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ANOTAÇÕES PARA AULAS/CURSOS/CONFERÊNCIAS/ARTIGOS Marcos Aurélio Fernandes PENSAMENTO MEDIEVAL – ECKHART

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ANOTAÇÕES PARA AULAS/CURSOS/CONFERÊNCIAS/ARTIGOS

Marcos Aurélio Fernandes

PENSAMENTO MEDIEVAL – ECKHART

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FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA MÍSTICA ESPECULATIVA DE MESTRE ECKHART

I. INTRODUÇÃO: ESCOLÁSTICA E MÍSTICA

Podemos considerar que o clímax do pensamento medieval latino dura cerca de

um século e meio e se constituiu como diferentes posições que interagiam entre si e

frente ao fenômeno histórico do aristotelismo. Este clímax começa, no século XIII, com

o início do ensinamento de mestres como Alexandre de Hales e Alberto Magno e termina

com o pensar de quatro grandes mestres determinantes para o século XIV: João Duns

Scotus, Mestre Eckhart, Dante Alighieri e Guilherme de Ockham. Neste semestre, neste

nosso seminário, vamos estudar um pensador deste alto momento da história da

filosofia medieval: Mestre Eckhart.

A forma mais amadurecida do pensamento medieval no mundo latino se chama

“escolástica”. O ápice da escolástica se dá de 1200 até 1340. A título de indicação

preliminar discorramos sobre o termo latino “scholasticus”.

É o termo que designava inicialmente qualquer pessoa que ensinasse as septem artes liberales, as sete artes liberais, herdadas do antigo sistema de ensino. São elas a gramática, a dialética, a retórica, que formam os três primeiros caminhos, o trivium, da educação; enquanto a aritmética, a geometria, a música e a astronomia compõem os quatro outros caminhos da formação fundamental de toda a idade média1. São ensinadas desde Carlos Magno nas escolas do palácio, das catedrais e dos conventos. Como os mestres de todo ensino, seja do primeiro, do segundo ou do terceiro grau, são quase sempre teólogos, o termo scholasticus, na forma de doctores scholastici, foi sendo transferido também para os professores e docentes de teologia, chegando, por fim, a designar todos os que se ocupavam com a scientia numa instituição de ensino. O termo é uma latinização do grego skholastikos, cujo uso mais antigo pode-se constatar numa carta de Teofrasto, sucessor de Aristóteles, na direção do Perípato, escrita a seu discípulo Fanias, conservada em parte por Diógenes Laércio, um compilador do segundo século V. O termo grego se deriva do substantivo skholé, em alemão Schule, em inglês school, em latim schola, nas neolatinas école, scola, escola, escuela. Skholé, em grego, diz o ócio criativo de forças e valores culturais, os latinos traduziram por otium, o ócio, e o contrário a-skholé, por neg-otium, o não ócio. Assim, o negócio, supõe que se suspenda a criação e a

1 Trata-se do “quadrivium”: os outros quatro caminhos da educação medieval (nota do autor da apostila).

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inventividade cultural e se opere com os recursos já criados em condições já dadas!

Nossa escolha pela escolástica, entretanto, não é por pura e simples localização

numa tradição histórica: a ocidental latina, da qual a Europa, especialmente a Europa

ocidental, atlântica, esta que levou a cabo a expansão do ocidente pelo mundo na era

moderna, predominantemente depende em suas raízes. A escolha da escolástica

também se justifica por critérios filosóficos. Para aprender a pensar com os medievais a

escolástica medieval nos oferece bons préstimos e oportunidades. As razões são as

seguintes:

1) Na escolástica latina confluem as riquezas das outras tradições. “As contribuições

filosóficas dadas pelos dois outros ramos, a cristã-síria e a cristã-árabe, bem como

pelos dois outros troncos da árvore da filosofia, a filosofia dos árabes e a filosofia

dos judeus medievais foram utilizadas e absorvidas pelos escolásticos. Claro que o

fizeram adaptando-as à sua própria perspectiva teológica. A filosofia árabe e judaica,

que eles nos propõem, já nos chega batizada pela especificidade da fé cristã.

Ademais, um mesmo ar respiravam todos os pensadores medievais, um ar que se

poderia caracterizar por uma atitude de acolhimento e aceitação da realidade tal

como se oferece na diversidade do mundo, da natureza, da fé no monoteísmo

revelado. Nenhum medieval, de qualquer credo que seja, pretende as conhecer,

transformar a realidade e colocá-la a serviço do senhorio do homem sobre a

natureza e de sua maestria sobre a realidade, tal como é o espírito e a mentalidade

da idade moderna.”

2) A criatividade do pensamento escolástico. “A riqueza e variedade dos muitos

caminhos desbravados pelos escolásticos superam em número, gênero e grau, todas

as contribuições dos filósofos árabes e judeus da idade média. Os escolásticos

abriram novos horizontes de questões e rasgaram outras dimensões de interrogação

que não se encontram nem entre os árabes nem entre os judeus, embora tanto uns

quanto os outros tenham dado uma contribuição decisiva aos desempenhos da

escolástica e tenham desenvolvido também uma mística própria, não, porém, uma

mística especulativa, no sufismo e na cabala”.

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3) O caráter determinante do pensamento escolástico para o destino do pensamento

moderno. O pensamento árabe foi muito fecundo no breve tempo em que ele

vigorou. Mas, com Averróis, este pensamento emudece, perdendo seu poder de

determinar a história dos séculos futuros. Paradoxalmente, Averróis, assumido no

pensamento ocidental, tornou-se uma das forças propulsoras para o advento da

modernidade no ocidente cristão. As contribuições dos pensadores escolásticos não

deixaram de atuar na gênese do pensamento moderno, como, por exemplo, no

pensamento do século XVII e XVIII, de Descartes a Kant, por mais que esta atuação

permaneça subterrânea. Neste sentido, podemos fazer as seguintes perguntas: “Por

que pertence a todo currículo de formação filosófica estudar o pensamento

medieval? O que há com a filosofia que não se pode desvencilhar destes vencilhos

históricos do pensamento no passado? Que originalidade nos traz o pensamento já

pensado na escolástica para levar-nos a pensá-lo de novo? ”.

A escolástica não é algo de padronizado e estereotipado. Pelo contrário. É algo

criativo e plural. Diversos são os estilos, as formas, os caminhos da filosofia escolástica.

Múltiplas são as respostas que deram às mesmas questões e aos mesmos problemas.

No entanto, estas produções e criações próprias se fundam numa unidade de

pressuposições iguais e se plantam em condições culturais compartilhadas por todos os

doutores escolásticos. Vejamos, pois, quais são estas características comuns:

1) O íntimo relacionamento de filosofia e religião e, respectivamente, teologia. A

escolha dos problemas filosóficos e o modo de sua elaboração são determinados por

este relacionamento. A religião baseada numa revelação que é contida num livro

sagrado, a Bíblia, e cuja doutrina é desenvolvida a partir da tradição pela autoridade

do magistério eclesiástico fomenta a teologia. A filosofia, por sua vez, está a serviço

da teologia. Ela serve à fundamentação racional e ao esclarecimento conceptual do

conteúdo teológico, de um lado, e à assunção de rigor demonstrativo, de outro.

“Autonomia de princípio e metódica da filosofia enquanto ciência do conhecimento

racional puro dos grandes problemas do espírito humano de um lado e a mais

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estreita ligação pessoal e objetiva com a teologia, de outro lado, é característico para

a idade média”2.

2) A forte dependência da filosofia antiga, especialmente de Platão e Aristóteles. A

doutrina de ambos, porém, chega aos latinos pela intermediação das escolas

helenísticas (sobretudo neoplatônicos e estoicos), dos ensinamentos patrísticos (dos

“Padres da Igreja”)3, dos comentários e interpretações dos árabes e judeus.

3) Uma concepção de método. A escolástica é não somente um método de ensino e de

exposição do saber conquistado como também um método de investigação e,

portanto, de conquista do saber. No século XII, a concepção de método foi elaborada

exemplarmente por Pedro Abelardo numa perspectiva dialética. Trata-se do método

do “sim” e do “não” (sic et non). De origem filosófica platônica, este método recorria

ao levantamento de “questões”, articulando argumentos afirmativos e negativos,

com base em “sentenças”, que expressavam o parecer de “autoridades” (principais

autores da tradição filosófica e da tradição do saber cristão) em referência a

determinadas teses, em vista de alcançar respostas que, como sínteses, superassem

as contradições (antíteses) entre estes pareceres. Isto possibilitou um tratamento

racional das verdades da fé cristã, ao qual Abelardo deu o nome de “teologia”. Este

mesmo método passou a ser usado para outros saberes, como o direito e a medicina.

No século XIII, a concepção de método recebe uma reelaboração numa perspectiva

2 Geyer, Bernhard. In: Überweg, Friedrich; Reicke, Rudolf; Heinze, Max (orgs). Grundriss der Geschichte der Philosophie. Zweiter Teil: Die mittlere oder die patristische und scholastische Zeit. Berlin: Mittler & Sohn, 1927, p. 143. 3No âmbito do cristianismo, chama-se de “era patrística” o tempo dos “Padres da Igreja”. Denominam-se “Padres da Igreja” determinados escritores da antiguidade cristã, clérigos ou leigos, em cujas obras a doutrina cristã foi primeiramente elaborada, exposta e conservada. De seus escritos surgiu toda uma elaboração da vida e da doutrina, da moral, dos sacramentos, do governo, da ascese e da mística, que veio a dar uma feição concreta e institucional ao cristianismo. Costuma-se delimitar o término da era patrística da seguinte maneira: no ocidente, com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente, com a morte de João Damasceno (749). As três grandes fases da era patrística são: 1. Padres Apostólicos – são aqueles que conviveram, ainda, com os apóstolos (sec. I); 2. Padres Apologetas ou Apologistas – defensores do cristianismo diante dos pagãos (sobretudo séc. II); 3. Padres Dogmáticos – defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboração dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do século III). A era patrística constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregação cristã, em seu fervor, se expandem pelo mundo antigo, no espaço cultural da língua grega (a oikoumene). A expansão da mensagem cristã, a revelação e a fé em Cristo, pelo espaço geográfico e espiritual do mundo helênico tornou inevitável o encontro/confronto entre cristianismo e filosofia. Daí a importância da era patrística tanto para a história do cristianismo quanto para a história da filosofia.

