo Conservadorismo, ora em moda, tem sido muito indulgente.Se Eliot, quando lido atentamente, tem o efeito de refrear ascomplacncias do liberalismo, ele tem tambm, quando lido

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    criticamente, o efeito de tornar impossvel o conservadorismocomplacente. O prximo passo, ao se pensar sobre esses assuntos,deve ser dado numa direo diferente, pois Eliot fechou quase todosos caminhos existentes (Raymond Williams, Culture and Society).

    Nelson Ascher

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    Definition: 1. The settin of bounds; limitation (rare)1483

    - Oxford English Dictionary

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    PREFCIO EDIO DE 1962

    Estas Notas comearam a tomar forma por volta do fim da Segunda GuerraMundial. Quando me foi sugerido reedit-las em brochura, reli-as pelaprimeira vez depois de alguns anos, esperando ter que reconsiderar algumasdas opinies nelas expressas. Para surpresa minha, descobri que no tinhanada a subtrair, e nada havia que estivesse disposto a acrescentar. Uma nota, p. 91, reescrevi: pode ser ainda que tenha tentado dizer muita coisa de forma

    resumida demais, e o conceito necessita de uma elaborao melhor. Aqui eacol tentei melhorar uma frase sem alterar-lhe o sentido. A um amigo, ofalecido Richard Jennings, devo a correo de uma ortografia que conduz auma falsa etimologia (autarchy corrigida para autarky na p. 145).

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    Ultimamente, tive oportunidade de rever minha crtica literria atravs de maisde quarenta anos e examinar os desenvolvimentos e mudanas de opinio, etenciono um dia submeter minha crtica social ao mesmo exame. Pois,

    medida que um homem amadurece e adquire maior experincia do mundo,cabe esperar que os anos tragam mudanas ainda maiores em sua viso dosproblemas sociais e polticos do que em seus gostos e opinies no campo daliteratura. Hoje, por exemplo, no me intitularia um realista tout court,como fiz uma vez; diria que sou a favor de manter a monarquia em todo pasem que ainda exista uma monarquia. Porm essa questo, assim como outrassobre as quais meus pontos de vista ou meu modo de express-los tenhammudado ou se desenvolvido, no abordada no presente ensaio.

    T.S.E.

    Outubro de 196120

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    PREFCIO PRIMEIRA EDIO

    Este ensaio foi iniciado quatro ou cinco anos atrs. Um esboo preliminar, sobo mesmo ttulo, foi publicado em trs nmeros sucessivos do The New EnglishWeekly. A partir desse esboo tomou forma um trabalho intitulado CulturalForces in the Human Order, publicado no volume Prospect for Christendom,editado por Maurice B. Reckitt (Faber, 1945); uma reviso desse trabalhoconstitui o primeiro captulo deste livro. O segundo captulo reviso de umaartigo publicado no The New English Review, em outubro de 1945.

    Incorporei, na forma de apndice, o texto em ingls de trs palestrasradiofnicas para a Alemanha, impressas sob o ttulo Die Einheit der

    Europaeischen Kultur(Carl Habel Verlagsbuchhandlung, Berlim, 1946).

    21

    Ao longo deste estudo, reconheo uma dvida especial para com os escritos doCnego V. A. Demant, de Christopher Dawson e do falecido Prof. KarlMannheim. sumamente necessrio reconhecer esta dvida em geral, j queno me referi, em meu texto, aos dois primeiros escritores, e para com o

    terceiro a minha dvida muito maior do que aparenta o contexto em quediscuto sua teoria.

    Aproveitei-me tambm da leitura de um artigo de Dwight Macdonald emPolitics (New York), de fevereiro de 1944, intitulado A Theory of PopularCulture; e de uma crtica annima desse artigo na edio de novembro de1946 do mesmo peridico. A teoria de Macdonald surpreende-me como amelhor alternativa minha prpria que eu vi.

    T.S.E.

    Janeiro de 194822

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    INTRODUO

    Acho que nossos estudos devem ser tudo menos despropositados.Querem ser realizados com pureza como a Matemtica.

    ACTON

    Meu propsito, ao escrever os captulos que seguem, no , como poderiaparecer a um exame ocasional do ndice, delinear uma filosofia poltica ou

    social; nem pretendo que o livro seja simplesmente um veculo de minhasobservaes sobre vrios tpicos. Meu objetivo ajudar a definir uma palavra,a palavra cultura.

    Assim como uma doutrina s precisa ser definida aps o aparecimento dealguma heresia, tambm uma

    23

    palavra no necessita desse cuidado at que tenha sido mal empregada. Tenhoobservado com crescente ansiedade a carreira desse vocbulo cultura, nos

    ltimos seis ou sete anos. Podemos achar natural, e significativo, que duranteum perodo de destrutividade sem paralelo essa palavra devesse assumir umpapel importante no vocabulrio jornalstico. Sua atuao, naturalmente, compartilhada pela palavra civilizao. Neste ensaio, no tentei de maneiranenhuma determinar a fronteira entre os significados desses dois termos poischeguei concluso de que qualquer tentativa nesse sentido somente poderiaproduzir lema distino artificial, peculiar ao livro, que o leitor teriadificuldade em reter; e que, fechado o livro, abandonaria com uma sensaode alvio. Usamos uma das palavras, com bastante freqncia, num contextoonde a outra se teria sado igualmente bem; existem outros contextos onde

    uma palavra obviamente se encaixa e a outra, no; e no creio que isso devacausar embarao. J existem obstculos inevitveis em demasia, nestadiscusso, sem levantarmos outros desnecessrios.

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    Em agosto de 1945, foi publicado o texto de um esboo de constituio parauma Organizao Educacional, Cultural e Cientfica das Naes Unidas(UNESCO). A finalidade dessa organizao era definida no artigo I comosegue:

    1. Desenvolver e manter o entendimento mtuo e a consideraoda vida e da cultura, das artes, das humanidades e das cinciasdos povos do mundo como base para uma efetiva organizaointernacional e paz mundial.

    2. Cooperar na ampliao e na extenso a todos os povos, aservio das necessidades humanas comuns, de todo o cabedal deconhecimento e cultura do mundo, e na garantia de suacontribuio para a estabilidade econmica, a segurana polticae o bem-estar geral dos povos do mundo.

    24No momento, no estou preocupado em extrair um significado dessassentenas; cito-as apenas a fim de chamar ateno para a palavra cultura esugerir que, antes de influenciar tais resolues, deveramos tentar descobrir oque significa essa palavra. Este apenas um dos inmeros casos quepoderamos citar, em que usada uma palavra sem que ningum se preocupeem examinar. Em geral, a palavra empregada de duas maneiras: por umaespcie de sindoque, quando quem fala tem em mente um dos elementos ouevidncias de cultura tal como arte; ou, como na passagem acima citada,

    como uma forma de estimulante ou anestsico emocional1

    .

    1 O uso da palavra cultura, por aqueles que, segundo me parece, no ponderaramprofundamente sobre o significado da palavra antes de empreg-la, pode ser ilustrado por inmerosexemplos. Uma outra passagem pode ser suficiente. Cito-a do Times Educacional Supplement, de 5de novembro de 1945 (p. 522):

    "Por que deveramos introduzir em nosso esquema de colaborao internacional mecanismosreferentes educao e cultura?" Era essa a pergunta que se fazia o Primeiro-Ministro quandofalava aos delegados de quase 40 naes presentes Conferncia das Naes Unidas com o intuitode estabelecer uma Organizao Educacional e Cultural em Londres, na quinta-feira noite,

    apresentando-lhes as saudaes do Governo de Sua Majestade... O Sr. Attlee conclua com umargumento: se temos de conhecer nossos vizinhos, devemos compreender sua cultura, atravs deseus livros, jornais, rdios e filmes.

    O ministro da Educao comprometeu-se ao seguinte:

    "Agora estamos todos juntos: trabalhadores da educao, da pesquisa cientfica, dos variadoscampos da cultura. Representamos aqueles que ensinam, aqueles que descobrem, aqueles que

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    No comeo do primeiro captulo, esforcei-me por distinguir e relacionar ostrs principais usos da palavra; e por deixar claro que, ao usarmos o termonuma dessas.

