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2 INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A REINVENÇÃO DA ESCOLA Susana Sacavino Novamerica PUC Rio Diferentes grupos socioculturais invadem os cenários públicos em diversos países latino-americanos e, particularmente, no contexto brasileiro. Tensões, conflitos, tentativas de diálogo e negociação entre os diversos atores se multiplicam. Em cada situação esta problemática adquire uma configuração específica, articulada com as diversas construções históricas e político-culturais de cada realidade. Neste contexto o desenvolvimento da educação intercultural constitui certamente nas últimas décadas um processo complexo, plural e original. O presente trabalho está referido à pesquisa que realizamos, de março de 2009 a fevereiro de 2012, com o apoio do CNPq, intitulada Interculturalidade e Educação na América Latina e no Brasil: saberes, atores e buscas”. Tem como principal foco a construção de uma perspectiva intercultural capaz de mobilizar práticas educativas que visem uma educação critica tendo como horizonte a reinvenção da escola. O texto está estruturado em quatro partes. A primeira parte apresenta uma aproximação do referencial teórico trabalhado centrado nas contribuições para o tema do desenvolvimento da interculturalidade na América Latina e no pensamento de Boaventura de Sousa Santos. A segunda parte, apresenta o processo de construção do mapa conceitual sobre educação intercultural construído pela equipe de pesquisa. A terceira parte, visibiliza algumas tensões e desafios para o desenvolvimento de práticas educativas interculturais no nosso contexto, particularmente no âmbito escolar. Para finalizar, tecemos algumas considerações sobre a temática abordada com a convicção de que a educação intercultural é uma tarefa complexa. Para que esta questão seja trabalhada é fundamental introduzi-la na agenda do debate público de diferentes âmbitos sociais, especialmente referido à escola e à formação de educadores. Palavras chaves: Educação Intercultural; Mapa Conceitual; Cotidiano Escolar. XVI Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, ENDIPE - 23 a 26 de julho de 2012, FE/UNICAMP, Campinas Livro 1, p.004458

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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A

REINVENÇÃO DA ESCOLA

Susana Sacavino

Novamerica – PUC –Rio

Diferentes grupos socioculturais invadem os cenários públicos em diversos países

latino-americanos e, particularmente, no contexto brasileiro. Tensões, conflitos,

tentativas de diálogo e negociação entre os diversos atores se multiplicam. Em cada

situação esta problemática adquire uma configuração específica, articulada com as

diversas construções históricas e político-culturais de cada realidade. Neste contexto o

desenvolvimento da educação intercultural constitui certamente nas últimas décadas um

processo complexo, plural e original. O presente trabalho está referido à pesquisa que

realizamos, de março de 2009 a fevereiro de 2012, com o apoio do CNPq, intitulada

“Interculturalidade e Educação na América Latina e no Brasil: saberes, atores e

buscas”. Tem como principal foco a construção de uma perspectiva intercultural capaz

de mobilizar práticas educativas que visem uma educação critica tendo como horizonte

a reinvenção da escola. O texto está estruturado em quatro partes. A primeira parte

apresenta uma aproximação do referencial teórico trabalhado centrado nas contribuições

para o tema do desenvolvimento da interculturalidade na América Latina e no

pensamento de Boaventura de Sousa Santos. A segunda parte, apresenta o processo de

construção do mapa conceitual sobre educação intercultural construído pela equipe de

pesquisa. A terceira parte, visibiliza algumas tensões e desafios para o desenvolvimento

de práticas educativas interculturais no nosso contexto, particularmente no âmbito

escolar. Para finalizar, tecemos algumas considerações sobre a temática abordada com a

convicção de que a educação intercultural é uma tarefa complexa. Para que esta questão

seja trabalhada é fundamental introduzi-la na agenda do debate público de diferentes

âmbitos sociais, especialmente referido à escola e à formação de educadores.

Palavras chaves: Educação Intercultural; Mapa Conceitual; Cotidiano Escolar.