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aristotélica. Antes de se impor com o seu conteúdo doutrinal, o aristotelismo se

impôs como forma de pensamento, na metodologia escolástica como tal, com o seu

rigor lógico-demonstrativo. Com o exercício operativo da razão ao modo do

pensamento aristotélico, a filosofia se tornou o elemento unificador e articulador de

todos os saberes cultivados na universidade, inclusive da teologia. Os teólogos, que

passaram antes de tudo pelo tirocínio do estudo aristotélico na Faculdade de Artes,

operaram uma verdadeira revolução na constituição do saber teológico, criando

uma teologia de natureza especulativa. A concepção de método escolástico

apresenta um esquema igual para o tratamento das questões, com algumas

variantes aqui e ali, porém. Não obstante a sua rigidez formal, oferece espaço para

as mais diversas direções de pensamento. A igualdade da forma exterior, porém,

acaba causando a impressão de uniformidade e de monotonia do trabalho filosófico.

4) A unidade de escolástica e mística. O historiador do cristianismo A. Harnack

considerou que há uma continuidade entre o cristianismo patrístico e o medieval, e

que em ambos o saber e a mística estão tão intimamente conexos. “Neste sentido

todos os desenvolvimentos do saber do ocidente na idade média são simplesmente

uma continuação do que a Igreja grega, em parte, já tinha vivido, em parte, sempre

ainda em movimentos fracos vivia”4. Escolástica e mística são no fundo um único e

mesmo fenômeno. “Onde, pois, este conhecimento decorre de tal modo que a

compreensão penetrante (Einsicht) no relacionamento de mundo e Deus é buscado

prioritariamente ou pura e simplesmente para compreender melhor a própria

posição da alma em relação a Deus e, nesta compreensão, crescer interiormente,

então se fala de teologia mística. Onde, porém, esta colocação reflexiva da meta do

processo do conhecimento não vem à tona de modo tão claro, e,

preponderantemente, o conhecimento do mundo em sua relação com Deus obtém

um interesse mais autônomo e objetivo, então usa-se o termo ‘teologia escolástica’.

Disso se vê que não se trata de duas grandezas que correm paralelamente ou até

mesmo uma contra a outra, mas que teologia mística e escolástica são um único e

idêntico fenômeno, que se apresentam em múltiplas gradações, dependendo do

4 Harnack, Adolf. Lehrbuch der Dogmengeschichte III, p. 331. Apud: Grabmann, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Erster Band. Freiburg im Breisgau: Herdesche Verlagshandlung, 1909, p. 11.

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domínio do interesse subjetivo ou objetivo”5. Mas, qual a concepção de mística guia

o pensamento medieval nesta unidade com o saber? Seja dada, aqui, uma indicação

introdutória apenas: “Não se trata de uma ascese em que o espírito procura dominar

as sensações dos sentidos e controlar os impulsos do corpo, as demandas e

exigências da carne. E por motivo muito simples. Não há aqui distinção entre corpo

e espírito. A mística é a superação contínua de toda e qualquer dicotomia. Existe

ascese mas a ascese da mística é o treinamento e a disciplina da unidade de tudo

que é humano, corpo, carne, alma, mente e espírito, cuja perda gera as dualidades

todas, tanto no corpo como no espírito, tanto na história como na sociedade, tanto

no sentimento como na ação e no conhecimento. A mística especulativa, seja no

século XI com Santo Anselmo de Cantuária, seja no século XII, com Bernardo de

Claraval e os Victorinos, seja no século XIV com mestre Eckhart, seja no século XV

com Nicolau de Cusa, não se opõe ao conceito e à reflexão, nem à dialética e ao

discurso da razão, antes os integra todos numa dinâmica concreta das atividades de

videre, sentire e experiri pela interiorização de um intuitus originarius”6.

5 Harnack, Adolf. Lehrbuch der Dogmengeschichte III, p. 329. Apud: Grabmann, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Erster Band. Freiburg im Breisgau: Herdesche Verlagshandlung, 1909, p. 11. 6 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Medieval. In: Scintilla, 2012, p. 150.

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II. ECKHART E AS SUAS IMPLICAÇÕES COM O SEU TEMPO

“Pois ex-plicar um pensamento é

Deixar surgir a profundeza de suas im-plicações com o real,

É fazer emergir a vitalidade de sua a-plicação às realizações

E assumir o vigor de suas com-plicações com a realidade”7.

A capacidade de criar história do medievo cristão começa a declinar a partir da

segunda metade do século XIII. A partir da crise vai acontecendo uma autodestruição do

medievo cristão. Desta crise, na lenta transição dos séculos XIV e XV, surge o mundo

novo da época moderna. Em meio a ela, a metafísica se torna filosofia transcendental

em Duns Scotus e a mística especulativa chega a seu ápice no dominicano Mestre

Eckhart.

A partir da segunda metade do século XIII, entram em crise e declinam juntas as

três instituições medievais portadoras de pretensões universais: o Sacro Império-

Romano Germânico, o sistema feudal-cavalheiresco e o Papado.

Um pouco por toda a parte vai mudando a maneira de sentir a vida e viver o mundo. O ar que se respira já não é a atmosfera da criação de Deus, presente continuamente em toda criatura. A organização vertical e hierarquizada por instâncias perde o fôlego social e histórico e deixa de ser aceita espontânea e tranquilamente na prática das ações e dos comportamentos. O homem medieval começa a desacreditar que as instituições em vigor e a ordem vigente sejam modelos e paradigmas criados por Deus, quer direta, quer indiretamente8.

No século XIV, começa a emergir o poder da burguesia. Ao mesmo tempo,

começa a primeira grande guerra europeia, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), tendo

a França e Inglaterra como protagonistas. Em meados do século, a peste negra grassa

sobre a Europa, vitimando milhões de pessoas. A morte parece reinar em clima

apocalíptico. O filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman mostra bem a atmosfera

7 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 14. 8 Leão, Emmanuel Carneiro: Apresentação. In: Eckhart, Mestre: Sermões Alemães: vol. I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 243-248.

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daquele fim de época e constitui uma parábola sobre o nosso tempo. Naquele tempo,

irrompem movimentos de contestação de toda a ordem estabelecida. No movimento

franciscano, desde o fim do século XIII, os “Espirituais” (Pedro de João Olivi, Ubertino de

Casale, Ângelo Clareno), emergindo no vazio da perplexidade epocal, retomam o

profetismo do abade Joaquim de Fiori (séc. XII) e dão voz a uma visão escatológica e

apocalíptica da história. Para eles, era instaurado o tempo das grandes tribulações,

necessário para uma radical purificação e reforma da Igreja e para o advento do tempo

novo, que marcaria o Reinado do Espírito. Naquele tempo, em meio à perda de cadência

das forças históricas, só restava a esperança, ainda que frágil.

Nestas condições, não foi difícil o homem medieval sentir-se sem continente, em

transição de paradigma, de passagem para um outro mundo. Os velhos padrões

desvaneceram e os novos parâmetros ainda não se consolidaram. É momento de

desorientação e angústia. Os modelos se desvaneceram, os valores gastaram-se e os

princípios ficaram sem força. Predomina um intervalo de mundo. É tempo de

transformação, não, apenas, de modos e de maneiras de viver, de formas e matizes de

relacionamentos, mas, sobretudo, de estruturas e princípios. É dia de libertação de tudo

que se desgastou, mas também momento de aventuras, de riscos e de ousadias. Nos

interstícios encontram espaços as esperanças mais díspares e as experiências mais

desencontradas. Nas universidades, outros tantos baluartes do universalismo medieval,

junto com o Papado e o Império, com o feudalismo e o artesanato, o realismo dos

universais sofre os primeiros abalos do nominalismo. Nas cidades alemãs, cresce a força

das tentativas de mudanças sociais. Entre o povo surgem sempre novas seitas e

emergem por toda a parte movimentos religiosos diversos e opostos entre si, mas

idênticos todos em contestar a mediação institucional da Igreja e em reivindicar

autonomia para indivíduos e grupos. Nos mosteiros e nos conventos, tanto masculinos,

quanto femininos, grassa profunda inquietação. A religiosidade herdada e as formas

tradicionais de piedade já não satisfazem as demandas pessoais de um contato imediato

e vivo com Deus. Grande é a sedução de correntes exotéricas e proféticas. Reina uma

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atmosfera trabalhada por inquietações de toda sorte e eivada de fermento

revolucionário9.

Em meio à crise do século XIV, a escolástica se separa da mística. Se a escolástica

começa a se esclerosar, contudo, a mística mantém o seu vigor especulativo em alta. O

maior místico especulativo da Idade Média é o dominicano alemão Mestre Eckhart (c.

1260-c. 1327), herdeiro da herança neoplatônica da escola de Colônia, fundada por

Alberto Magno. Sua obra é escrita em parte em latim e em parte em alemão medieval.

A obra latina é de caráter mais escolástico, já a obra alemã é de caráter mais místico.

Seu modo de dizer é ousado e, por isso, granjeou-lhe as suspeitas de heresia. Quando

algumas de suas teses foram condenadas como suspeitas de heresia, porém, ele já tinha

morrido. Na mística de Eckhart o pensamento especulativo é posto contra seus limites

extremos, falando a linguagem dialética ou mesmo a linguagem do paradoxo.

Eckhart, conhecido como Mestre Eckhart, nasceu de pais nobres, na região alemã

da Turíngia, em Hochheim, perto de Gotha, pelo ano de 1260. Ainda adolescente (14

anos?) Eckhart entrou para a Ordem dos Pregadores (dominicanos). Foi enviado para

seguir carreira acadêmica de teólogo em Paris. Em 1293-1294 foi bacharel sentenciário

(comentador dos livros das sentenças de Pedro Lombardo, texto base na formação dos

teólogos). Diferentemente dos outros grandes mestres escolásticos, os comentários às

sentenças de Eckhart não chegaram até nós. Dispomos, porém, do seu “Principium”, ou

seja, da conferência inaugural que os bacharéis sentenciários deviam pronunciar entre

a festa da Exaltação da Cruz (14 de setembro) e a de São Dionísio (9 de outubro): a

“Collatio in Libros Sententiarum” (Conferência sobre os Livros das Sentenças). De 1294

a 1298 foi prior do convento dominicano de Erfurt. Ali Eckhart tinha a cargo a formação

de jovens frades. Fruto desta atividade são os textos escritos em alemão medieval e

recolhidos como o título de “Reden der Unterweisung” (Literalmente: Discursos de

Instrução; tradução em português: “Conversações Espirituais”)10. À noite, após a ceia, o

Mestre conversava com os jovens sobre as suas dúvidas na vida do espírito. Já aí Eckhart

se torna um “mestre de vida” e não só um “mestre de leitura” e ensina, antes de tudo,

9 Cfr. Leão, E. C. Op. cit., p. 10-11. 10 Cfr. Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999 (4ª ed.), p. 99-145.