    25trs maneiras, deveramos ter conscincia das outras. Tento ento mostrar arelao essencial entre cultura e religio, e tornar claras as limitaes dapalavra relao como expresso dessa relao. A primeira afirmaoimportante que nenhuma cultura apareceu ou se desenvolveu a no ser emconjunto com uma religio; segundo o ponto de vista do observador, a culturaparecer ser o produto da religio; ou a religio, o produto da cultura.

    Nos trs captulos seguintes, discuto o que me parecem ser trs condiesimportantes para a cultura. A primeira uma estrutura orgnica (no apenas

    planeja da, mas em crescimento), que alimentava a transmisso hereditria decultura dentro de uma cultura; e isso requer a persistncia das classes sociais.A segunda a necessidade de que uma cultura seja decomponvel,geograficamente, em culturas locais: isso levanta o problema doregionalismo. A terceira o equilbrio entre unidade e diversidade nareligio isto , universalidade de doutrina com particularidade e culto edevoo. O leitor deve ter em mente que no estou pretendendo explicar todasas condies necessrias para o florescimento de uma cultura; discuto trs queespecialmente me chamaram a ateno2. Ele deve tambm lembrar-se

    escrevem, aqueles que expressam sua inspirao na msica e na arte... Finalmente temos cultura.Alguns podem argir que o artista, o msico, o escritor, todos os criadores nas humanidades e nasartes no podem organizar-se nacional ou internacionalmente. O artista, j o disseram, trabalha paraagradar a si mesmo. Isso pode ter sido um argumento defensvel antes da guerra. Mas aqueles dens que se recordam da luta no Extremo Oriente e na Europa nos dias que antecederam a guerraaberta sabem o quanto a luta contra o fascismo dependeu da determinao de escritores e artistas emmanterem seus contatos internacionais que podiam estabelecer atravs das barreiras fronteirias quese erguiam rapidamente."

    oportuno acrescentar que, quando se falam tolices sobre cultura, no h escolha entrepolticos de uma corrente ou de outra. Tivesse a eleio de 1945 levado ao poder o partidoalternativo, teramos ouvido o mesmo pronunciamento nas mesmas circunstncias. A atividadepoltica incompatvel com uma ateno estrita aos significados exatos em todas as ocasies. Oleitor, portanto, deve abster-se de ridicularizar o Sr. Attlee ou a falecida Miss Wilkinson.

    2 Num suplemento ilustrativo ao Christian News-Letter de 24 de julho de 1946, MarjorieReeves apresenta um pargrafo muito sugestivo sobre "A Cultura de uma Indstria". Embora tenhaampliado de algum modo seu significado, o que ela diz condiria com meu prprio modo de usar a

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    de que aquilo que ofereo no um conjunto de instrues para fabricar uma

    cultura. No digo que, ao comear a produzir essas condies, ou algumasoutras adicionais, possamos esperar seguramente melhorar nossa civilizao.Digo apenas que, at onde vo minhas observaes, improvvel que hajauma civilizao de alto nvel onde estejam ausentes tais condies.

    Os dois captulos restantes fazem uma leve tentativa de desembaraar acultura da poltica e da educao.

    Ouso dizer que alguns leitores iro tirar dedues polticas desta discusso; omais provvel que determinadas mentes lero em meu texto a confirmao

    ou o repdio de suas prprias convices e preconceitos polticos. O prprioautor no est isento de convices e preconceitos polticos; mas imp-los nofaz parte de suas intenes atuais. O que tento dizer isto: aqui esto o queacredito serem as condies essenciais para o crescimento e a sobrevivnciada cultura. Se elas conflitarem com alguma convico arraigada do leitor se,por exemplo, ele achar chocante que cultura e igualitarismo devam bater-se, selhe parecer monstruoso que qualquer um deva ter trunfos de nascena nopeo a ele que modifique sua convico, apenas que pare de tagarelar sobrecultura. Se o leitor disser: o estado de coisas que desejo organizar correto(ou justo3, ou

    palavra "cultura". Diz ela, da cultura de uma indstria, o que acredita dever ser apresentadototalmente ao jovem operrio: "inclui a geografia de suas matrias-primas e mercados finais, suaevoluo histrica, invenes e cabedal cientfico, sua economia e assim por diante". Inclui tudoisso, certamente; mas uma indstria, se quer cativar o interesse de mais do que a mente conscientedo operrio, deveria ter um modo de vida algo puculiar aos seus iniciados, com suas prpriasformas de festividade e observncias. Menciono esse interessante lembrete da cultura de indstria,contudo, como evidncia de que tenho conscincia de outros ncleos de cultura alm dos discutidosnesse livro.

    3 Devo introduzir aqui um parnteses, num protesto contra o mau emprego correntemente do

    termo "justia social". Do significado "justia nas relaes entre grupos ou classes", pode-seescorregar para outro significado: a presuno particular de como deveriam ser tais relaes; epode-se apoiar um curso de ao porque representava o objetivo de "justia social", que no eracorreto do ponto de vista da "justia". O termo "justia social" corre o risco de perder seu contedoracional que seria substitudo por uma forte carga emocional. Acho que eu mesmo usei o termo:nunca deveria ser empregado a menos que o usurio estivesse preparado para definir com clareza oque significa para ele a justia social, e por que ele a acha justa.

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    inevitvel);. e se isso deve levar a uma deteriorao ulterior da cultura,

    devemos aceitar essa deteriorao ento no posso me desavir com ele.Poderia at, em certas circunstncias, sentir-me obrigado a apoi-lo. O efeitode uma tal onda de honestidade seria que a palavra cultura deixaria de ser malempregada, deixaria de aparecer em contextos a que no pertence; e resgataressa palavra o mximo de minha ambio.

    Do modo como esto as coisas, para algum que defenda alguma mudanasocial, ou alguma alterao de nosso sistema poltico, ou alguma expanso daeducao pblica, ou algum desenvolvimento do servio social, normal quecom confiana que isso levar melhora e ao aumento de cultura. s vezes a

    cultura, ou civilizao, posta em primeiro plano, e nos dito que aquilo quenecessitamos, devemos ter e obteremos, uma nova civilizao. Em 1944, lium simpsio no The Sunday Times (31 de novembro) onde o Prof HaroldLaski, ou seu redator, afirmava que lutamos a guerra passada por uma novacivilizao. Laski afirmou pelo menos isto:

    Se concordamos em que aqueles que procuram reconstruir o que oSr. Churchill gosta de chamar a Gr-Bretanha tradicional no tmesperanas de cumprir esse objetivo, segue-se que deve ser umanova Gr-Bretanha numa nova civilizao.

    Poderamos resmungar no concordamos, mas seria fugir ao meu desgnio.Laski tem razo at o seguinte ponto: se perdermos algo de modo absoluto e irreparvel, deveremos arranjar-nos sem ele; mas acho que ele quis dizer algomais do que isso.

    Laski est, ou estava convencido de que as mudanas sociais e polticasespecficas que ele deseja intro-

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    duzir, e que acredita serem vantajosas para a sociedade, iro, por serem to

    radicais, resultar numa nova civilizao. Isso bastante concebvel: o que notemos justificativa para concluir, com respeito s suas ou quaisquer outrasmudanas na estrutura social que algum defende, que a nova civilizaoseja em si desejvel. Por outro lado, no podemos ter idia de como ser anova civilizao: tantas outras causas atuam, alm daquelas que podemos ter

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    em mente, e to incalculveis so os efeitos de todas elas em conjunto, queno podemos imaginar como nos sentiramos vivendo nessa nova civilizao.Por outro lado, as pessoas que viverem nessa nova civilizao sero, pelo fatode pertencerem a ela, diferentes de ns, e igualmente diferentes de Laski.Toda mudana que fazemos tende a produzir uma nova civilizao, de cujanatureza somos ignorantes, e na qual deveramos todos ser infelizes. Naverdade uma nova civilizao se est formando o tempo todo: a civilizao denossos dias pareceria realmente novssima a qualquer homem civilizado dosculo XVIII, e no posso imaginar o reformador mais ardente ou radicaldaquela poca muito satisfeito com a civilizao que veria hoje. Tudo o queum cuidado com a civilizao pode levar-nos a fazer aperfeioar acivilizao que temos hoje, pois no podemos conceber outra. Por outro lado,sempre houve pessoas que acreditaram serem certas mudanas positivas em si

    mesmas, sem se preocuparem com o futuro da civilizao, e sem acharemnecessrio recomendar suas inovaes pelo brilho especioso de promessassem sentido.