XVI Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, ENDIPE - 23 a 26 de julho de 2012, FE/UNICAMP, Campinas

Livro 1, p.004458

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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A

REINVENÇÃO DA ESCOLA

Susana Sacavino

Novamerica – PUC –Rio

Diferentes grupos socioculturais invadem os cenários públicos em diversos

países latino-americanos e, particularmente, no contexto brasileiro. Tensões, conflitos,

tentativas de diálogo e negociação entre os diversos atores se multiplicam. Em cada

situação esta problemática adquire uma configuração específica, articulada com as

diversas construções históricas e político-culturais de cada realidade.

A afirmação das diferenças – étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas,

entre outras - se manifesta em todas as suas cores, sons, ritos, saberes, crenças e modos

de expressão. As problemáticas são múltiplas, visibilizadas pelos movimentos sociais,

que denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade de

acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural. Esses movimentos nos

colocam diante da construção histórica do continente, marcada pela negação dos

“outros”, física e/ou simbólica, ainda fortemente presentes nas nossas sociedades.

É neste universo de questões, conflitos e buscas que situamos a emergência da

perspectiva intercultural na América Latina em geral e, especificamente, no Brasil.

Neste processo, redistribuição sócio-econômica e reconhecimento cultural (Fraser,

2001) são pólos que se exigem mutuamente e que compõem bandeiras de luta na atual

dinâmica social e política dos países latino-americanos.

O presente trabalho parte deste universo de preocupações e está referido à

pesquisa que realizamos, de março de 2009 a fevereiro de 2012, com o apoio do CNPq,

intitulada “Interculturalidade e Educação na América Latina e no Brasil: saberes,

atores e buscas”.

Tem como principal foco a construção de uma perspectiva intercultural capaz de

mobilizar práticas educativas que visem uma educação critica tendo como horizonte a

reinvenção da escola. O texto está estruturado em quatro partes. A primeira parte

apresenta uma aproximação do referencial teórico trabalhado centrado nas contribuições

para o tema do desenvolvimento da interculturalidade na América Latina e as

contribuições de Boaventura de Sousa Santos. A segunda parte apresenta o processo de

construção do mapa conceitual sobre educação intercultural construído pela equipe da

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Livro 1, p.004459

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pesquisa. A terceira parte apresenta algumas tensões e desafios para o desenvolvimento

de práticas educativas interculturais no nosso contexto, particularmente no âmbito

escolar. Para finalizar, tecemos algumas considerações sobre a temática abordada.

Fundamentação teórica

O desenvolvimento da pesquisa teve por base dois eixos principais de referência

para o aprofundamento teórico-metodológico da problemática focalizada.

O primeiro eixo refere-se à interculturalidade. Existem hoje diferentes enfoques

e uma ampla literatura sobre o significado tanto de interculturalidade como de educação

intercultural. Apresentamos alguns desses enfoques trabalhados na pesquisa já referida,

tendo por base autores latino-americanos.

Ansión (2000:44), especialista peruano com significativa produção bibliográfica,

destaca que a interculturalidade não se limita a valorizar a diversidade cultural, nem a

respeitar o direito de cada um a manter sua própria identidade. Busca ativamente

construir relações entre grupos sócio-culturais. Implica uma disposição a aprender e a

mudar no contato com o outro. Não coloca o fortalecimento de identidades como

condição para o diálogo, mas assume que as identidades se constroem na própria tensão

dinâmica do encontro, que se dá também muitas vezes no conflito, mas que se

reconhece como fonte de desenvolvimento para todos.

Também nessa linha Tubino (2005:2), filósofo, também peruano e especialista

nesta temática, afirma que a interculturalidade surge como um discurso que busca criar

condições para o diálogo entre os membros das diversas culturas que coexistem num

país. Propõe uma atitude dialógica e um respeito à diversidade vista como potencial e

como fonte de riqueza.

Este autor diferencia o termo segundo os contextos de referência em:

interculturalidade descritiva ou aplicativa, interculturalidade como princípio normativo,

como fortalecimento da identidade étnica e numa perspectiva ético-política.

A visão de Catherine Walsh (2007), coordenadora do Programa de Estudos

Culturais Latino-americanos da Universidade Andina Simon Bolívar de Quito

(Equador), distingue interculturalidade não crítica e crítica.