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a “Abgescheidenheit” (em alemão moderno: Abgeschiedenheit), o “desprendimento”,

tema fundamental de sua mística. Vamos dar, já agora, uma breve indicação deste tema,

por meio de uma explanação nominal. A indicação será dada por uma citação de um

texto do professor Emmanuel Carneiro Leão:

Eckhart forja a palavra “abegescheidenheit” que, no alemão moderno, se diz Abgeschiedenheit. É uma palavra derivada, por prefixação e sufixação, do verbo scheiden, cindir, dividir, separar. O prefixo, ab, designa clivagem, tanto no sentido de desfazer-se de alguma coisa, abetuon, como no sentido de afastar-se, desviar-se, abekere. O sufixo, heit, designa a condição, o estado e a atitude. No uso transitivo, o verbo, abscheiden, significa isolar, e, no uso intransitivo, ir-se embora, morrer. No alemão de hoje, o uso intransitivo significa, quase sempre, morrer. Assim o poeta Georg Trakl dedicou um famoso poema a um amigo morto com o título de: Gesang des Abgeschiedenen: Canto do falecido11.

O teólogo Leonardo Boff, em sua introdução ao “Livro da Divina Consolação e

outros textos seletos” explicação assim o significado da palavra “Abgeschiedenheit”:

Abgeschiedenheit, palavra cunhada por Mestre Eckhart, é de difícil tradução (em francês détachement, em inglês detachment ou desinterest)12. A palavra está em conexão com disponibilidade plena, com liberdade de e para, com desprendimento, pobreza, despreocupação, esvaziamento de si, perfeito equilíbrio interior13.

Em 1302 Eckhart obtém o título máximo de Magister em Teologia (título que se

incorporou ao seu nome: Mestre Eckhart). Ele entrava assim para a série de grandes

doutores dominicanos em Paris: dois alemães, Alberto Magno e Dietrich de Freiberg, e

Tomás de Aquino. Em 1302-1303 ocupa a cátedra de teologia para dominicanos

estrangeiros. A este período de magistério universitário remontam algumas “Questões

Parisienses”14, um sermão sobre Santo Agostinho (28 de Agosto de 1303), e uma série

de argumentos levantados numa disputa com Gonçalo de Espanha (Rationes Equardi),

11 Leão, Emmanuel Carneiro. A mística de Eckhart em Eckhart. In: Revista Scintilla, n. 4, v. 1, 2007, p. 107-115. O poema de Trakl é comentado por Heidegger num texto intitulado “A linguagem na poesia: uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl”, presente em: Heidegger, Martin. “A caminho da Linguagem”: Bragança Paulista / Petrópolis, EDUSF /Vozes, 2003, p. 27-69. 12 Em italiano temos a palavra “distacco”. 13 Boff, Leonardo. Introdução: Mestre Eckhart: a mística da disponibilidade e da libertação. In: Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999 (4ª ed.), p. 97. 14 Cfr. Eckhart, Meister. Cuestiones Parisienses. Introduccion y traduccion de Angel J. Capelletti. Tucuman (Argentina): Universidad Nacional de Tucuman: Facultad de Filosofia y Letras, 1962.

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mestre regente do Studium Generale dos franciscanos. Neste tempo Duns Scotus era

bacharel sentenciário em Paris. A respeito das Questões Parisienses escreve Geyer:

Apesar de pouco volume, estas Quaestiones têm sobressalente importância entre os escritos latinos de nosso mestre. Sem elas faltaria uma parte essencial e valiosa da obra espiritual de Eckhart, já que muitas ideias e argumentos ali expostos não voltam a se encontrar, ou pelo menos não com esta especial ênfase, em seus escritos. Também entre as outras Quaestiones escolásticas com as quais se acham mescladas na tradição, sobressaem por seu conteúdo e por sua forma. Quem hoje vê o legado de Quaestiones escolásticas dos distintos mestres parisienses desta época, inconscientemente prestará atenção, surpreendido e interessado pela originalidade e pela ousadia das ideias e da exposição15.

A primeira questão se intitula: “Se em Deus se identificam o ser e o inteligir”. A

resposta é afirmativa. Deus não somente é inteligente. Em Deus, o ser e o inteligir

coincidem. Seu inteligir é a sua essência. A segunda questão deste período é: “se o

inteligir do anjo, enquanto se refere à ação, é seu próprio ser”. A resposta é negativa: a

ação do anjo, como a ação de nenhuma criatura, não é seu próprio ser. Esta questão

toca no tema do ser e do agir e aborda os diferentes tipos de ação levantados por

Aristóteles no livro X da metafísica. A terceira questão é disputada com o franciscano

Gonçalo de Espanha e soa assim: “Se o louvor de Deus no céu é mais nobre do que o

amor do mesmo na terra”. Aqui entram em jogo as discussões entre franciscanos, que

defendem o primado da vontade, e os dominicanos, que defendem o primado do

intelecto.

Retornando em 1303 à Alemanha, Eckhart é eleito o primeiro provincial

(superior) da província dominicana da Saxônia, cuja sede é em Erfurt. Este período é

marcado pela atividade de pregação em língua alemã. Eckhart não hesita em comunicar

ao povo aquelas coisas que eram discutidas na Escola. No “Livro da Divina Consolação”

o Mestre irá justificar este procedimento dizendo:

Um mestre pagão, Sêneca, diz: “Deve-se falar de coisas grandes e elevadas com sentidos grandes e elevados e com alma elevada”. Também se dirá que não se deve falar e escrever essas tais teorias para pessoas iletradas. A isso eu digo que se não devemos ensinar (instruir) pessoas iletradas, então jamais alguém será

15 Apud Capelletti, na introdução de Cfr. Eckhart, Meister. Cuestiones Parisienses. Introduccion y traduccion de Angel J. Capelletti. Tucuman (Argentina): Universidad Nacional de Tucuman: Facultad de Filosofia y Letras, 1962, p. 5-6.

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ensinado, e nesse caso pessoa alguma jamais poderá ensinar ou escrever. Pois ensinam-se os iletrados por isso: para que de iletrados se tornem letrados. Se nada houvesse de novo, nada se tornaria velho. “Os que são sadios”, diz Nosso Senhor, “não precisam de medicina” (Lc 5, 31). É para isso que existe o médico, para curar os doentes. Mas se existe quem não compreenda retamente essa palavra, o que pode fazer aquele que expressa essa palavra que é reta? São João anunciou o evangelho aos crentes, e no entanto inicia seu evangelho com o que de mais elevado um homem pode pronunciar aqui de Deus; e muitas vezes também as suas como as palavras de Nosso Senhor não foram retamente compreendidas16.

O filósofo Emmanuel Carneiro Leão, na sua introdução aos Sermões Alemães

(vol. I), faz uma reflexão sobre essa atitude de Eckhart:

Os Sermões Alemães aqui apresentados em tradução para o português formam, junto com os tratados, a parte alemã de suas [de Eckhart] obras. Tanto os tratados como os sermões não se destinam apenas, nem de preferência, a filósofos, teólogos e místicos, mas ao pensamento, à fé e à experiência de todo o povo de Deus. Pensador é todo homem, crente é todo homem, místico é todo homem, embora não sejam sempre da mesma maneira, nem de qualquer maneira, mas da sua maneira, da maneira de cada um. Por isso o escândalo de muitos, ao verem o Mestre Eckhart endereçar suas mais profundas reflexões das profundezas de Deus na alma humana a todos os homens, só se compara com o “escândalo do Cristo crucificado”, de que fala São Paulo na 1Cor 1, 23. Escândalo não somente se dá. Escândalo também se cria. E aqui no caso de Eckhart trata-se de um escândalo maior ainda, porque criado por cristãos e seguidores de Jesus Cristo. Nós póstumos epígonos, nem sempre percebemos a confiança com que as Escrituras Sagradas foram destinadas e explicadas ao povo de Deus, tanto aos letrados como aos iletrados, tanto aos alfabetizados como aos analfabetos. Dentro do mistério da fé, todos nós somos rudes pastores, e somente a confiança na fé nos sustenta e nos alimenta a fé na própria fé17.

Apesar de eleito provincial dos dominicanos da Teutônia no ano de 1310, Eckhart

foi enviado uma segunda vez a Paris para ensinar ali (por decisão do capítulo geral de

Nápolis, de 30 de maio de 1311). Aí permanece de 1311 a 1313. Neste período Eckhart

lança o projeto do seu “Opus Tripartitum”18 obra dividida em três partes, que era para

ser sua obra prima, que foi planejada mas não foi executada, e que constava de: Opus

16 Apud Giachini, Enio Paulo. Introdução. In: Eckhart, Mestre: Sermões Alemães: vol. I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 16. 17 Leão, E. C. Apresentação. In: Eckhart, Mestre: Sermões Alemães: vol. I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 13. 18 Desta época são também mais duas das “Questões Parisienses”: Questão 4: A ideia de um movimento sem fim implica uma contradição? Questão 5: As formas dos elementos permaneceram no corpo de Cristo moribundo sobre a cruz?

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Propositionum, a obra das proposições; Opus Quaestionum, a obra das questões; e o

Opus Expositionum: a obra das exposições. O “Prologus generalis in opus tripartitum”

(prólogo geral para a obra tripartida) declara:

A intenção do autor nesta obra tripartida é satisfazer na medida do possível os desejos dos frades estudiosos, que já há muito tempo, com instantes pedidos, muitas vezes impelem e compelem, para que aquilo que eles acostumaram a ouvir, seja em lições e outros exercícios escolásticos, seja em pregações, seja em conversações cotidianas à mesa, seja posto por escrito, principalmente em três formas, a saber, em forma de certas proposições gerais e de teses; em segundo lugar, em forma de declarações breves e fáceis para diversas novas questões; em terceiro lugar, porém, em forma de raras exposições de numerosas sentenças da Sagrada Escritura de ambos os testamentos; especialmente aquelas que não foram recolhidas na memória e nem ouvidas, porque coisas novas e inusitadas irritam o ânimo mais do que as coisas costumeiras, ainda que sejam melhores e maiores.

Segundo isso, pois, se divide esta obra total em três obras parciais principais: primeiramente, em obra das proposições gerais; segundo, em obra das questões, terceiro, em obra das exposições19.

O historiador da filosofia medieval Alain De Libera observa que “a Obra Tripartida

é uma obra sistemática que articula as três atividades do teólogo: leitura, disputa,

pregação”. Segundo ele, o intento de Eckhart era “dar uma nova forma à ciência

teológica elaborada pelos predecessores. Esta forma nova é em primeiro lugar uma

forma de uma obra nova, uma redistribuição, um remanejamento e uma refundação

dos antigos gêneros literários”. Neste momento, a forma das Sumas já não está em uso.

Com esta nova forma Eckhart pretendia expor de modo sintético o todo da teologia.