    Sempre est sendo feita uma nova civilizao: o estado de coisas quedesfrutamos hoje ilustra o que acontece s aspiraes de cada poca por umaera melhor. A questo mais importante que podemos colocar se existe algumpadro permanente pelo qual possamos comparar uma civilizao com outra, epelo qual possamos arriscar um palpite sobre a melhora ou o declnio

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    da nossa. Temos que admitir, ao comparar uma civilizao com outra, e aocomparar os diversos estgios da nossa, que nenhuma sociedade em nenhumperodo compreende todos os valores da civilizao. Nem todos esses valorespodem ser mutuamente compatveis: o que ao menos igualmente certo que,ao captarmos alguns, perdemos a noo de outros. No obstante, podemosdistinguir entre culturas superiores e inferiores; podemos distinguir entreavano e retrocesso. Podemos afirmar com certa segurana que o nossoperodo de declnio; que os padres de cultura so mais baixos do que eramcinqenta anos atrs; e que as evidncias desse declnio so visveis em cada

    departamento da atividade humana4. No vejo razo por que a decadncia dacultura no devesse ir muito mais longe, nem por que no possamos prever um

    4 Para uma confirmao, de um ponto de vista muito diferente daquele a partir do qual foiescrito este ensaio, ver Our Threatened Values de Victor Gollancz (1946).

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    perodo, de alguma durao, do qual se pudesse dizer que no tem cultura.Ento, a cultura ter de recomear do zero; e quando digo que ter derecomear do zero, no quero dizer com isso que ser criada por algumaatividade de demagogos polticos. A questo levantada por este ensaio seexistem algumas condies permanentes, em cuja ausncia no se possaesperar uma cultura superior.

    Se conseguirmos, mesmo parcialmente, responder a essa questo, deveremosento nos pr em guarda contra a iluso de tentar realizar essas condies a

    fim de melhorar nossa cultura. Pois, se deste estudo resultarem algumasconcluses definidas, uma delas ser certamente que a cultura algo que nopodemos visar deliberadamente. o produto de uma mirade de atividadesmais ou menos harmnicas, cada qual exercida por sua prpria finalidade: oartista deve concentrar-se em sua tela, o poeta em sua mquina de escrever, o

    servidor pblico

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    na correta resoluo de problemas particulares medida que caem sobre suamesa, cada um de acordo com a situao em que se encontra. Mesmo queessas condies com que me preocupo paream ao leitor representar metassociais desejveis, no deve ele saltar concluso de que essas metas podemser atingidas unicamente atravs de organizao deliberada. Uma diviso dasociedade em classes, planejada por uma autoridade absoluta, seria artificial e

    intolervel; uma descentralizao sob um comando central seria umacontradio; uma unidade eclesistica no pode ser imposta na esperana detrazer unidade de f, e uma diversidade religiosa cultivada por si s seriaabsurda. O ponto ao qual podemos chegar o reconhecimento de que essascondies de cultura so naturais aos seres humanos; que, embora poucopossamos fazer para encoraj-las, podemos combater os erros intelectuais e ospreconceitos emocionais que se lhe deparam no caminho. Quanto ao restante,deveramos buscar o aperfeioamento da sociedade, do mesmo modo queprocuramos o nosso individualmente, em detalhes relativamente diminutos.No podemos dizer: Vou tornar-me uma pessoa diferente; podemos apenas

    dizer: Vou largar este mau hbito, e esforar-me por adquirir este bom.Assim, da sociedade podemos dizer apenas: Tentaremos melhor-la nesteaspecto ou naquele, onde evidente um excesso ou falha; devemos tentar aomesmo tempo ter uma viso to ampla que possamos evitar, ao endireitaralguma coisa, fazer estragos noutra. Mesmo isso equivale a expressar uma

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    aspirao maior do que podemos alcanar: pois tanto, ou mais, por aquilo quefazemos pouco a pouco sem entender ou prever as conseqncias, que acultura de uma poca difere da de sua predecessora.

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    1. OS TRS SENTIDOS DE CULTURA

    O termo cultura tem associaes diferentes segundo tenhamos em mente odesenvolvimento de um indivduo, de um grupo ou classe, de toda umasociedade. Parte da minha tese que a cultura do indivduo depende da culturade um grupo ou classe, e que a cultura do grupo ou classe depende da culturada sociedade a que pertence este grupo ou classe. Portanto, a cultura dasociedade que fundamental, e o significado do termo cultura em relaocom toda a sociedade que deveramos examinar primeiro. Quando se aplica

    o termo cultura manipulao de, organismos inferiores obra dobacteriologista, ou do agriculturalista o significado bastante claro, pois possvel alcanar unanimidade com respeito aos objetivos a atingir, e podemosconcor-

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    dar quando os atingimos ou no. Quando aplicado melhoria da mente e doesprito humanos-,,estamos menos aptos a concordar com o que a cultura. Oprprio termo, com o significado de algo a ser objetivado conscientemente nasquestes humanas, no tem uma histria muito longa. Como algo a ser

    realizado por esforo deliberado, a cultura relativamente inteligvelquando estamos diante do auto-desenvolvimento do indivduo, cuja cultura vista contra-o background cultural do grupo e da sociedade. Tambm a culturado grupo tem um significado definido em comparao com a cultura menosdesenvolvida da massa da sociedade. Pode-se entender melhor a diferenaentre as trs aplicaes do termo se indagarmos at que ponto, com relao aoindivduo, ao grupo e sociedade como um todo, tem algum significado oobjetivo consciente de conseguir cultura. Poder-se-ia evitar uma boa parcelade confuso, se nos abstivssemos de colocar para o grupo o que pode ser o

    objetivo apenas do indivduo; e para toda a sociedade o que pode ser oobjetivo unicamente de um grupo

    O sentido geral, ou antropolgico, da palavra cultura, tal como o usou, porexemplo, E.B. Tylor no ttulo de sua obra Primitive Culture, distinguiu-seindependentemente dos outros sentidos: mas se estamos considerando

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    Se examinarmos as diversas atividades culturais arroladas no pargrafoanterior, devemos concluir que a perfeio em qualquer uma delas, com

    excluso das outras, no pode conferir cultura a ningum. Sabemos que boasmaneiras sem educao, inteligncia ou sensibilidade para as artes, tendem aser mero automatismo; que erudio sem boas maneiras ou sensibilidade pedantismo; que a capacidade intelectual sem os atributos mais humanos toadmirvel quanto o brilho de uma criana-prodgio em xadrez; e que as artessem o contexto intelectual vaidade. E se no encontramos cultura emqualquer dessas perfeies isoladamente, no devemos esperar que algumapessoa seja perfeita em todas elas; podemos at inferir que o indivduototalmente culto uma iluso; e iremos buscar cultura, no em algumindivduo ou em algum grupo de indivduos, mas num espao cada vez mais

    amplo; e somos levados, afinal, a ach-la no padro de toda sociedade. Issome parece uma reflexo bastante bvia, porm negligenciada com muitafreqncia. Sempre somos propensos a considerar-nos pessoas de cultura, combase numa competncia, quando somos no s faltos de outras, mas cegos sque nos faltam. Um artista de qualquer tipo, mesmo um artista renomado, no por essa nica razo um homem de cultura; os artistas no somente soinsensitivos s outras artes que no aquelas que praticam, mas tambm, svezes, tm pssimas maneiras e dons intelectuais escassos. A pessoa quecontribui para a cultura, por mais importante que possa ser sua contribuio,

    nem sempre uma pessoa culta.No decorre da que no tenha sentido falar da cultura de um indivduo, ou deum grupo ou classe. Queremos dizer apenas que a cultura do indivduo nopode ser isolada da do grupo, e que a cultura do grupo no pode ser abstradada sociedade inteira; e que nosso conceito de perfeio deve considerar aomesmo tempo os trs sentidos de cultura. No se segue tam-

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    pouco que numa sociedade, qualquer que seja seu grau de cultura, os grupos

    envolvidos em cada atividade cultural sejam distintos e exclusivos: aocontrrio, somente mediante uma superposio e partilha de interesses, graas participao e apreciao mtua, que se pode alcanar a coesonecessria cultura. Uma religio exige no s um corpo de sacerdotes que

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    saibam o que esto fazendo, mas tambm um corpo de fiis que saibam o queest sendo feito.