Entende como interculturalidade não crítica a que pode ser identificada em

políticas ou programas implementados por alguns governos neoliberais, que respeitam a

particularidade cultural (ou lingüística e cultural), ao mesmo tempo em que enfatizam a

necessidade de aceder ao “verdadeiro” saber da “cultura universal”: o conhecimento que

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Livro 1, p.004460

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provêm da tradição científica euro-usa-céntrica (ou seja, reforça a colonialidade do

saber). O inter aqui significa simplesmente o ato de apreender do próprio e do universal,

uma particularidade hegemônica, oriunda da modernidade convertida em universal.

Trata-se de uma posição que enfatiza uma visão hierárquica que reafirma a

superioridade da cultura ocidental.

A perspectiva da autora em relação com o que define como interculturalidade

crítica está em sintonia com o enfoque que assumimos na pesquisa realizada.

A interculturalidade crítica se coloca como:

uma construção de e desde os grupos/comunidades que tem sofrido uma história de

submissão e subalternização. Uma proposta de um projeto político que também pode

implicar uma aliança com pessoas e grupos que, de igual forma, buscam alternativas à

globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto para a

transformação social como para criar condições do poder, do saber e do ser muito

diferentes. Pensada desta forma, a interculturalidade crítica não é um processo ou

projeto étnico, nem um projeto da diferença em si mesma. É um projeto de existência,

de vida. (p.7-8)

Neste sentido, a interculturalidade crítica é prática política alternativa à

geopolítica hegemônica, monocultural e mono-racional de construção do conhecimento,

de distribuição do poder e de caráter social. Trata-se de uma ferramenta, uma estratégia

e uma manifestação de uma maneira “outra” de pensar e agir. Um projeto de pensar e

agir que se constrói de baixo para cima, que exige articulação em suas propostas dos

direitos de igualdade com os direitos da diferença.

Quanto ao segundo eixo do referencial teórico, foi centrado no aprofundamento

das relações entre interculturalidade, educação e democracia. Nele privilegiamos as

contribuições do sociólogo português Boaventura Sousa Santos, com o qual temos

mantido uma interlocução intensa nos últimos anos em relação a temas como direitos

humanos, a tensão entre igualdade e diferença, entre democracia e multiculturalismo.

Consideramos que seu pensamento oferece elementos inovadores e especialmente

oportunos para se pensar as questões da interculturalidade em contextos como os dos

diferentes países da América Latina, em que a articulação entre políticas de igualdade e

de reconhecimento constitui um aspecto fundamental para a afirmação dos processos

democráticos.

Este autor trabalha em vários de seus textos a questão da tensão entre igualdade

e diferença, isto é, da passagem da afirmação da igualdade ou da diferença para a da

igualdade na diferença. Não se trata de, para afirmar a igualdade, negar a diferença, nem

de uma visão diferencialista absoluta, que relativize a igualdade. A questão está em

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como trabalhar a igualdade na diferença, e aí é importante mencionar o que Santos

(2006) chama de o novo imperativo transcultural, que no seu entender deve presidir

uma articulação pós-moderna e multicultural das políticas de igualdade e diferença:

“temos o direito a ser iguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de

ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza” (p. 462).

É nessa dialética entre igualdade e diferença, entre superar toda a desigualdade

e, ao mesmo tempo, reconhecer as diferenças culturais, que os desafios dessa

articulação se colocam. Para este autor, é fundamental para esta articulação o diálogo

intercultural. Esse diálogo vai exigir o desenvolvimento do que denomina uma

hermenêutica diatópica, assim concebida:

A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por

mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem

[...]. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um

objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de

incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um

pé numa cultura e outro noutra. Nisto reside seu caráter diatópico (Santos, 2006, p.

448).

A construção democrática assentada na afirmação dos direitos humanos supõe o

diálogo intercultural, que, por sua vez, exige o exercício da hermenêutica diatópica. Esta

constitui uma tarefa complexa e desafiante, que está dando apenas seus primeiros

passos. São poucos os autores e as iniciativas que se colocam nesta perspectiva. Por

outro lado, as concepções dominantes sobre o diálogo intercultural se situam, em geral,

numa perspectiva liberal e focalizam com freqüência as interações entre diferentes

grupos socioculturais de modo superficial, sem enfrentar a temática das relações de

poder que as perpassam. A concepção de Boaventura Sousa Santos sobre o diálogo

intercultural, suas condições e limites, ofereceu uma perspectiva especialmente

instigante e provocativa para a nossa pesquisa.