A pesquisa do Ordo Disciplinae, típica da escolástica do século XIII, que tinha, de resto, presidido ao nascimento da teologia como ciência, encontra, assim, em Eckhart a sua plena realização. Não são somente os temas ou as matérias controversas a dever ser postas ou repostas em ordem, é toda a estrutura formal do saber teológico que deve ser redesenhada. Este projeto é o núcleo da grande obra incompleta à qual Eckhart dá o título de Opus Tripartitum20.

19 Eckhart, M. Prologi in Opus Tripartitum et Expositio Libri Genesis cum tabulis. Heraugegeben von Konrad Weiss – Vorreden zum dreiteiligen Werke und Auslegung der Genesis mit inhaltsverzeichnissen. Übersetst von Heinrich Lammers. 20 Libera, Alain De. Meister Eckhart e la mística renana. Milano: Jaca Book, 1998, p. 49-50.

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O Prólogo do Opus Tripartitum dá uma ideia de como seria esta nova estrutura.

Apresenta a demonstração da primeira proposição: “Esse est Deus” (O ser é Deus)21.

Com base nesta proposição ele dá a solução à primeira questão: “Deus existe”? e expõe

a primeira sentença da autoridade bíblica: “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn

1,1). Esta primeira sentença, por sua vez, reunirá as demais sentenças das autoridades.

De Libera nota que Eckhart não parte de artigos de fé, “proposições conhecidas por

revelação”, nem de “verdades evidentes por si”, como princípios e axiomas.

A propositio eckartiana não é nem um creditum ou um revelatum nem uma propositio per se nota; é uma proposição demonstrada mediante a razão natural, da qual se deduz um certo número de soluções e de exposições. É esta a estrutura que governa o projeto exegético de Eckhart, como formula o prólogo do Comentário ao Evangelho de São João: “Explicar mediante as razões naturais dos filósofos as asserções da santa fé cristã e da Escritura nos dois testamentos” (§2)22.

Em 1313 o Geral da Ordem, Berengário de Landora, envia Eckhart a Estrasburgo,

na Teutonia, para assumir aí a função de vigário geral, encarregado especialmente da

direção espiritual das monjas (cura monialium). O período de Estrasburgo, que vai de

1313 a 1323 é o zênite da obra de pregador de Eckhart. Este período coincide com a

grande influência do movimento das Beguinas, mulheres leigas que viviam vida em

comum, dedicada à ascese, ao cuidado dos doentes e dos pobres. A Igreja as tinha

encorajado no início, mas, no concílio de Viena, de 1311, aconteceu a condenação de

oito “erros dos begardos23 e das beguinas sobre o estado de perfeição”. Em 1310 a

beguina Marguerite Porete, autora do livro “Espelho das almas simples aniquiladas”, foi

queimada pela inquisição. Há quem pense que Eckhart tenha lido esta obra:

O livro chama-se O espelho das almas simples e é, ao mesmo tempo, guia e narração de uma busca mística pessoal mas partilhada e orientada por uma misteriosa sociedade espiritual, a das Dames nient connues: as senhoras que ninguém conhece. Pensa-se, com bons motivos, que tenha sido lido pelo Mestre Eckhart, deixando vestígios

21 Eckhart inverte a proposição de Tomás: “Deus est ipsum esse subsistens” (Deus é o ser mesmo subsistente). 22 Libera, A. Op. cit. p. 52-53. 23 Os Begardos foram um movimento religioso cristão que surgiu por volta do ano de 1215 na Alemanha, estendendo-se pela França, Holanda e Espanha. Foram grupos de pregadores errantes que denunciavam a corrupção do clero e pregavam uma vida fiel ao Evangelho e a experiência dos primeiros apóstolos.

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nos célebres Sermões em língua alemã. De facto as coincidências são muitas e impressionantes24.

Nesta época Eckhart redige a sua mais célebre obra alemã: “Das Buch der

göttlichen Tröstung” (O Livro da Divina Consolação)25.

O Livro da Divina Consolação é uma das joias da literatura espiritual do Ocidente. Nele o Mestre Eckhart mostra todo o vigor e a madureza de seu gênio religioso.

O texto foi escrito para a rainha Inês da Hungria. Seu marido, o rei André, morreu em 1301. Deixada só e desprezada, a rainha teve que empenhar suas próprias joias para poder comer. Foi recolhida por seu pai, imperador da Áustria. Este foi assassinado em 1308. Neste contexto de desconsolo, Eckhart escreve seu pequeno tratado sobre a consolação divina26.

No prólogo deste livro Eckhart escreve:

O nobre apóstolo São Paulo diz as palavras seguintes: “Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, um Pai de misericórdia e Deus de toda consolação que nos consola em todas as nossas aflições”. Há três formas de aflição que afetam e oprimem o homem no presente estado de miséria. Uma nasce dos danos aos bens externos, outra dos danos que atingem seus parentes e amigos, e a terceira, dos danos advindos à sua própria pessoa, na desestima, na desgraça, nos sofrimentos corporais e nas aflições do coração.

Por isso tenciono assentar neste livro alguns ensinamentos com os quais o homem possa consolar-se em todas as suas desventuras, tristezas e sofrimentos. O livro consta de três partes. Na primeira encontram-se algumas verdades das quais se pode deduzir o que serve para consolar o homem, plena e eficazmente, em todos os seus sofrimentos. Seguem-se depois cerca de trinta pontos de doutrina, em cada um dos quais se pode encontrar a mais autêntica e completa consolação. E enfim, na terceira parte do livro, encontram-se alguns exemplos de obras praticadas e palavras pronunciadas por pessoas sábias nos seus sofrimentos27.

Da atividade de pregador e de diretor espiritual surgem também o “Opus

Sermonum”, obra dos Sermões. Os Sermões Latinos ficaram em silencio ao longo da

24Cfr. artigo em: http://www.osservatoreromano.va/pt/news/o-espelho-das-almas-simples#sthash.uhtK6bXX.dpuf. Cfr. também a tese doutoral: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=8151 25 Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999 (4ª ed.), p. 51-87. 26 Boff, Leonardo. Nota introdutória. In: Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999 (4ª ed.), p. 51. 27 Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999 (4ª ed.), p. 52.

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história28. Grande repercussão, entretanto, se deu com os Sermões Alemães29. De

Libera adverte que o Opus Sermonum tem um objetivo preciso: “explicar e fazer

compreender o articular-se das duas graças da Encarnação e da inhabitação interior do

Verbo”30. O tema central é o da “Abegescheidenheit” (Desprendimento). Vale para estes

sermões o que diz o famoso Tratado do Desprendimento (atribuído a Mestre Eckhart):

Tenho lido muitos escritos, tanto de mestres pagãos, como dos profetas do Antigo e do Novo Testamento, e procurei com sinceridade e com todo o empenho a mais alta e a melhor das virtudes, ou seja: a que capacite o homem a melhor e mais estreitamente unir-se a Deus e tornar-se por graça o que Deus é por natureza, e que mais o assemelhe à imagem que dele havia em Deus e na qual não havia diferença entre ele e Deus, antes que Deus produzisse as criaturas. E quando perscruto todos aqueles escritos, tanto quanto a razão mo permite e é capaz de percebê-lo, outra coisa não encontro senão esta: que o puro desprendimento ou total disponibilidade tudo supera, pois de certa forma todas as virtudes visam à criatura, ao passo que o desprendimento está desvinculado de todas as criaturas. Eis porque Nosso Senhor disse a Marta: Unum est necessarium (Lc 10, 42), isto é: Marta, quem quer ter a paz e ser puro deve possuir uma coisa: o desprendimento ou a perfeita liberdade31.

Conciliando a excelência do desprendimento com a doutrina estoica da “conexão

das virtudes” (quem a uma possui a todas possui e quem a uma ofende a todas ofende),

Eckhart, nos Sermões Alemães, fala de outras virtudes, sempre a partir do

desprendimento e em conexão com o tema da encarnação e do nascimento do Verbo

na alma. Algumas das virtudes são: pobreza (armuot); humildade (demüetigkeit);

nobreza (edelkeit); serenidade (gelâzenheit). O tema da “Gelassenheit” (serenidade)

tornou-se um dos temas fortes do pensamento do Heidegger tardio.

Provavelmente no início de 1224 Eckhart foi enviado ao Studium Generale de

Colônia. Nesta época Eckhart encontra as primeiras dificuldades em relação à sua

ortodoxia. Entre agosto de 1325 e janeiro de 1326, algumas frases do “Livro da Divina

28 No fim do século XIX Heinrich Denifle – estudioso da mística medieval e de Lutero – encontrou numa biblioteca de Cusa alguns Sermões Latinos de Eckhart. Muitos tinham correções e anotações de Nicolau de Cusa. É provável que tenham sido textos de preparação para o “Opus Sermonum” do “Opus Tripartitum”. Cfr. Eckhart, M. I Sermoni Latini. A cura di Marco Vaninni. Roma: Città Nuova, 1989. 29 Publicados em português em dois volumes, pela editora Vozes. Tradução e introdução de Ênio Paulo Giachini. Apresentação de Carneiro Leão. Revisão da tradução e glossário de Hermógenes Harada. 30 Libera, Alain De. Meister Eckhart e la mística renana. Milano: Jaca Book, 1998, p. 73. 31 Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999 (4ª ed.), p. 148.

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Consolação” foram apresentadas como suspeitas. Eckhart respondeu com um texto hoje

perdido (Requisitus).

Naquele tempo surgiu também um movimento herético chamado “Irmãos e

Irmãs da seita do livre espírito e da pobreza voluntária”, contra o qual o bispo de

Estrasburgo empreende uma ação vigorosa, prosseguida pelo papa Clemente V. Em

1322, o bispo de Colônia, Henrique de Virnenburg, reúne um sínodo provincial contra o

Livre Espírito: quatro anos mais tarde dá partida ao processo de inquisição que se

concluirá com a condenação de Eckhart em Avignon. Embora Eckhart não professasse

as teses desta seita, muitos de seus membros fizeram uso – distorcido – de

ensinamentos de Eckhart.

No ano de 1326, depois de uma denúncia da parte dos dominicanos Hermann de

Summo e de Guilherme de Nidecke, o bispo de Colônia, Henrique de Virneburg, abriu o

processo de inquisição contra Eckhart. Muitos confrades tentam defende-lo. Mas no

próprio Capítulo Geral de Veneza (1325) houve quem denunciasse o perigo da pregação

em vernáculo na Teutônia e o Geral Barnabé Cagnoli fala contra a prática de se discutir

“sutilezas” e questões “por demais difíceis” nas escolas dos dominicanos. Duas

condenações que atingiriam Eckhart. Eckhart fez apelo, em 1327, ao papa João XXII. Foi

até Avignon para defender-se. Foi ouvido por uma comissão pontifícia. As listas de

proposições acusadas de heterodoxas, apresentadas pela comissão da inquisição de

Colônia, eram duas: uma abrangia 49 e a outra, 59 proposições. A comissão pontifícia

reduziu a 28. Estas foram traduzidas do alemão para o latim e tiradas do contexto.