    bvio que, entre as comunidades mais primitivas, as diversas atividades de

    cultura so inextricavelmente entrelaadas. O dayak que gasta a maior parte daestao modelando, escarvando e pintando seu barco com o desenho peculiarexigido pelo ritual anual de caa-de-cabea, est exercendo diversas atividadesculturais ao mesmo tempo de arte e de religio, bem como de guerra anfbia. medida que a civilizao se toma mais complexa, revela maiorespecializao ocupacional: nas Novas Hbridas da idade da pedra, diz JohnLayard, alguns ilhus se especializam em artes e ofcios particulares, trocandoseus produtos e exibindo suas habilidades para a satisfao recproca dosmembros do arquiplago. Todavia, embora os indivduos de uma tribo, ou deum grupo de ilhas ou aldeias, possam ter funes separadas das quais as

    mais peculiares so as do rei e do feiticeiro somente num estgio posterior que a religio, a cincia, a poltica e a arte foram abstrata mente concebidasisoladas uma da outra. E, assim como as funes dos indivduos se tomamhereditrias, e a funo hereditria se cristaliza em distino de classe ou decasta, e a distino de classe desemboca em conflito, tambm a religio, apoltica, a cincia e a arte atingem um ponto em que surge uma luta conscienteentre elas por uma autonomia ou dominao. Este atrito, em algumas fases ealgumas situaes, altamente criativo; at onde o resultado, e at onde acausa, do aumento de conscincia no precisamos considerar aqui. A tenso

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    dentro da sociedade pode torna-se tambm uma tenso dentro da mente doindivduo mais consciente: o conflito de deveres em Antgone, que no simplesmente um conflito entre devoo e obedincia civil, ou entre religio epoltica, mas entre leis conflitantes dentro do que ainda um complexopoltico-religioso, representa um estgio bastante avanado de civilizao:pois o conflito deve ter significado na experincia da platia antes que possaser articulado pelo dramaturgo e receba da platia a resposta que a arte dodramaturgo requer.

    A medida que a sociedade se desenvolve rumo a uma complexidade ediferenciao funcionais, cabe esperar a emergncia de diversos nveisculturais: em suma, apresentar-se- a cultura de classe ou de grupo. No serquestionado, penso eu, que em qualquer sociedade futura, assim como toda

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    sociedade civilizada do passado, deve haver esses nveis diferentes. No achoque os defensores mais ardorosos da igualdade social contestem isso: adiferena de opinio depende de ter sido a transmisso da cultura do grupofeita por herana se cada nvel cultural deve propagar-se ou se se podeesperar encontrar algum mecanismo de seleo, de modo que cada indivduo,no devido progresso, tomar seu lugar no mais alto nvel cultural a quequalifiquem suas aptides naturais. O que pertinente nesse ponto que o_surgimento de grupos mais cultos no deixa de afetar o resto da sociedade: ele mesmo parte de um processo em que toda a sociedade muda. E certo eespecialmente bvio quando voltamos nossa ateno para as artes que,conforme aparecem novos valores, e o pensamento, a sensibilidade e aexpresso se tornam mais elaborados, desaparecem alguns valores maisantigos. Isso quer dizer apenas que no podemos esperar ter todos os estgios

    de desenvolvimento ao mesmo tempo; que uma civilizao no pode produzirsimultaneamente uma grande poesia popular num nvel cultural e o ParasoPerdido no outro. Na verdade, a nica coisa que o

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    tempo sempre est certo de realizar a perda: ganho ou compensao quaseconcebvel mas nunca certo. Embora o progresso na civilizao parea tornarmais especializados os grupos de cultura, no devemos esperar que estedesenvolvimento seja desacompanhado de perigos. Da especializao culturalpode resultar a desintegrao cultural-: )e a desintegrao mais radical que

    uma sociedade pode sofrer. No o nico tipo, ou no o nico aspecto sob oqual se pode estudar a desintegrao; mas, qualquer que seja a causa ou oefeito a desintegrao da cultura a coisa mais sria e a mas difcil deconsertar. (Estamos enfatizando aqui, claro, a cultura de toda a sociedade.)No se deve confundir com outra doena, ossificao em casta, como na ndiahindu, o que pode ter sido originariamente apenas una hierarquia de funes:mesmo que ambas as doenas tenham possivelmente alguma influncia sobrea sociedade britnica atual. Est presente a desintegrao cultural quando doisou mais estratos se separam de tal modo que se tornam na verdade culturas

    distintas, e tambm quando a cultura no nvel superior do grupo se rompe emfragmentos, cada um dos quais representa sozinho uma atividade cultural. Seno me engano, j ocorreu, na sociedade ocidental, alguma desintegrao dasclasses em que a cultura est, ou deve estar, mais desenvolvida bem comoalguma separao cultural entre um e outro nvel da sociedade. Pensamento e

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    prtica religiosos, filosofia e arte, todos tendem a tornar-se reas isoladas,cultivadas por grupos sem qualquer comunicao entre si. A sensibilidadeartstica se empobrece, com seu divrcio da sensibilidade religiosa, a religiosacom sua separao da artstica; e o resqucio de maneiras pode ser deixado auns poucos sobreviventes de uma classe em desaparecimento que, com asensibilidade no-rei-nada pela religio ou pela arte e as mentes no-providasdo material para uma conversao engenhosa, no ter contextura em suasvidas para dar valor a seu compor-

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    tamento. E a deteriorao nos nveis mais altos matria de interesse, no spara o grupo que afetado visivelmente, mas tambm para todo o povo.

    As causas de um declnio total da cultura so to complexas como variada a

    evidncia desse declnio. Entre as razes apresentadas, por diversosespecialistas, como causas das doenas sociais mais prontamente apreendidasdevem-se encontrar algumas para as quais precisamos continuar a procurarremdios especficos. No obstante, a cada vez tomamos maior conscincia daextenso com que o problema desnorteante da cultura a base dosproblemas da relao de cada parte do mundo entre si. Quando nosinteressamos pela relao das grandes naes entre si; pela relao dasgrandes naes com as pequenas5; pela relao das comunidades mescladasentre si, como na ndia; pela relao das naes-me com aquelas que dela se

    originaram na forma de colnias; pela relao do colonizador com o nativo;pela relao entre povos de reas como as ndias Ocidentais, onde acompulso e o induzimento econmicos criaram grande nmero de raasdiferentes: por trs de todas essas questes desconcertantes, envolvendodecises a serem tomadas diariamente por muitos homens, existe a questo doque a cultura, e a questo de saber se algo que podemos controlar ouinfluenciar deliberadamente. Tais questes se nos deparam sempre quearticulamos uma teoria, ou concebemos uma polti-

    5 Este ponto aflorado, embora sem qualquer discusso do significado de "cultura", por E. H.

    CARR, Conditions of Peace, 1 Parte, cap. III. Diz ele: "Numa terminologia canhestra masconveniente que teve origem na Europa Central, devemos distinguir entre `nao cultural' e 'nao-estado'. A existncia de um grupo lingstico ou racial mais ou menos homogneo, ligado por umatradio comum e pelo cultivo de uma cultura comum deve cessar de fornecer um caso prima faciepara o estabelecimento ou a manuteno de uma unidade poltica independente". Contudo, Carr estmais preocupado aqui com o problema da unidade poltica, do que com o da preservao deculturas, ou com a questo de saber se so dignas de preservao, na unidade poltica.

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    ca, de educao. Se levarmos a srio a cultura, vemos que uma pessoa noprecisa simplesmente de comer o suficiente (mesmo que seja mais do que

    somos capazes de prover) mas de uma cozinha adequada e particular: umsintoma do declnio da cultura na Gr-Bretanha a indiferena pela arte depreparar alimentos. Podemos at descrever a cultura simplesmente comoaquilo que toma a vida digna de ser vivida. E o que justifica outros povos eoutras geraes quando dizem, ao contemplarem os resqucios e a influnciade uma civilizao extinta, que valeu a pena ter existido esta civilizao.

    J afirmei, na introduo, que nenhuma cultura pode surgir ou desenvolver-sesalvo em relao com uma religio. Mas o uso do termo relao aqui podefacilmente induzir-nos a erro. A fcil presuno de um relacionamento entre

    cultura e religio talvez a maior fragilidade de Culture and Anarchy deArnold. Este autor d a impresso de que a Cultura (como ele usa o termo) algo mais compreensivo que a religio; que essa ltima no passa de umelemento necessrio, que prov formao tica e algum matiz emocional, Cultura que o valor ltimo.