Tendo como referência esses dois eixos teóricos entendemos que a

interculturalidade é concebida como um processo e uma estratégia ética, política e

epistêmica. Nesta perspectiva os processos educativos são fundamentais. Através deles

se questiona a colonialidade presente na sociedade e na educação, se desvela o racismo

e a racialização das relações, se promove o reconhecimento de diversos saberes e o

diálogo entre diferentes conhecimentos, combate-se as diferentes formas de des-

humanização, promovem-se a construção de identidades e o empoderamento de pessoas

e grupos excluídos, favorecendo processos de construção coletiva na perspectiva de

projetos de vida pessoal e de sociedades “outras” (Walsh 2007).

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A construção do mapa conceitual sobre educação intercultural

Tendo presente a pluralidade de concepções de educação intercultural já

mencionadas, assim como o referencial teórico por nós privilegiado, consideramos

importante construir coletivamente o mapa conceitual que orientaria nossos trabalhos.

Segundo Novack (1998), mapa conceitual é um recurso esquemático que

graficamente ajuda a representar um conjunto de significados conceituais incluídos

numa estrutura de proposições, que serve como uma ferramenta para organizar e

representar conhecimento e para a aprendizagem. O mapa conceitual permite identificar

e representar relações entre diferentes conceitos numa área particular de conhecimentos.

(Arellano e Santoyo, 2009:42)

A questão focal que orientou nossos trabalhos foi: em que consiste a educação

intercultural?

O passo inicial consistiu em definir as categorias básicas. Depois de vários

encontros, chegamos a assumir consensualmente que eram as seguintes:

Figura1

Educação Intercultural

Categorias Básicas do Mapa Conceitual

A primeira categoria, sujeitos e atores, refere-se à promoção de relações tanto

entre sujeitos individuais, quanto entre grupos sociais integrantes de diferentes culturas.

EDUCAÇÃO

INTERCULTURAL

SUJEITOS E ATORES

ATORES

SABERES E

CONHECIMENTOS

POLÍTICAS

PÚBLICAS

PRÁTICAS

SOCIOEDUCATIVAS

XVI Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, ENDIPE - 23 a 26 de julho de 2012, FE/UNICAMP, Campinas

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A interculturalidade fortalece a construção de identidades dinâmicas, abertas e plurais,

assim como questiona uma visão essencializada de sua constituição. Potencia os

processos de empoderamento, principalmente de sujeitos e atores inferiorizados e

subalternizados e estimula os processos de construção da autonomia num horizonte de

emancipação social, de construção de sociedades onde sejam possíveis relações

igualitárias entre diferentes sujeitos e atores socioculturais.

Quanto à categoria de saberes e conhecimentos, convém ter presente que há

autores que empregam estes termos como sinônimos, enquanto outros os diferenciam e

problematizam a relação entre eles. O que chamamos conhecimentos estaria constituído

por conceitos, idéias e reflexões sistemáticas que guardam vínculos com as diferentes

ciências. Estes conhecimentos tendem a ser considerados universais e científicos, assim

como a apresentar um caráter monocultural. Quanto aos saberes, são produções dos

diferentes grupos socioculturais, estão referidos às suas práticas cotidianas, tradições e

visões de mundo. São concebidos como particulares e assistemáticos. Com Koff (2009,

p. 61) acreditamos que, para além de uma discussão se os termos saber e conhecimento

são sinônimos ou não, podem ou não ser usados indistintamente, o mais importante é

considerar a existência de diferentes saberes e conhecimentos e descartar qualquer

tentativa de hierarquizá-los. Neste sentido, a perspectiva intercultural procura estimular

o diálogo entre os diferentes saberes e conhecimentos, trabalha a tensão entre

universalismo e relativismo no plano epistemológico, assumindo as tensões e conflitos

que emergem deste debate.

A categoria práticas socioeducativas referida à interculturalidade, exige colocar

em questão as dinâmicas habituais dos processos educativos, muitas vezes

padronizadores e uniformes, desvinculados dos contextos socioculturais dos sujeitos

que delem participam e baseados no modelo frontal de ensino-aprendizagem. Favorece

dinâmicas participativas, processos de diferenciação pedagógica, a utilização de

múltiplas linguagens e estimulam a construção coletiva.