Eckhart tinha protestado em relação à sua ortodoxia pessoal. Ele dissera: “posso até

errar, mas não ser um herege. Pois o primeiro refere-se à compreensão, o segundo à

vontade”32. Também tinha protestado contra a visão estreita de seus inquisidores: “O

erro dos opositores consiste diretamente nisso, de considerar como falso tudo que não

compreendem, e de considerar esse desvio de imediato como uma heresia – enquanto

só se constitui em heresia e em herege a permanência obstinada num erro, como dizem

o direito e os mestres”33. Tinha ainda proclamado uma “protestatio” pública na Igreja

de Colônia em que declara ter abominado todo e qualquer erro na fé e todo desvio na

32 Apud Giachini, E. P. Op. cit. p. 18 33 Apud Giachini, E. P. Op. cit. p. 18

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conduta da vida e apresenta as incompreensões de seus ditos por parte dos seus

inquisidores34. Eckhart morreu em 1328, antes de ver sua condenação por parte da

comissão pontifícia. No dia 27 de março de 1329 a constituição pontifícia “In agro

dominico”, tendo por base os 28 artigos apresentados pela comissão pontifícia,

condenou 17 e recomenda prudência diante de 11.

A influência de Eckhart continuou por meio dos seus discípulos, aqueles mestres

de vida conhecidos como “místicos renanos” ou “místicos alemães”: Henrique de Berg

ou Henrique Suso (+1366) e João Tauler (+1361). Tauler influiu diretamente sobre

Ruysbroeck (da escola flamenga), e, por meio de seus escritos, sobre a mística

espanhola, sobretudo sobre João da Cruz. O pensador que retomou o projeto teológico,

filosófico e espiritual de Eckhart, porém, foi Nicolau de Cusa (+1464), que, por sua vez,

foi determinante para o nascimento da ciência moderna, por sua influência sobre

Giordano Bruno e sobre Copérnico. Nicolau de Cusa também fundou a possibilidade da

“especulação na filosofia moderna”: Descartes, Espinosa e Leibniz, bem como Kant e os

filósofos do idealismo alemão pertencem a esta corrente aberta por Nicolau de Cusa.

Segundo Heinrich Rombach, a ontologia funcional de Eckhart funda uma nova época da

ontologia na história e possibilita, assim, a ciência e a filosofia modernas35. A ciência

moderna seria filha da mística e do nominalismo tardo-medieval! Hegel foi leitor de

Eckhart, pelo menos de alguns textos originais. Schopenhauer tem sua influência

também, sobretudo no livro IV, cap. XLVIII de “O mundo como vontade e

representação”. Rudolf Otto explorou suas semelhanças com a mística oriental36. Nos

nossos dias, Eckhart chama a atenção do zen budismo37. No século XX, o pensador mais

importante na recepção de Eckhart é Martin Heidegger, que o considerava “mestre de

leitura e de vida”. O tema da “Gelassenheit” (Serenidade) de Heidegger nasce desta

34 Apud Giachini, E. P. Op. cit. p. 18 35 Cfr. o artigo de Gilberto Garcia: http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/viewFile/6188/5714. O autor escreveu sua tese de doutorado sobre este tema. 36 West-Östlich Mystik: Vergleich und Unterscheidung zur Wesensdeutung (Mística ocidental e oriental: comparação e diferenciação para uma interpretação essencial), 1926. 37 Cfr. textos de Shizuteru Ueda. Cfr.: http://www.worldwisdom.com/public/viewpdf/default.aspx?article-title=%E2%80%9CNothingness%E2%80%9D%20in%20Meister%20Eckhart%20and%20Zen%20Buddhism.pdf

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proximidade com Eckhart. Um tratamento fenomenológico de Eckhart aparece em

Bernhard Welt38, cuja fenomenologia da religião é muito próxima ao pensamento de

Heidegger.

38 Cfr. a obra “Meister Eckhart: Gedanken zu seinen Gedanken”.

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III. "O PENSAMENTO EM MESTRE ECKHART: O PENSAR E A

COISA MESMA A-SE-PENSAR".

O que propomos com o título desta reflexão é: aprender a pensar com o

pensamento de Mestre Eckhart. Quem é Mestre Eckhart? Um pensador. Isto quer dizer:

um homem que nasceu, pensou e morreu, e, assim, tornou-se para sempre vigente na

atualidade, isto é, na atuação sempre contemporânea e extemporânea da filosofia na

história. Pretendemos explicar o pensamento de Eckhart e, ao mesmo tempo, nos

explicar com este mesmo pensamento. Tomaremos como fio condutor de nosso

exercício o seguinte princípio operativo: “Explicar um pensamento é deixar surgir a

profundeza de suas implicações com o real, é fazer emergir a vitalidade de sua aplicação

às realizações, e assumir o vigor de suas complicações com a realidade”39. Por outro

lado, “explicar-se com um pensamento” quer dizer, aqui, confrontar-se com ele,

pensando pensado e o não pensado, o dito e o não dito deste pensamento, para abrir

novos caminhos de pensamento, caminhos que só podem ser os nossos, e que

respondem, no hoje, aos apelos do futuro.

III.1. O PENSAMENTO DE ECKHART E SUA IMPLICAÇÃO COM O REAL.

Como o pensamento de Eckhart foi implicado com o real, isto é, com a sua

situação histórica? Tentemos responder a esta pergunta discorrendo sobre a vida e obra

de Eckhart e sua atuação como pensador no momento histórico em que ele vivera.

Toda a vida humana se dá como história. O ser humano se constitui a si mesmo

desde a vigência do mistério da liberdade e do destino, do mérito e da graça, numa

história. Por outro lado, todo o pensamento começa a pensar respondendo aos desafios

de seu momento histórico, do seu “kairós”. Como isso se deu com Mestre Eckhart?

39 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 14.

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Eckhart nasceu na Turíngia (Hochheim, perto de Gotha), em 1260, e faleceu em

1327. Outros dois pensadores que marcaram a primeira metade do século XIV nasceram

cinco anos depois de Eckhart, isto é, em 1365: João Duns Scotus (+1308) e Dante Alighieri

(+1321). Estes tiveram como primeira tarefa histórica pensar criticamente o pensado

dos grandes pensadores do século XIII e estabelecer uma outra atitude para com a

tradição, nomeadamente, para com pensadores como Aristóteles, Proclo, Avicena e

Averróis. O tempo da vida destes pensadores é marcado por uma grande crise. Como

toda a crise, era risco e, ao mesmo tempo, oportunidade. Nesta crise, os poderes

universalistas, baluartes da cristandade medieval vão perdendo cada vez mais a força

histórica, abrindo passagem para uma outra época, a moderna. Assim, o feudalismo, o

papado, o império, a universidade e o saber escolástico, nesta crise, vão perdendo a sua

valência. Acrescente-se a isso a devastação operada pela peste negra, na metade

daquele século. É o chamado “outono da Idade Média” (Huizinga). É a perda de

substância histórica da Idade Média e, ao mesmo tempo, os primeiros sinais do advento

de uma outra época, que veio a ser chamada de moderna.

Nestas condições, não foi difícil o homem medieval sentir-se sem continente, em transição de paradigma, de passagem para um outro mundo. Os velhos padrões desvaneceram e os novos parâmetros ainda não se consolidaram. É momento de desorientação e angústia. Os modelos se desvaneceram, os valores gastaram-se e os princípios ficaram sem força. Predomina um intervalo de mundo. É tempo de transformação, não, apenas, de modos e de maneiras de viver, de formas e matizes de relacionamentos, mas, sobretudo, de estruturas e princípios. É dia de libertação de tudo que se desgastou, mas também momento de aventuras, de riscos e de ousadias. Nos interstícios encontram espaços as esperanças mais díspares e as experiências mais desencontradas40.

Eckhart foi frade da Ordem dos Pregadores. Na Ordem dominicana,

desempenhou serviços de docência universitária, de formação dos jovens frades, de

governo (foi prior de Erfurt e vigário da Turíngia, prior provincial da Saxônia e da

Teutônia, vigário geral da Ordem). Depois de 1313, Eckhart passou a ser encarregado da

“cura monialium”, isto é, da direção espiritual de monjas. Os Sermões Alemães que nos

chegaram são fruto deste serviço. Eckhart adotou a prática de pregar em alemão e de

expor aos que não frequentaram a escola questões e ensinamentos próprios do saber

40 Apresentação de Carneiro Leão ao primeiro volume dos Sermões Alemães, página 10.

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escolástico. Seu discurso era marcado pela ousia do pensamento, por uma especulação

ardente e uma afeição clarividente. O pathos da religiosidade, o entusiasmo, o fogo do

céu, nele, se compõe com a clareza da apresentação, com a sobriedade do pensamento.

Na sua retórica, seguia a orientação de Sêneca, de que se deve falar de coisas grandes

com sentidos elevados e com a alma elevada. E adotava a posição de que se pode e se

deve falar e escrever sobre as coisas grandes para as pessoas que não foram à escola.

Argumentava: “se não devemos ensinar (instruir) pessoas iletradas, então jamais

alguém será ensinado, e nesse caso pessoa alguma jamais poderá ensinar ou escrever.

Pois ensinam-se os iletrados por isso: para que de iletrados se tornem letrados. Se nada

houvesse de novo, nada se tornaria velho”. E, a propósito disso, evocava a palavra do

Evangelho: “Os que são sadios”, diz Nosso Senhor, “não precisam de medicina” (Lc 5,

31). É para isso que existe o médico, para curar os doentes”. E lembrava que a Bíblia

contém coisas difíceis de serem compreendidas, e, no entanto, ela é confiada ao povo

de Deus. É o caso, por exemplo, do evangelho joanino: “São João anunciou o evangelho

aos crentes, e, no entanto, inicia seu evangelho com o que de mais elevado um homem

pode pronunciar aqui de Deus; e muitas vezes também as suas como as palavras de

Nosso Senhor não foram retamente compreendidas41”.

Entretanto, muitos, inclusive confrades, não compreenderam este modo de agir

de Eckhart e nem o seu pensamento. Um confrade visitador da província da Teutônia,

Nicolau de Estrasburgo, fora encarregado de abrir um processo contra Eckhart. O fez,

mas sem muito entusiasmo, e não o conclui. Então o bispo de Colônia, Henrique II de

Virneburg, movido por razões eclesiásticas e políticas, moveu o processo de Inquisição

de Eckhart e convocou Nicolau de Estrasburgo, que se tornara seu defensor, para se

explicar. Duas listas de proposições suas são estabelecidas, uma de 49 e outra de 59.