    Pode parecer estranho ao leitor que aquilo que eu disse sobre odesenvolvimento da cultura, e sobre os perigos de desintegrao depois que acultura atingiu seu estgio mais desenvolvido, possa aplicar-se igualmente histria da religio. O desenvolvimento da cultura e o desenvolvimento da

    religio, numa sociedade no-influenciada de fora, no podem ser claramenteisolados um do outro; e depender do ngulo de viso do observador particulardescobrir se a causa do progresso na religio um refinamento da cultura, ouse a causa do refinamento da cultura o progresso na religio. O que talveznos influencie a tratar a religio e a cultura como duas coisas diferentes ahistria da penetrao da cultura greco-romana pela F crist penetrao queteve efeitos profundos tanto sobre essa cultura quanto

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    sobre o curso do desenvolvimento que assumiram o pensamento e a prtica

    cristos. Mas a cultura com que entrou em contato o Cristianismo primitivo(bem como a do meio em que se originou o Cristianismo) era, por si mesma,uma cultura religiosa declinante. Desse modo, embora acreditemos que amesma religio possa animar vrias culturas, podemos indagar se algumacultura pode formar-se, ou manter-se, sem uma base religiosa. Podemos ir

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    mais longe e perguntar se o que chamamos cultura, e o que chamamosreligio, de um povo no so aspectos diferentes da mesma coisa sendo acultura, essencialmente, a encarnao (por assim dizer) da religio de umpovo. Colocar a matria deste modo pode esclarecer minhas reservas notocante ao termo relao.

    A medida que a sociedade se desenvolve, surgiro maior nmero de graus etipos de competncias e funo religiosas bem como de outras competnciase funes. Cabe notar que, em algumas religies, a diferenciao tem sido toampla que, na verdade, resultaram duas religies: uma para o populacho e umados adeptos. Os males de duas naes religiosas so bvios. O Cristianismoresistiu a essa doena melhor que o Hindusmo. Os cismas do sculo XVI, e osubseqente pulular de seitas, podem ser estudados como a histria da divisodo pensamento religioso, ou como a luta entre grupos sociais opostos como

    a variao da doutrina, ou como a desintegrao da cultura europia. Todavia,embora sejam lamentveis essas amplas divergncias de crena no mesmonvel, a F pode, e deve, achar lugar para muitos graus de receptividadeintelectual, imaginativa e emocional s mesmas doutrinas, assim como podeadotar muitas variaes de ordem e de ritual. A F crist tambm, consideradapsicologicamente como sistema de crenas e atividades em mentes especficaspersonificadas, ter uma histria: embora seja um erro grosseiro supor que osentido em que se fala de seu desenvolvimento e mudana implica que umasantidade maior ou

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    uma iluminao divina se tornem disponveis aos seres humanos mediante oprogresso coletivo. (No admitimos que haja, por um longo perodo, progressomesmo na arte, ou que a arte primitiva seja, como arte, necessariamenteinferior mais sofisticada.) Mas um dos aspectos do desenvolvimento, seestamos adotando o ponto de vista religioso ou cultural, o surgimento doceticismo termo pelo qual, claro, no quero significar infidelidade oudestrutibilidade (muito menos a incredulidade que decorre da preguiamental), mas o hbito de examinar evidncias e a capacidade de retardar uma

    deciso. O ceticismo um trao altamente civilizado, embora, quandodescamba para o pirronismo, seja algo que pode levar a civilizao morte.Onde o ceticismo fora, o pirronismo fraqueza; pois precisamos no s defora para adiar uma deciso, mas tambm de fora para tom-la.

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    A concepo de que a cultura e a religio, tomado cada termo no contextocerto, so aspectos diferentes da mesma coisa, exige uma boa dose deexplicaes. Mas gostaria de sugerir primeiro que ela nos fornece os meios decombater erros complementares. Um, mantido com mais amplitude, que acultura pode ser preservada, estendida e desenvolvida na ausncia de religio.Tal erro pode ser sustentado pelo cristo em comum com o infiel, e suarefutao adequada necessitaria de uma anlise histrica mais fina, porque averdade no imediatamente aparente e possvel mesmo ser contraditadapelas aparncias: uma cultura pode estar doente, e assim mesmo produziralguns de seus mais brilhantes sucessos artsticos e outros, depois que a freligiosa caiu em declnio. Outro erro a crena de que a preservao emanuteno da religio no precisa adequar-se preservao e manuteno dacultura: uma crena que pode at levar rejeio dos produtos culturais como

    frvolas obstrues vida espiritual. Para rejeitarmos esse erro, tanto quanto ooutro, ser necessrio que to-

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    memos alguma distncia, que recusemos aceitar a concluso, quando a culturaque observamos uma cultura em declnio, de que a cultura alguma coisa aque podemos dar-nos o luxo de ficar indiferentes. E devo acrescentar que verdessa maneira a unidade da cultura e da religio no implica que todos osprodutos de arte possam ser aceitos sem crtica, nem fornece um critrio peloqual todos podem distinguir imediatamente entre eles. A sensibilidade esttica

    deve ampliar-se em percepo espiritual, e a percepo espiritual devetransformar-se em sensibilidade esttica e gosto disciplinado antes queestejamos qualificados a fazer um julgamento sobre decadncia ou diabolismoou niilismo na arte. Julgar uma obra de arte a partir de padres artsticos oureligiosos, julgar uma religio segundo padres religiosos ou artsticos, nofinal das contas, viria a ser a mesma coisa, embora seja um fim a que nenhumindivduo pode chegar.

    O modo de encarar a cultura e a religio que estive tentando prefigurar todifcil que no estou certo de entend-lo eu mesmo a no ser em lampejos, ou

    de compreender todas as suas implicaes. tambm um modo que envolve orisco de erro a cada momento, por alguma alterao despercebida dosignificado que um ou outro termo tem quando os dois esto acoplados dessamaneira, para algum significado que um ou outro possa ter quando tomadoisoladamente. Isso se confirma apenas no sentido de que as pessoas so

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    inconscientes tanto de sua cultura quanto de sua religio. Qualquer um dotadoda mais leve conscincia religiosa deve-se afligir de tempos em tempos com ocontraste entre sua f religiosa e sua conduta; qualquer um com o gosto que acultura individual ou de grupo confere deve ter conscincia dos valores queele no pode chamar religiosos. E tanto a religio quanto a cultura, almde significarem coisas diferentes uma da outra, significariam para o indivduoe para o grupo alguma coisa pela qual

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    lutam, e no simplesmente alguma coisa que possuem. No obstante, h umaspecto onde podemos ver a religio como todo o modo de vida de um povo,do. nascimento sepultura, da manh noite e mesmo no sono, e esse modode vida tambm sua cultura. E ao mesmo tempo devemos reconhecer que,

    quando essa identificao total, ela significa em sociedades atuais tanto umacultura inferior como uma religio inferior. Uma religio universal pelomenos potencialmente superior quela que alguma raa ou nao reivindiqueexclusivamente para si mesma; e cultura que pratica uma religio igualmentepraticada por outras culturas ao menos potencialmente uma cultura, superiorquela que tem uma religio exclusivamente sua. De um ponto de vista,podemos identificar; de outro, devemos separar.

    Tomando agora o ponto de vista da identificao, o leitor deve lembrar-se,como o autor tem de faz-lo constantemente, do quanto abrange aqui o termo

    cultura. Inclui ele todas as atividades e interesses caractersticos de um povo:o Derby Day, a Henley Regatta, Cowes, o 12 de Agosto, a deciso da Copa, ascorridas de ces, a mesa de pinos, o alvo de dardos, o queijo Wensleydale, orepolho cozido e cortado em pedaos, beterraba em vinagre, as igrejas gticasdo sculo XIX e a msica de Elgar. O leitor pode elaborar sua prpria lista. Eento temos de enfrentar a estranha idia de que aquilo que parte de nossacultura tambm o de nossa religio vivida.

    No devemos considerar nossa cultura como totalmente unificada minhalista acima foi planejada para evitar essa sugesto. E a verdadeira religio de

    qualquer povo no-europeu sempre tem sido puramente crist, ou puramenteoutra coisa. H sempre pedaos ou traos de crenas mais primitivas, mais oumenos absorvidas; h sempre a tendncia a crenas parasitas; h sempreperverses, como no caso em que o patriotismo, que concerne religionatural e portanto lcito e mesmo em-

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    corajado pela Igreja, se toma exagerado a ponto de converter-se em caricatura

    de si mesmo. E fcil demais um povo manter crenas contraditrias epropiciar mutuamente poderes antagnicos.