A quarta categoria, políticas públicas, aponta para as relações dos processos

educacionais e o contexto político-social em que se inserem. A perspectiva intercultural

reconhece os diferentes movimentos sociais que veem se organizando, afirmando e

visibilizando em torno de questões identitárias, defende a articulação entre políticas de

reconhecimento e de redistribuição, não desvinculando as questões socioeconômicas das

culturais e apóiam processos de construção democrática que atravessem todas as

relações sociais, do micro ao macro, na perspectiva de uma democracia radical.

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Tendo presente as categorias básicas do mapa conceitual e as subcategorias de

cada uma delas, passou-se a propor palavras de ligação entre elas. Estas articulações

entre as categorias principais e as sub-categorias está dada por ações como por exemplo:

reconhece, constrói, valoriza, visibiliza, promove, fortalece, articula, estimula,

potencializa, etc. (Anexo 1).

É importante destacar que a interculturalidade mobiliza processos dinâmicos em

várias direções, cheios de criatividade e tensões e em permanente construção. Processos

enraizados nos diversos universos culturais atuais, caracterizados por questões de poder

e pelas grandes desigualdades sociais, políticas e econômicas. Este tal vez é o maior

desafio da interculturalidade e também da educação intercultural, não ocultar as

desigualdades, as contradições e conflitos das sociedades atuais, mas trabalhar com e

intervir neles.

Educação intercultural: desafios para as práticas escolares

Consideramos que o que está em questão hoje quando aprofundamos o debate

sobre a interculturalidade na América Latina é a própria possibilidade de construção de

estados pluriétnicos, plurilinguísticos e, inclusive, plurinacionais, assim como o

reconhecimento, construção e diálogo entre diferentes saberes e a afirmação de uma

ética em que a diferença cultural, a justiça, a solidariedade e a capacidade de construir

juntos se articulem. Trata-se de uma problemática complexa e controvertida.

Certamente a educação ocupa um lugar fundamental nesta construção.

Temos procurado identificar e enumerar alguns dos desafios que temos de

enfrentar se quisermos promover uma educação intercultural, crítica e emancipatória,

orientada a desenvolver um processo de reinvenção da escola. Assinalamos alguns,

agrupados em torno de determinados núcleos que consideramos fundamentais.

O primeiro está relacionado à necessidade de desconstrução. Para a promoção

de uma educação intercultural nesta perspectiva é necessário penetrar no universo de

preconceitos e discriminações que impregna – muitas vezes com caráter difuso, fluido e

sutil – todas as relações sociais que configuram os contextos em que vivemos, entre os

quais a escola. A ‘naturalização’ é um componente que faz em grande parte invisível e

especialmente complexa essa problemática. Promover processos de desnaturalização e

explicitação da rede de estereótipos e pré-conceitos que povoam nossos imaginários

individuais e sociais de educadores, como de nossos alunos, é um elemento fundamental

sem o qual é impossível caminhar. Outro aspecto imprescindível é questionar o caráter

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Livro 1, p.004465

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monocultural e o etnocentrismo que, explícita ou implicitamente, estão presentes na

escola e nas políticas educativas e impregnam os currículos escolares; é perguntar-nos

pelos critérios utilizados para selecionar e justificar os conteúdos escolares, é

desestabilizar a pretensa “universalidade” e “neutralidade” dos conhecimentos, valores e

práticas que configuram as ações educativas.

Um segundo núcleo de preocupações se relaciona à articulação entre igualdade

e diferença no nível das políticas educativas, assim como das práticas pedagógicas. Esta

preocupação supõe o reconhecimento e a valorização das diferenças culturais, dos

diversos saberes e práticas e a afirmação de sua relação com o direito à educação de

todos/as. Reconstruir o que consideramos ‘comum' a todos e todas, garantindo que nele

os diferentes sujeitos socioculturais se reconheçam, assegurando, assim, que a igualdade

se explicite nas diferenças que são assumidas como referência comum, rompendo, dessa

forma, com o caráter monocultural da cultura escolar.