Eckhart responde: é a “Verteidigunsschrift” (escrito de defesa). Em janeiro de 1327 ele

apela ao Papa diante do tribunal de Colônia. Em fevereiro, na Igreja de Colônia, diante

dos fiéis, protesta inocência. E, no mesmo mês, parte para Avignon, acompanhado de

três confrades, inclusive o prior provincial. A decisão da Sé Apostólica só acontece em

27 de março de 1329. O papa João XXII emite a bula “In Agro Dominico”, cuja publicação

41 Apud Giachini, Enio Paulo. Introdução. In: Eckhart, Mestre: Sermões Alemães: vol. I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 16.

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fora limitada à diocese de Colônia. Nela, condena 17 proposições como heréticas e 11

como suspeitas de heresia. A respeito destas, porém, concedia que, “com muitos

esclarecimentos e complementações poderiam resultar e ter um sentido católico”. Esta

condenação, porém, não foi capaz de anular a grandeza de pensamento de Eckhart e

sua vigência na história. Como lembra Carneiro Leão, com o tempo, Eckhart

se tornou o pensador por excelência da chamada ‘mística renana’ ou ‘mística especulativa’. Com a experiência do pensamento criador, deu em sua vida e obra o mesmo encaminhamento à confiança da fé que a mensagem ontológica de Cristo trouxera e sempre traz em novas parúsias no advento de toda época histórica. Foi o João Batista da parúsia moderna de Cristo. No cumprimento desta tarefa, abriu o horizonte e deu o impulso para toda a evolução, tanto das muitas línguas, como da unidade de todo o pensamento moderno42.

Eckhart fora denominado “Lesemeister” (mestre de leitura) e “Lebemeister”

(mestre de vida). Eckhart fora “Lesemeister” (mestre de leitura) enquanto se dedicou ao

ofício de ensinar na Schola, quer dizer, na universidade, ao modo de um “magister” da

escolástica. Desempenhara este ofício por períodos que foram intercalados com outros

serviços na Ordem dos Pregadores. A atividade de docência de Eckhart se deu na

universidade de Paris. Foi leitor das Sentenças nos anos de 1293-1294; mestre regente,

titular da cátedra reservada aos dominicanos estrangeiros, durante o ano universitário

de 1302-1303; e, como outrora Tomás de Aquino, teve a honra de ser “magister actu

regens” nos anos de 1311-1312. Três eram as atividades do teólogo enquanto doutor

escolástico: leitura, disputa e pregação. Neste ofício de ensinar, Eckhart propõe teses,

discute questões e estabelece interpretações, com os recursos do método escolástico.

Deste seu ofício surgem os diversos escritos que compõem a sua obra latina. Neste

contexto surge o projeto de seu “Opus Tripartitum” (Obra dividida em três partes), que

ficou incompleto. O “Prologus generalis in opus tripartitum” (prólogo geral para a obra

tripartida) declara:

A intenção do autor nesta obra dividida em três partes é satisfazer na medida do possível os desejos dos frades estudiosos, que já há muito tempo, com instantes pedidos, muitas vezes impelem e compelem, para que aquilo que eles acostumaram a ouvir, seja em lições e outros exercícios escolásticos, seja em pregações, seja em conversações cotidianas à mesa, seja posto por escrito,

42 Apresentação, Vol. I, p. 11.

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principalmente em três formas, a saber, em forma de certas proposições gerais e de teses; em segundo lugar, em forma de declarações breves e fáceis para diversas novas questões; em terceiro lugar, porém, em forma de raras exposições de numerosas sentenças da Sagrada Escritura de ambos os testamentos; especialmente aquelas que não foram recolhidas na memória e nem ouvidas, porque coisas novas e inusitadas irritam o ânimo mais do que as coisas costumeiras, ainda que sejam melhores e maiores. Segundo isso, pois, se divide esta obra total em três obras parciais principais: primeiramente, em obra das proposições gerais; segundo, em obra das questões, terceiro, em obra das exposições43.

Com o “Opus Tripartitum”, Eckhart propunha precisamente uma reforma total

da teologia. No dizer de Alain de Libera, era toda a estrutura formal do saber teológico

que devia ser redesenhada.

Entretanto, Eckhart fora também um “Lebemeister” (mestre de vida). Nos seus

serviços de formador e de líder da ordem dominicana, de pregador e de diretor espiritual

de monjas, Eckhart buscava uma outra reforma: a da vida religiosa. Mas para ele toda a

reforma deforma se não se der por uma transformação do viver que vem de uma

revolução do pensamento, uma “metánoia”. Deste empenho de pensador reformador

a serviço da transformação da vida pela revolução do pensamento surge a sua obra em

língua alemã.

Em Eckhart o “Lesemeister” (mestre de leitura) e o “Lebemeister” (mestre de

vida) são inseparáveis. Assim como a sua obra escolástica, latina, é marcada por uma

mística da união e da unidade, a sua obra latina, voltada para a “cura de almas” e para

a direção espiritual de religiosos e religiosas, é marcada pela especulação filosófico-

teológica. Alain de Libera observa esta unidade dizendo:

Não só é o mesmo homem que comenta a Bíblia para os seus estudantes, a assumir a direção espiritual das irmãs e a pregar em língua vulgar, mas, outrossim, é o mesmo pensamento e a mesma investigação a exprimir-se aqui e lá com meios adaptados às circunstâncias. Há, portanto, tanta teologia nos sermões alemães de Eckhart quanta espiritualidade nos seus comentários latinos44.

43 Eckhart, M. Prologi in Opus Tripartitum et Expositio Libri Genesis cum tabulis. Heraugegeben von Konrad Weiss – Vorreden zum dreiteiligen Werke und Auslegung der Genesis mit inhaltsverzeichnissen. Übersetst von Heinrich Lammers. 44 De Libera, A. Introduzione alla mística renana, p. 179.

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Eckhart é testemunha da unidade de escolástica e mística, característica

fundamental do pensamento medieval latino, herdeiro da tradição patrística, grega e

latina. Escolástica e mística, com efeito, constituem um fenômeno único, cujas

gradações variam dependendo se o interesse especulativo se volta para as relações de

Deus e mundo ou para as relações de Deus e a alma humana. As investigações

escolásticas, com efeito, dispõem o intelecto para a receptividade ao mistério de Deus,

e a mística especulativa, desenvolvida “seja no século XI com Santo Anselmo de

Cantuária, seja no século XII, com Bernardo de Claraval e os Victorinos, seja no século

XIV com mestre Eckhart, seja no século XV com Nicolau de Cusa, não se opõe ao conceito

e à reflexão, nem à dialética e ao discurso da razão, antes os integra todos numa

dinâmica concreta das atividades de videre, sentire e experiri pela interiorização de um

intuitus originarius”45.

Aqui e agora nos toca tentar compreender o pensamento criador de Eckhart,

como ele se aplicou às realizações e como ele se complicou com a realidade. É o nosso

passo seguinte. Podemos entender que este pensamento é uno e, ao mesmo tempo,

tríplice. Uma forma de pensamento é a filosofia. Outra, a fé e a teologia. Outra, ainda a

experiência radical de simplesmente viver e a mística desta experiência. Vamos tentar

agora acenar para os caminhos abertos por Eckhart nesta tríplice forma de pensamento.

Pelo limite desta exposição, porém, vamos nos restringir ao pensamento como fé e a

teologia, de um lado, e o pensamento como filosofia, de outro lado. O pensamento

como a mística da experiência de simplesmente viver vamos deixar apenas como plano

de fundo e, ao mesmo tempo, como uma espécie de filigrana, esperando um outro

momento oportuno de meditação.

45 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Medieval. In: Scintilla, 2012, p. 150.

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III.2. O PENSAMENTO DE ECKHART COMO FÉ E A TEOLOGIA

Eckhart, cumpre lembrar, permanecerá fundamentalmente um teólogo cristão

da Ordem dos Pregadores: um homem a serviço da Palavra de Deus. Eckhart poderia,

enquanto tal, dizer de si o que disse Tomás de Aquino: “A tarefa principal da minha vida,

à qual me sinto obrigado em consciência diante de Deus, é que todas as minhas palavras

e todos os meus sentimentos falem d’Ele”. A teologia será para ele, como era para

Alberto Magno, scientia secundum pietatem (um saber segundo a piedade, isto é, a

veneração do mistério de Deus). A teologia se baseia no conhecimento teologal da fé. É

contemplação da fé. A fé tem uma universalidade própria, transfiguradora. À luz da fé a

realidade se manifesta como epifania. A fé ilumina e alegra tudo, todo o real, todas as

realizações, toda a realidade: constitui um novo céu e uma nova terra, em que o mistério

divino se manifesta por toda a parte e em todo o tempo. Esta visão da fé que incide

sobre a alma do homem peregrino “informa” (dá forma a) o intelecto. A graça da fé e o

conhecimento vivo do Deus vivente que ela permite na vida presente adianta e põe a

caminho aquele processo que se consumará na vida eterna: a união ou conjunção

(coniunctio) do intelecto humano com o intelecto divino. Na vida presente, para falar

com os termos de Dionísio Areopagita, o máximo deste processo se dá quando o

intelecto humano é envolvido na caligem (escuridão) supra e superluminosa da deidade.

Um “impulso proveniente da luz da glória” converte o intelecto para Deus e “o reconduz

para a unidade do Pai”46.

Nas suas ocupações escolásticas em Paris, primeiramente, como Bacharel, nos

anos de 1293 e 1294, Eckhart comentou as Sentenças de Pedro Lombardo (1293-1294).