    Algo que pode ser muito desconcertante, uma vez que permitamos que nossaimaginao brinque com isso, pensar que aquilo em que acreditamos no simples mente o que formulamos e subscrevemos, mas que o comportamentotambm crena, e que mesmo. o mais consciente e desenvolvido de ns vivetambm no nvel em que no podem ser distinguidos crena e comportamento.> Isso d uma importncia s nossas atividades mais triviais, ocupao decada minuto nosso, que no podemos contemplar por muito tempo sem o

    horror do pesadelo. Quando consideramos a qualidade da integraonecessria para o pleno desenvolvimento da vida espiritual, devemos ter emmente a possibilidade de graa e os exemplares de santidade a fim de nomergulharmos no desespero. E quando consideramos o problema daevangelizao, do desenvolvimento de uma sociedade crist, temos razo emdesanimar. Acreditar que ns somos uma pessoa religiosa e que os outros notm religio uma simplificao que beira distoro. Pensar que, de umponto de vista, religio cultura e, de outro, cultura religio pode ser muitoperturbador. Indagar se o povo j no tem uma religio, em que o Derby Day e

    a pista de corrida de ces tenham seu papel, embaraoso; assim, a sugesto que parte da religio dos clrigos mais elevados so as botinas e o Ateneu.No conveniente que alguns cristos achem que, como cristos, noacreditam bastante, e que por outro lado eles, como todos os outros, acreditamem coisas demais: todavia, isso uma conseqncia da reflexo de que osbispos so uma parte da cultura inglesa, e os cavalos e ces so uma parte dareligio inglesa.

    Admite-se comumente que existe cultura, mas que ela a propriedade de umapequena parcela da socieda-

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    de; e a partir dessa admisso costuma-se derivar para uma de duas concluses:ou a cultura pode ser apenas a preocupao de uma pequena minoria, eportanto no h lugar para ela na sociedade do futuro; ou na sociedade dofuturo a cultura que foi a posse de poucos deve ser colocada disposio detodos. Essa admisso e suas conseqncias lembram-nos a antipatia puritanapelo monasticismo e pela vida asctica: pois, assim como uma cultura que acessvel somente minoria censurada agora, tambm a vida contemplativae fechada era condenada pelo protestantismo extremado, e o celibatoconsiderado quase com tanto horror quanto a perverso.

    A fim de apreender a teoria da religio e da cultura que me esforcei porestabelecer neste captulo temos de tentar evitar os dois erros alternativos: o deconsiderar a religio e a cultura como duas coisas separadas entre as quaisexiste uma relao, e o de identificar religio e cultura. Num ponto falei da

    cultura de um povo como uma encarnao da sua religio e, embora estejacnscio da temeridade de empregar um termo to exaltado, no posso pensarem outro que exprima to bem a inteno de evitar, de um lado, a reao e, deoutro, a identificao. A verdade, a verdade parcial, ou a falsidade de umareligio no consiste nas realizaes culturais das pessoas que professam essareligio, nem se submete a ser exatamente testada por elas. Pois o que aspessoas dizem acreditar, como mostra a sua conduta, , como eu disse, sempremuito mais e muito menos do que a sua f professada em sua pureza. Almdisso, um povo cuja cultura foi formada conjuntamente com uma religio de

    verdade parcial, pode viver essa religio (ao menos, em algum perodo de suahistria) com maior fidelidade do que outro povo que tem uma luz maisverdadeira. Somente quando imaginamos nossa cultura como ela dever ser,se nossa sociedade fosse uma sociedade realmente crist, que nos atrevemosa dizer que a cultura crist a cultura mais elevada; somente nos re-

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    ferindo a todas as fases desta cultura, que foi a cultura da Europa, quepodemos afirmar que a cultura mais elevada que o mundo j conheceu.Comparando nossa cultura como ela hoje, com a de povos no-cristos,devemos estar preparados para descobrir que a nossa , sob um ou outroaspecto, inferior. No negligencio a possibilidade de que a Gr-Bretanha, se

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    consumou sua apostasia reformando-se segundo as prescries de algumareligio inferior ou materialista, possa florescer numa cultura mais brilhantedo que a que podemos mostrar atualmente. Isso no seria evidncia de que anova religio era verdadeira e de que o Cristianismo era falso. Provariasimplesmente que qualquer religio, enquanto dura e em seu prprio nvel, dum significado aparente vida, fornece a estrutura para uma cultura, e protegea massa da humanidade do tdio e do desespero.

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    2. A CLASSE E AS ELITES

    Segundo a apreciao de nveis de cultura evidenciada no captulo anterior,pareceria que, entre as sociedades mais primitivas, os tipos superiores exibemdiferenciaes de funo mais acentuadas entre seus membros do que os tiposinferiores6. Num estgio mais elevado ainda, achamos que algumas funesso mais

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    honradas do que outras, e essa diviso promove o desenvolvimento de classes,nas quais honra e privilgio superiores so concedidos pessoa no apenascomo funcionrio, mas como membro da classe. E a prpria classe possui umafuno, a de manter aquela parte da cultura total da sociedade que pertinentea essa classe. Devemos tentar ter em mente que, numa sociedade saudvel,essa manuteno de um determinado nvel de cultura vem em benefcio, nos da classe que o mantm, mas da sociedade como um todo. A conscinciadesse fato evitar que imaginemos ser a cultura de uma classe superior algosuprfluo a toda a sociedade, ou maioria, e que pensemos ser algo que

    deveria ser compartilhado igualmente por todas as outras classes. Deveriatambm lembrar classe superior, na medida em que existe alguma, que asobrevivncia da cultura na qual est particularmente interessada depende dasade da cultura do povo.

    Atualmente, tomou-se um lugar-comum do pensamento contemporneo dizerque uma sociedade assim articulada no o tipo mais elevado a que podemosas pirar; mas que de fato natural que uma sociedade progressista suprimaeventualmente essas divises, e que est tambm dentro do alcance de nossadireo consciente, e portanto um dever que cabe a ns, estabelecer uma

    6 Estou preocupado em evitar de falar como se a evoluo da cultura primitiva para formasmais elevadas fosse um processo que conhecemos por observao. Observamos as diferenas,inferimos que algumas se desenvolveram a partir de um estgio similar aos estgios inferiores queobservamos; mas, por legtima que seja a nossa inferncia, no estou preocupado aqui com essedesenvolvimento.

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    carter nem por sua inteligncia, e so colocados apenas por simples educaonominal, ou nascimento ou consanginidade. Nenhum homem honesto

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    deixa de incomodar-se com tal espetculo. A doutrina das elites, porm,implica bem mais do que a retificao de semelhante injustia. Postula umaviso atmica da sociedade.

    O filsofo cujas observaes sobre o tema das elites merecem a maiorateno, tanto por seu prprio valor como pela influncia que exercem, ofalecido Dr. Karl Mannheim. A propsito, foi o Dr. Mannheim quem traou odestino do termo elite neste pas. Devo salientar que a descrio de cultura doDr. Mannheim diferente da que foi apresentada no captulo anterior desteensaio. Diz ele (Man and Society, p. 81):

    A investigao sociolgica da cultura na sociedade liberal devecomear com a vida daqueles que criam cultura, i.e., a intelligentsiae sua posio dentro da sociedade como um todo.

    De acordo com minha anlise, uma cultura concebida como a criao dasociedade como um todo; e isso, sob outro aspecto, o que a toma umasociedade. No a criao de alguma parte dessa sociedade. A funodaqueles que o Dr. Mannheim chamaria de grupos criadores de cultura,conforme a minha anlise, seria antes realizar um desenvolvimento posteriorda cultura em complexidade orgnica: cultura num nvel mais consciente, masainda assim a mesma cultura. Deve-se considerar que esse nvel mais elevadode cultura ao mesmo tempo valioso em si mesmo e enriquecedor dos nveisinferiores: desse modo, o movimento da cultura continuaria numa espcie deciclo, cada classe nutrindo as demais.

    Essa j uma diferena de alguma importncia. Minha prxima observao que o Dr. Mannheim est preocupado mais com elites do que com uma elite.