Quanto ao terceiro núcleo, ele se relaciona com o resgate dos processos de

construção das identidades socioculturais, tanto no nível pessoal como coletivo. Um

elemento fundamental nesta perspectiva são as histórias de vida e da construção dos

diferentes indivíduos e comunidades. É muito importante esse resgate das histórias de

vida e que elas possam ser contadas, narradas, reconhecidas, valorizadas como parte de

processo educacional. Este aspecto se relaciona também ao reconhecimento e à

promoção do diálogo entre os diferentes saberes, conhecimentos e práticas dos

diferentes grupos culturais.

Um último núcleo tem como eixo fundamental promover experiências de

interação sistemática com os ‘outros’: para sermos capazes de relativizar nossa própria

maneira de situar-nos diante do mundo e atribuir-lhe sentido, é necessário que

experimentemos uma intensa interação com diferentes modos de viver e expressar-se.

Não se trata de momentos pontuais, mas da capacidade de desenvolver projetos que

suponham uma dinâmica sistemática de diálogo e construção conjunta entre diferentes

pessoas e/ou grupos de diversas procedências sociais, étnicas, religiosas, culturais etc.

Exige também reconstruir a dinâmica educacional. A educação intercultural não pode

ser reduzida a algumas situações e/ou atividades realizadas em momentos específicos

nem focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos sociais. Trata-se de

um enfoque global que deve afetar todos os atores e todas as dimensões do processo

educativo, assim como os diferentes âmbitos em que ele se desenvolve. No que diz

respeito à escola, afeta a seleção curricular, a organização escolar, as linguagens, as

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práticas didáticas, as atividades-extraclasse, o papel do/a professor/a, a relação com a

comunidade etc.

Outro elemento de especial importância se refere a favorecer processos de

“empoderamento”, principalmente orientados aos atores sociais que historicamente

tiveram menos poder na sociedade, ou seja, tiveram menores possibilidades de influir

nas decisões e nos processos coletivos. O “empoderamento” começa por liberar a

possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeito de

sua vida e ator social. Outro aspecto fundamental é a formação para uma cidadania

aberta e interativa, capaz de reconhecer as assimetrias de poder entre os diferentes

grupos culturais e de trabalhar os conflitos e promover relações solidárias.

O desenvolvimento de uma educação intercultural na perspectiva apresentada

neste texto é uma questão complexa, atravessada por tensões e desafios. Exige

problematizar diferentes elementos do modo como hoje, em geral, concebemos nossas

práticas educativas e sociais.

Considerações finais

O desenvolvimento da educação intercultural na América Latina constitui

certamente nas últimas décadas um processo complexo, plural e original.

Consideramos que o desafio fundamental está em vincular as propostas de

educação intercultual à perspectiva da interculturalidade crítica. Trata-se de uma tarefa

complexa, pois na maioria dos países em que a interculturalidade foi introduzida nas

políticas públicas, em geral e, especificamente no âmbito educacional, predomina uma

abordagem aditiva, em muitos casos folclorizante, que se limita a introduzir

componentes das culturas de grupos sociais considerados “diferentes”, particularmente

indígenas e afro-descendentes, no currículo escolar.

Para que esta questão seja trabalhada é fundamental introduzi-la na agenda do

debate público de diferentes âmbitos sociais. No caso da educação, esta discussão ainda

está muito pouco presente nas instituições responsáveis pela formação de educadores, o

que constitui um grande obstáculo para o seu desenvolvimento. No entanto, existe uma

sensibilidade e uma visibilização crescentes das diferenças nas práticas escolares muitas

vezes a partir de situações conflitivas, o que permite afirmar que o debate sobre a

educação intercultural está chamado a se afirmar, mesmo através da polêmica e do

confronto de posições, e constitui um componente importante nos processos de

reinvenção da escola, Isto é, de construção de uma educação escolar que apresente

XVI Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, ENDIPE - 23 a 26 de julho de 2012, FE/UNICAMP, Campinas

Livro 1, p.004467

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propostas significativas para se enfrentar os desafios colocados pela sociedade

contemporânea.

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XVI Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, ENDIPE - 23 a 26 de julho de 2012, FE/UNICAMP, Campinas

Livro 1, p.004468

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Anexo 1

Educação intercultural

Mapa Conceitual

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Livro 1, p.004469