Estes comentários não nos chegaram. Apenas uma conferência inaugural, intitulada,

“Principium”, foi-nos transmitida. Este texto já acena para o direcionamento que a

teologia de Eckhart tomará no resto de sua vida. Nesta aula inaugural, ele comenta um

versículo do livro bíblico do Eclesiástico (38,4), que, em latim, soa assim: “Altissimus

creavit de terra medicinam” (O Altíssimo criou da terra a medicina). Nesta sentença

bíblica ele vê os quatro temas que formam os quatro livros das sentenças de Pedro

46 Cfr. De Libera, Alain. Meister Eckhart e la mística renana. Milano: Jaca Book, 1998, p. 48-49.

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Lombardo e que apresentam os quatro temas que são como que quatro eixos de toda a

teologia escolástica medieval. Na palavra “Altissimus”, o tema de Deus uno e trino. Deus

é considerado em dois aspectos: “ut est altissimus in se et ut est altissimus respectus

naturae creatae” (enquanto é altíssimo em si e enquanto é altíssimo em referência à

natureza criada). O tema de “Deus altíssimo em si” se refere às questões das

propriedades essenciais e pessoais de Deus. O tema de “Deus altíssimo em referência à

natureza criada” se refere a Deus enquanto é princípio do poder, do conhecer e do

querer. Na palavra, no verbo, “creavit” (criou), lê o tema do segundo livro das Sentenças:

o ato criador de Deus e o que este ato produz: a criatura. A teologia deve tratar tanto

da criatura corporal, quanto da criatura corporal e racional, que é o homem. Na locução

“de terra” (da terra), colhe o tema do terceiro livro, a encarnação. “Da terra”, com efeito,

nomeia a humildade de Cristo, isto é, a humanidade de Deus, do Verbo, sua “kénosis”,

isto é, sua “exinanitio”, sua saída e seu esvaziamento, que se desdobra nos subtemas da

encarnação, da paixão e morte de Cruz. Cristo é modelo de perfeição. Dele advém, ao

mesmo tempo, a graça, os dons e as virtudes, de que vive um cristão. Na palavra

“medicinam” (a medicina, o remédio), ele lê o tema do quarto livro: a salvação, isto é, a

saúde, o vigor essencial da vida do homem, cuja recuperação é dádiva da encarnação

do Verbo de Deus, que se desdobra nos subtemas: a medicina dos sacramentos, que

reconstitui no homem a saúde, o vigor essencial da vida; a medicina da graça justificante,

que cura o homem da enfermidade do pecado; a ressurreição que cura o homem do mal

da morte, e glória, que reintroduz o homem no esplendor do ser de Deus. Os quatro

temas da teologia escolástica remontam à história da salvação bíblica, e, ao mesmo

tempo, se inserem num plano de fundo de pensamento neoplatônico, que compreende

a realização de todas as coisas desde os polos da saída (Exodos, exitus) de todas as coisas

de Deus e do retorno (Prohodos, reditus) de todas as coisas em Deus.

O sentir-pensar de Eckhart a respeito de Deus seguirá as vias abertas pela

revelação bíblica e pela contemplação da fé. Em seu discurso, isto é, em seu falar, que

se dá a partir de um escutar e silenciar, vem à luz do intelecto um Deus altíssimo,

transcendente, “epékeina tes ousias”, como diria Platão, “sobre-essencial e sobre-

divino”, como diria Dionísio Areopagita, e, ao mesmo tempo próximo e intimíssimo ao

homem, à sua alma. O que está em questão é um Deus a quem o homem pode invocar,

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num encontro pessoal, como a um Tu, dizendo, como dizia Agostinho: tu és “intimius

intimo meo, superius supremo meo” (mais íntimo do que o meu mais íntimo e superior

ao que há de mais de mais elevado em mim). A “coisa”, isto é, o que está em causa,

neste sentir-pensar de Deus, é um Deus amor, em que a unidade da deidade se põe

junto com a pluralidade das pessoas divinas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo; um Deus,

cuja plenitude superfluente de ser, fervilhante na vida da Trindade, se derrama

gratuitamente no ato criador; um Deus que é superabundância do ser e que doa este

mesmo ser à criatura, chamando-a à existência, desde o nada; um Deus cuja criação

inaugural e também contínua é uma ressonância, no tempo, da geração do Filho pelo

Pai, princípio sem princípio, raiz da deidade – geração do Filho que se dá, assim como a

espiração do Espírito, num devir sem devir; geração que é como o dizer de uma Palavra,

um dizer que emerge do silêncio abissal, do fundo sem fundo da deidade; um Deus que

cria o homem para ser com o Filho, no Filho, como Filho; um Deus cujo arcano mais

profundo é justamente a unidade Deus-Homem, que se torna evento na encarnação;

um Deus que se retrai no seu mistério de identidade absoluta como o “non aliud” (o

não-outro), para dizer com Nicolau de Cusa, mas que, ao mesmo tempo, deixa e faz ser

a dinâmica da diferença e da diferenciação dos entes na temporalidade do universo; um

Deus eterno, mas que entra e se abisma na temporalidade, deixando com que a história

da salvação do homem se torne sua própria história, a história de Deus, do Deus com os

homens, portanto, um Deus que se faz experiência, acontecimento, evento, plenitude

do tempo; um Deus que, pela humildade, se abisma nas profundezas da alma e nas

baixezas da condição humana; um Deus que tem a necessidade de doar-se e que doa ao

homem a disponibilidade de recebe-lo, no desprendimento; um Deus que, pelo

esvaziamento da pobreza, se oferta na dimensão da diferenciação e mesmo da

contradição, da Cruz; um Deus de misericórdia, de amor entranhado, que, na ternura de

tal amor, assume a fraqueza e a demência da Cruz, que sofre com o homem e como

homem – assume em si e sobre si o que lhe é mais contrário: o mal, o mistério da

iniquidade, o desamor; um Deus que, assumindo a humanidade do homem para si, eleva

todo o homem a si, dispondo-se a, gratuitamente, deificá-lo, isto é, torna-lo igual a si,

idêntico consigo, um consigo, no amor; um Deus que, no homem deificado e com o

homem deificado, cria um novo céu e uma nova terra; um Deus que, enfim, se faz tudo

em todas as coisas.

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Assim, como teólogo cristão, o sentir-pensar de Eckhart é cristocêntrico. A

cristidade do cristianismo aqui não é religião, no sentido de uma doutrina humana sobre

Deus, mas é, antes, revelação histórica, revelação enquanto história, e história enquanto

revelação, o irromper do acontecimento universal do reino de Deus, a irrupção do

acontecer de Deus, do destinar-se de Deus entre os homens, com os homens, nos

homens e, por conseguinte, dos homens com Deus e em Deus. Deus recebe em si e

assume para si a humanidade dos homens. Em contrapartida, Deus doa aos homens,

renascidos e justificados pela graça, a sua deidade. O sentir-pensar de Eckhart se volta,

pois, para a unidade Deus-Homem, que, na dinâmica da história da salvação, feita

história do Deus humanado, culmina na realização do homem deificado. O Deus

humanado, Jesus Cristo, faz surgir de si o homem deificado. O acontecimento histórico

singular da encarnação e o fato histórico da Cruz, que se dá uma única vez e de uma vez

por todas, toma, então, dimensões universais, isto é, se oferece e se comunica a todos

os homens, como graça. A graça é Deus com o homem. É o homem nascendo em Deus

e Deus nascendo no homem. A história do homem, a história de uma alma, se torna,

então, uma participação deste acontecimento, ou melhor, uma realização da comunhão

com Deus, que vai tornando o homem igual a Deus, idêntico com Deus, um com Deus,

enfim, um com o Um, um no Um. Graça é princípio. Glória é fim. O princípio já tende

para o fim. O fim é a consumação do princípio. A teologia de Eckhart é um ansiar por

esta consumação. O tempo se torna, assim, o apressar-se do retorno de todas as coisas

para Deus, por meio da alma humana, por meio do homem que vai sendo deificado. A

teologia da encarnação, aquilo que os medievais consideravam como o “Summum Opus

Dei” (a suma obra de Deus), em Eckhart, ilumina, na contemplação da fé, todas as coisas.

É o paradoxo de uma singularidade universal. “A Encarnação ultrapassa em Graça e

Verdade os limites do Jesus Histórico e transborda para a história de toda a Criação.

‘Transfigurando-se de glória em glória’ a Filiação Divina do Verbo Encarnado não atinge

somente o homem, mas se estende do homem para todas as criaturas, na totalidade do

real e no universo das realizações”47. A encarnação é, assim, princípio da reconstituição

47 Leão, Emmanuel Carneiro. In: Scintilla (Revista de Filosofia e Mística Medieval), vol. 9, n. 1, janeiro-junho de 2012, p. 15-16.

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e renovação de todas as coisas, inauguração de novo céu e nova terra, em que Deus se

torna tudo em todas as coisas.

III.3. O PENSAMENTO DE ECKHART COMO FILOSOFIA.

Filosofia não é doutrina. Filosofia é atividade – a atividade de aprender a pensar.

Em certo sentido, bem amplo, pensador é todo o homem. Com efeito, é constitutivo do

humano o pensar. Num sentido estrito, porém, pensador é aquele homem que assume

este ser pensador, constitutivo de todo o homem, numa radicalidade tal que dele se

pode dizer o seguinte: que nasceu, pensou e morreu. Eckhart é um destes pensadores.

Um destes homens cuja grandeza consiste pura e simplesmente em ter nascido,

pensado e morrido.

O pensamento, em Eckhart, se torna filosofia, a atividade de aprender a pensar.

A piedade do pensamento, porém, consiste em questionar o sentido de ser do que está

sendo em seu todo. A vigência da filosofia na história ocidental, também na época

medieval, chama-se metafísica. A metafísica é o âmbito que filosofa Eckhart. Ela é, ao

mesmo tempo, o exórdio para um outro pensar, que tende a uma superação da

metafísica. Percebemos a tendência a esta superação da metafísica quando

perguntamos pela “coisa mesma” que constitui o a-se-pensar do pensamento de

Eckhart e percebemos que, na busca, questionamento e investigação desta “coisa

mesma”, o nosso Mestre recupera a dimensão de fundo de todo o pensar, esquecida

pela metafísica, que está na base de sua estrutura onto-teo-lógica e que, neste sentido,

vige aquém e além de todo o discurso metafísico.

O âmbito da metafísica se estabelece para um pensador desde a compreensão

epocal do ente, da entidade e do entear do ente. Com outras palavras, a posição

metafísica de fundo de um pensamento se estabelece a partir da compreensão do ser,

o qual se dá como uma “parousia”, isto é, como um advento da realidade, que possibilita

as realizações do real, o seu tornar-se presente e o acontecer de sua verdade, isto é, de

manifestação. A metafísica é o questionamento do ente e de sua essência, isto é, de sua

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entidade. Quando o questionamento se abre para a vastidão do ente como totalidade,

torna-se interrogação e meditação sobre o que é o mundo. Quando o questionamento

se aprofunda na direção do ponto de salto e de eclosão do mundo, torna-se a

interrogação e meditação sobre o que é a alma e sobre o seu fundo, isto é, a sua

essência. Quando o questionamento investiga a origem do ente, seja como mundo, seja

como alma, se torna a interrogação e a meditação sobre o Primeiro Princípio de tudo,

aquilo que “nós chamamos Deus”.

O tríplice questionamento metafísico, porém, se dá desde aquilo que podemos

chamar de “posição metafísica de fundo” de uma época. Desde esta posição metafísica

de fundo esboça-se o quadro epocal em que se desenham as tendências dos modos de

crer e saber, criar, pensar e agir, trabalhar e festejar, lutar e dominar, amar e morrer.