    Podemos distinguir (diz ele, em Man and Society, p. 82), osseguintes tipos de elites: a poltica, organizadora, a intelectual, aartstica, a moral e a religiosa. Enquanto as elites poltica e or-

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    ganizadora visam integrar um grande nmero de vontadesindividuais, a funo das elites intelectual, esttica e moral-

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    religiosa sublimarem essas energias psquicas que a sociedade, naluta quotidiana pela existncia, no exaurem plenamente.

    Essa departamentalizao das elites j existe, at certo ponto; e at certo ponto uma coisa necessria e boa. Mas, na medida que se observa sua existncia,no uma coisa totalmente boa. Sugeri em outro lugar que uma crescentefraqueza de nossa cultura tem sido o progressivo isolamento mtuo das elites,de modo que a poltica, a filosfica, a artstica e a cientfica esto separadaspara grande prejuzo prprio, no somente pela interrupo de qualquercirculao geral de idias, mas pela falta daqueles contatos e influnciasmtuos a um nvel menos consciente, que so talvez mais importantes do queas idias. O problema da formao, preservao e desenvolvimento das elites, portanto, tambm o problema da formao, preservao e desenvolvimentoda elite, um problema no qual o Dr. Mannheim no toca.

    Como uma introduo a esse problema, devo chamar ateno para outradiferena entre o meu ponto de vista e o do Dr. Mannheim. Ele observa, munaafirmao com a qual concordo (p. 85):

    A crise da cultura na sociedade liberal-democrtica se deve, emprimeiro lugar, ao fato de que os processos sociais fundamentais,que anteriormente favoreciam o desenvolvimento das elitesculturalmente criativas, tm agora o efeito oposto, i.e., tornaram-seobstculos formao de elites porque setores mais amplos dapopulao tomaram parte ativa nas atividades culturais.

    No posso, claro, admitir a ltima clusula dessa sentena como est. Deacordo com a minha viso de cultura, a populao toda deveria tomar parteativa em atividades culturais nem todos nas mesmas atividades ou nomesmo nvel. O que essa clusula diz, em meus termos, que uma partecrescente da populao

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    est preocupada com cultura de grupo. Isso ocorre, creio que o Dr. Mannheimconcordaria, atravs da alterao gradativa da estrutura de classes. Mas neste

    ponto, ao que me parece, o Dr. Mannheim comea a confundir elite comclasse. Pois diz ele (p. 89):

    Se se lembrarem as formas essenciais de escolher as elites que at opresente surgiram na cena histrica, trs princpios podem serdistinguidos: a seleo com base no sangue, na propriedade e na

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    realizao. A sociedade aristocrtica, especialmente depois que seentrincheirou, escolhe suas elites primeiramente segundo oprincpio do sangue. A sociedade burguesa introduziugradualmente, como um suplemento, o princpio da riqueza, um

    princpio que prevalece tambm para a elite intelectual, j que aeducao era mais ou menos disponvel apenas para a prole doabastado. Logicamente, verdade que o princpio da realizao secombinava com os dois outros princpio. nos perodos iniciais, masa importante contribuio da democracia moderna, desde que sejarigorosa, que o princpio da realizao tende a tornar-se cada vezmais o critrio do sucesso social.

    Estou pronto a aceitar, grosso modo, essa considerao de trs perodoshistricos. Mas gostaria de salientar que no estamos preocupados aqui com aselites mas com as classes, ou, mais precisamente, com a evoluo de ma

    sociedade de classes para uma sociedade sem classes: Parece-me que tambmpodemos distinguir uma elite no estgio da mais rgida diviso em classes.Deveremos crer que os artistas da Idade Mdia eram todos homens danobreza, ou que a hierarquia e os estadistas foram todos selecionados por seuspedigrees?

    No acho que seja nisso que o Dr. Mannheim quer que acreditemos; mas.penso que ele est confundindo as elites com o setor dominante da sociedadeao qual as elites serviram, do qual tiraram seu colorido e no qual foramrecrutados alguns de seus membros` O esquema geral da transio da

    sociedade, nos ltimos quinhentos anos ou tal, aceito normalmente, e notenho interesse em question-lo. Proporia apenas uma modificao. Na

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    fase de dominao da sociedade burguesa (acho que seria melhor, com relaoa este pas, dizer sociedade da classe mdia superior) h uma diferena quese aplica particularmente Inglaterra. Por mais poderosa que fosse poisagora se diz comumente que seu poder est passando no teria sido o que foisem a existncia de uma classe acima dela, da qual tirou alguns de seus ideaise alguns de seus critrios, e a cuja condio seus membros mais ambiciosos

    aspiraram. Isso lhe d uma diferena em tipo da sociedade aristocrtica que aprecedeu, e da sociedade de massa que se espera que a siga.

    Chego agora a outra afirmao na discusso do Dr. Mannheim, que me pareceinteiramente verdadeira. A sua integridade intelectual impede-o de dissimular

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    a obscuridade de nossa posio atual; mas ele consegue, at onde posso julgar,comunicar maioria de seus leitores uma sensao de confiana viva,infectando-os com a sua prpria f arraigada nas possibilidades doplanejamento. No obstante, diz ele de modo bem claro:

    No temos uma idia clara de como a escolha das elites agiria numa sociedadede massas aberta na qual prevalecesse apenas o princpio da realizao. possvel que, numa sociedade semelhante, a sucesso das elites ocorresse comdemasiada rapidez e faltasse nela a continuidade social que se deveessencialmente ampliao lenta e gradual da influncia dos gruposdominantes7.

    Isso levanta um problema da primeira importncia para minha discusso atual,com o qual no creio que o Dr. Mannheimm tenha lidado de modo algum: o

    da transmisso de cultura.55

    Quando nos ocupamos com a histria de certas partes da cultura, como ahistria da arte, ou da literatura, ou da filosofia, isolamos naturalmente umaclasse particular de fenmenos; ainda que tenha havido um movimento, queproduziu livros de valor e de interesse, para relacionar esses assuntos maisintimamente com uma histria social gerai. Todavia, mesmo taisconsideraes so, normalmente, apenas a histria de uma classe defenmenos interpretados luz da histria de outra classe de fenmenos e,

    assim com a do Dr. Mannheim, tendem a ter uma viso da cultura maislimitada do que a adotada aqui. O que temos que considerar so os papis querepresentam a elite e a classe na transmisso de cultura de uma gerao seguinte.

    Devemos recordar-nos do perigo, mencionado no captulo anterior, deidentificar a cultura com a soma de atividades culturais distintas; e, seevitarmos essa identificao, deixaremos tambm de identificar nossa culturade grupo com a soma das atividades das elites do Dr. Mannheim. Oantroplogo pode estudar o sistema social, a economia, as artes e a religio de

    uma determinada tribo, pode at estudar as suas peculiaridades psicolgicas;

    7 Prossegue o Dr. Mannheim, chamando a ateno para uma tendncia na sociedade de massaa renunciar mesmo ao principio da realizao. Essa passagem importante; mas, como concordocom ele em que seus perigos so ainda mais alarmantes, desnecessrio transcrev-la aqui.

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    mas no simplesmente observando em detalhe todas essas manifestaes, ereunindo-as, que ele se aproximar de uma compreenso dessa cultura. Poisentender a cultura entender o povo, e isso significa uma compreensoimaginativa. Tal compreenso nunca pode ser completa: ou abstrata e aessncia escapa ou ento vivida; e, sendo vivida, o estudioso tender aidentificar-se to inteiramente com o povo que estuda que perder o ponto devista a partir do qual era compensador e possvel estud-lo. A compreensoenvolve uma rea mais extensa do que aquela de que se pode ter conscincia;no se pode estar dentro e fora ao mesmo tempo. Aquilo que normalmentechamamos de compreenso de outro povo, logicamente, uma aproximaoda compreenso que fica perto do ponto no qual o estu-

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    dioso comearia a perder alguma essncia de sua prpria cultura. O homemque, para compreender o mundo interior de uma tribo canibal, tenha aderido prtica do canibalismo provavelmente foi longe demais: nunca mais poderser de fato um dos seus, novamente8.

    Levantei a questo, no entanto, unicamente em apoio minha objeo de quea cultura no simplesmente a soma de vrias atividades, mas um modo devida. Ora, o especialista talentoso, que baseado em sua realizao vacacionalpode ser perfeitamente qualificado a participar de uma das elites do Dr.Mannheim, pode muito bem no ser uma das pessoas cultas representativas

    da cultura de grupo. Como disse anteriormente, pode ser apenas umcontribuinte altamente valorizado dela. Todavia, a cultura de grupo, como sepode observar no passado, nunca foi coextensiva com a classe, seja umaaristocracia ou uma classe mdia superior. Um nmero muito grande demembros dessas classes sempre foi notavelmente deficiente em cultura.Acredito que, no passado, o repositrio dessa cultura tenha sido a elite, cujamaior parte foi tirada da classe dominante daquele tempo, constituindo osconsumidores primrios da obra de arte e de pensamento produzida pelosmembros da minoria, que se originaram de vrias classes, inclusive a prpriaclasse dominante. As unidades dessa maioria sero, algumas delas, indivduos;

    outras sero famlias. Porm os indivduos da classe dominante que compemo ncleo da elite cultural no devero, por isso, ser cortados da classe a quepertencem, pois sem sua participao naquela classe no teriam seu papel a

    8Heart oj Darkness, de Joseph Conrad, d uma pista de algo semelhante.

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    cumprir. sua funo, em relao com os produtores, transmitir a cultura queherdaram; assim como sua funo, em relao com o resto de sua classe,impedir

    57que ela se petrifique. funo da classe como um todo preservar e comunicarpadres de maneiras que so um elemento vital na cultura de grupo9. funo dos membros e famlias superiores preservar a cultura de grupo, assimcomo funo dos produtores alter-la.

    Numa elite composta de indivduos que nela se colocam unicamente por suapreeminncia individual, as diferenas de vivncia sero to grandes queestaro unidos apenas por seus interesses comuns, e separados por tudo omais. Uma elite deve, portanto, estar atada a alguma classe, seja superior ou

    inferior; mas, enquanto houver classes, provvel que seja a classe dominanteque atraia essa elite para si. O que aconteceria numa sociedade sem classes oque muito mais difcil de visualizar do que as pessoas imaginam nos leva rea da conjectura. H, no entanto, algumas suposies que me parecem valera pena ventilar.

    O canal primrio de transmisso de cultura a famlia: nenhum homem escapado tipo, ou ultrapassa totalmente o grau, de cultura que adquiriu de seuambiente primitivo. No insinuo que seja esse o nico canal de transmisso;numa sociedade de alguma complexidade, suplementado e continuado por

    outros condutos da tradio. Mesmo em sociedade relativamente primitivas assim. Em comunidades mais civilizadas de atividades especializadas, nasquais nem todos os filhos seguiriam a ocupao de seus pais, o aprendiz(teoricamente, pelo menos) no servia apenas a seu mestre, nem apenasaprendia com ele como se aprende numa escola tcnica ele se integrava a ummodo de vida que condizia com aquele ofcio ou arte; e talvez o segredo perdi-

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    9 Para evitar uma mal-entendido neste ponto, dever-se-ia observar que no suponho que as"boas maneiras" deveriam ser peculiares a qualquer camada da sociedade. Numa sociedadesaudvel, boas maneiras de veriam ser encontradas em toda parte. Mas, assim como distinguimosentre os significados de "cultura" nos vrios nveis, tambm distinguimos entre os significados de"boas maneiras" mais e menos conscientes.

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    do do ofcio seja que era transmitido no somente uma habilidade, mas todoum modo de vida. A cultura discernvel do conhecimento sobre cultura eratransmitida pelas universidades mais antigas: l aproveitaram jovens quetinham sido estudantes sem proveito, e que no adquiriram gosto peloaprendizado, ou pela arquitetura gtica, ou pelo ritual e cerimnia do colgio.Suponho que algo da mesma espcie seja transmitido tambm por sociedadesdo tipo manico; pois a iniciao uma introduo a um modo de vida, deviabilidade ainda que restrita, recebida do passado e para ser perpetuada nofuturo. Mas o canal mais importante de transmisso de cultura permanece, delonge, a famlia; e, quando a vida familiar deixa de cumprir seu papel,deveremos esperar que nossa cultura se deteriore. Ora, a famlia umainstituio da qual quase todos falam bem, mas recomendvel lembrar queesse um termo que pode variar em tamanho. Na era atual, significa pouco

    mais do que os membros viventes. Mesmo assim, uma rara exceo umanncio mostrar uma famlia grande ou trs geraes; a famlia comumenterepresentada consiste de dois pais e um ou dois filhos pequenos. O que sevenera no a devoo a uma famlia, mas o afeto pessoal entre seusmembros; e quanto menor a famlia, mas facilmente esse afeto pessoal podeser exprimido. Mas quando falo da famlia, tenho em mente um lao queabrange um perodo de tempo maior do que esse: uma devoo para com osmortos, no importa quo obscuros, e uma solicitude para com os no-nascidos, no importa quo distantes. A menos que essa reverncia para com opassado e o futuro seja cultivada no lar, no poder jamais passar de uma

    conveno verbal na comunidade. Esse interesse pelo passado diferente dasvaidades e pretenses da genealogia; essa responsabilidade pelo futuro diferente da do construtor de programas sociais.

    Eu deveria dizer ento, que numa sociedade vigorosa estaro presentes tanto aclasse como a elite, com

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    uma certa sobreposio e interao constante entre elas. Uma elite, se for umaelite governante, e desde que o impulso natural de passar prole o poder e o

    prestgio no seja artificialmente reprimido, tender a se estabelecer comouma classe essa metamorfose, penso eu, que conduz ao que me parece serum descuido da parte do Dr. Mannheim. Mas uma elite que assim setransforme tende a perder sua funo como elite, pois as qualidades pelasquais os membros originais adquiriram sua posio no sero todas

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    florescente podem ser transmitidos apenas atravs de elites, pode cair emletargia oriental, ou a elite governante pode seguir o rumo de outras elitesgovernantes e tornar-se uma classe governante. Tampouco podemos confiarem qualquer evidncia dos Estados Unidos da Amrica. A verdadeirarevoluo naquele pas no foi aquela que se chama Revoluo nos livros dehistria, mas uma conseqncia da Guerra Civil; aps a qual surgiu umaelite plutocrtica; aps a qual a expanso e o desenvolvimento material do pasforam acelerados; aps a qual foi admitida aquela onda de imigrao mista,trazendo (ou antes, multiplicando) o perigo do estabelecimento de um sistemade castas10 que ainda no foi total-

    61

    mente afastado. Para o socilogo, o testemunho da Amrica ainda no est

    maduro. Nosso outro testemunho de um governo de elite vem principalmenteda Frana. Uma classe governante, que por um longo perodo em que o Tronoera todo-poderoso deixou de governar, foi reduzida ao nvel ordinrio decidadania. A Frana moderna no teve classe governante: sua vida poltica naTerceira Repblica, no importa o que mais digamos dela, foi transtornada. Eneste ponto podemos frisar que, quando uma classe dominante, no interessaquo mal desempenhou sua funo, removida fora, sua funo no inteiramente assumida por nenhuma outra. O vo dos gansos selvagenstalvez seja um smbolo do mal que a Inglaterra causou Irlanda mais srio,sob este ponto de vista, do que os massacres de Cromwell, ou quaisquer das

    outras ofensas que os irlandeses alegremente relembram. Pode tambm serque a Inglaterra tenha feito mais mal a Gales e Esccia atraindo suas classessuperiores a certas escolas pblicas do que pelos males (alguns verdadeiros,outros imaginrios, outros ainda mal entendidos) clamados pelos seusrespectivos nacionalistas. Mas, aqui novamente, quero reservar um julgamentosobre a Rssia. Esse pas, poca de sua revoluo, poderia estar ainda numestgio to inicial de seu desenvolvimento que a remoo de sua classesuperior no apenas no impediu esse desenvolvimento como o estimulou. H,entretanto, alguma base para acreditarmos que a remoo de uma classe

    superior num estgio mais desenvolvido pode ser um desastre para um pas; e

    10 Acredito que a diferena essencial entre um sistema de castas e um sistema de classes quea base do primeiro uma diferena tal que a classe dominante passa a se considerar uma raasuperior.

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    quase certamente se essa remoo for devida interveno de uma outranao.

    Tenho falado, nos pargrafos precedentes, principalmente da classe

    governante e da elite governante. Mas devo lembrar novamente ao leitorque, ao nos preocuparmos com a classe versus a elite, nos preocupamos com acultura total de um pas, e isso envolve bem mais do que governar. Podemosnos entr