Esta posição metafísica de fundo se articula de modo quádruplo: pelo modo como se

projeta o ser do ente, ou seja, sua entidade; pelo modo como se delimita a essência da

verdade do ente; pelo modo como o homem é homem e se sabe a si mesmo no

relacionamento de ser e pensar com o ser do ente no seu todo; e, enfim, pelo modo

como o homem, no exercício de sua responsabilidade de ser, recebe e dá a medida à

verdade do ente enquanto tal e no seu todo (Cfr. Heidegger, 1998b, p. 120).

Aqui, por uma questão de brevidade, não poderemos fazer uma exposição sobre

a metafísica em Eckhart. Vamos somente dar uma indicação sobre a direção que toma

o pensar metafísico de Eckhart. Esta indicação se encontra no Prólogo ao “Opus

Propositionum”:

Há que se notar, a título de introdução, em primeiro lugar, que Deus somente é, com propriedade, ente, um, verdadeiro e bom. Em segundo lugar, que a partir dele todas as coisas são, são verdadeiras e são boas. Em terceiro lugar, que a partir dele, imediatamente, todas as coisas têm o fato de que são, de que são um, de que são verdadeiras, de que são boas. Em quarto lugar, quando digo “este ente” ou “este um” ou “aquele um”, ou este e aquele verdadeiro, tanto o “este” como o “aquele” não ajuntam nem adicionam nada de entidade, de unidade, de verdade ou de bondade ao ente, ao um, ao verdadeiro, ao bom48.

48 Commenti all’antico testamento: p. 82-83.

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No “Opus Propositionum”, a primeira de todas as proposições é: “Esse est Deus”

– Ser é Deus. Ela é primeira no sentido de ser o princípio que deverá reger a todas as

outras. Eckhart inverte a proposição de Tomás de Aquino: Deus est ipsum esse (Deus é

o ser mesmo)49. O que quer dizer esta inversão? Vamos buscar uma dica no comentário

ao livro do Eclesiástico, em que Eckhart comenta o verso 21 do capítulo 24: “qui edunt

me, adhuc esuriunt”: “aqueles que se nutrem de mim, ainda têm fome”. E Eckhart diz:

“omne ens edit deum utpote esse” - todo ente se nutre de Deus, para que possa ser. Ou

seja: tudo o que é só é na medida em que recebe o poder ser e o fato de ser de Deus.

Tudo o que o ente é o é por graça e virtude de Deus. Por si mesmo, o ente criado nada

é. Tire-lhe o ser que é dado por Deus, e o ente volta ao nada. “Extra esse et ante esse

solum est nihil” - fora do ser e em face do ser só há o nada. O ser que o ente tem é-lhe

dado apenas de empréstimo. O ser é uma propriedade de Deus e não da criatura. Da

criatura é somente o nada. E mesmo o nada da criatura, enquanto nomeia uma

possibilidade de ser alguma coisa, de receber o ser de outro, é também uma dádiva de

Deus. O ser é comunicado à criatura, como uma dádiva indevida, supérflua,

absolutamente gratuita. "Todas as criaturas são um puro nada. Não digo que são

insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra coisa assim. Elas são um puro nada",

diz Eckhart.

Entre o criado e Deus não há diferença de grau na perfeição do ser, como

afirmava a doutrina da analogia do ente em Tomás. Há, sim, um abismo total: o abismo

do nada. Somente Deus é e tudo o que há de ser na criatura, bem como todas as

perfeições transcendentais do ser que lhe é comunicada (a bondade, a verdade, a

unidade, a beleza), tudo isso é de Deus, melhor, tudo isso é Deus. E a criatura comunha

do ser (dele se nutre, se alimenta-se) por pura dádiva e como que "por empréstimo". De

Deus é o ser, pois o ser é Deus. Da criatura o nada e do nada advém o fato da criatura

ser sempre um ser determinado, um “esse hoc et istud” – um ser isto e aquilo.

Tudo isso é dito positivamente. Mas, Eckhart, como bom pensador, também diz

o contrário disso. Dizem que os pensadores se contradizem sempre uns aos outros.

Eckhart, como bom pensador, contradiz a si mesmo. Na proposição "esse est Deus” (o

49 (LEÃO, 2008, p. 257-259; HEINZMANN, 1992, 268-274).

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ser é Deus), Eckhart elabora uma ontologia da identidade. Nesta ontologia, à criatura

pertence somente o nada. Em seguida, Eckhart elabora uma ontologia da diferença,

salientando a transcendência de Deus em relação ao ser e atribuindo o nada a Deus e o

ser à criatura.

A ontologia da diferença se dá numa proposição que aparece nos Sermões

Latinos (XXIX; LIV): “Deus est intelligere” – Deus é pensar e conhecer50. Não que Deus

seja um pensar que pensa o que já é. Mas sim, um pensar que, em pensando, faz ser o

que não é. Enquanto tal, Deus está acima do ser (epekeina tes ousias, como dizia Platão).

A criatura é. Ser é, aqui, ser um ente determinado, um "hoc et istud" (isso e aquilo).

Neste sentido, ser é algo de criatural. Deus não é, à medida que ele transcende todo o

ser. A niilidade, porém, de Deus é diversa da niilidade da criatura, exposta na primeira

proposição (esse est Deus). A niilidade de Deus é sua transcendência, como já indicava

João Escoto Eriúgena. Dizer que Deus é o ser pleno e puro, é ainda dizer muito pouco de

Deus. Em si, Deus está além de todo o ser no sentido da entidade do ente. Pois ele, como

intellectus, ou seja, como Um, como unidade que tudo reúne, é a fonte de todo o ser e

não ser da criatura). Tudo é à medida que é um pensamento de Deus, um pensamento

pensado deste a eternidade, não tanto como o artista pensa a sua obra, mas muito mais

como a mãe pensa no seu filho, que vai nascer. Pois a criação é geração, melhor, é

participação na filiação, pois é no Filho (o Logos ou Intelecto) que Deus cria todas as

coisas. E tudo o que é, é no Filho, pelo Filho e para o Filho. Por isso, a maior obra do

homem consiste em vir a ser o que ele era, em Deus, antes de existir (no mundo e em si

mesmo): ser um nada em si mesmo e ser filho no Filho, ser Deus com Deus e em Deus,

e isso por pura graça, não como algo que é devido por natureza.

A metafísica pode ser comparada a uma raiz que está arraigada no nada. Superar

a metafísica significa recordar-se do nada. O nada não é aqui o outro do ser. É o próprio

ser como outro do ente em seu abismo, em seu velamento, em sua retração, e em seu

silêncio. Ao dar-se conta e recordar-se do nada a filosofia deixa de ser metafísica para

ser outro pensar, um pensar radical e originário. No pensamento de Eckhart podemos

perceber um movimento nesta direção de questionamento. Em nosso empenho de

50 (HEINZMANN, 1992, 273-274)

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explicar o pensamento de Eckhart e de nos explicar com ele, precisamos caminhar com

ele também nesta direção. Vejamos como se dá, no pensamento de Eckhart, este

direcionamento.

Seguindo este direcionamento, somos levados à “coisa mesma” do pensar, isto

é, aquilo que provoca o pensamento de qualquer pensador a pensar, embora

permaneça, como tal, o impensado. É que, isto que provoca o pensamento a pensar não

é nenhuma representação. É a “coisa mesma”, sem a qual, não pode haver nenhuma

representação e nenhum juízo. A “coisa mesma” é a própria realidade deixando e

fazendo acontecer a realização do real. Ou melhor, é a realidade em retirada, dando-se

furtivamente, nas realizações do real. “Coisa mesma” significa, aqui, o que está em

causa, como o a-se-pensar, em todo o empenho de aprender a pensar, nas e com vias

do pensamento dos pensadores. Esta “coisa mesma” é o que, como retração e

retraimento do mistério de ser no tempo, atrai o pensamento, o traciona pelas vias da

linguagem, a partir da paixão pelo sentido.

A coisa mesma (Sache selbst) do pensamento, isto é, aquilo que está em causa,

que move, mobiliza, põe a caminho o pensar não é nenhuma coisa (Ding), não é nenhum

isto ou aquilo, não é nada, ou melhor, é um nada, ou, melhor ainda, é o Nada. Não se

trata, porém, de um nada privativo nem de um nada negativo, seja do ente, seja do ser.

Trata-se, antes de um nada criativo, tanto da posição, quanto da negação, quanto da

composição de posição e negação. Por isso, vem antes de toda a tese, de toda antítese

e de toda a síntese. Um nada que, portanto, está aquém de afirmação e de toda a

negação, mesmo de toda a dialética ou paradoxo. Está aquém de toda a representação

e de todo o juízo, de toda a inferência, de toda a argumentação, de toda a construção

teorética, de toda a ciência.

Filosofia não é ciência nem saber. É nesciência, não-saber, “douta ignorantia”,

diria Nicolau de Cusa, um pensador que aprendeu a pensar com Mestre Eckhart.

Filosofia é, neste sentido, uma reductio (redução, no sentido de recondução) ao Nada.

O pensador do Nada é um Idiota. Isto quer dizer: é um pensador fora do comum, todo

próprio, uma planta rara. É preciso ser Idiota o bastante, um pensador versado na

“douta ignorantia”, para saber o Nada. Somente o saber do Nada, o saber do Idiota, a

Douta Ignorância, supera o niilismo da Metafísica, ou seja, o seu esquecimento do Ser

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enquanto tal, enquanto anterior à entidade do ente, e, por conseguinte, o esquecimento

do Nada do Ser. Para o niilismo da Metafísica o Nada só pode mesmo não ser ou então

ser o privativo, o negativo, o destrutivo. Niilista é aquele para quem o ser esvaneceu,

para quem o ser se aniquilou. É aquele para quem o ente é tudo e o ser é o máximo da

abstração, o “imediato indeterminado” (Hegel), ou o universal universalíssimo e vazio,

ou ainda o um mero conceito, “a última fumaça da realidade evaporante” (Nietzsche)51.

Não só. Niilista é aquele que se esqueceu da niilidade do mistério do ser. É aquele que

não consegue pensar o Nada, ou que só consegue pensar o Nada como privação ou

negação do ente ou no ente. Um niilista não consegue entender que a palavra “Nada”

possa significar também o que transcende todo o ente, o que já sempre o transcendeu.

Que “Nada” possa ser o nome para a imensidão abissal do ser, do ser como outro do

ente, ou melhor, do ser como o não-outro.

A niilidade do nada, aqui, precisa ser entendida como a diferença do ente. Trata-

se, pois, não da diferença entre ente e ente, entre modo de ser e modo de ser, mas da

diferença radical e abissal entre ente e Ser. Trata-se de uma distância entre ente e Ser,

que jamais pode ser percorrida e, assim, ultrapassada pelo ente, enquanto ente.

Contudo, esta distância é, ao mesmo tempo, proximidade. Pois, nesta distância e

diferença, o Ser não nega o ente, pelo contrário, justamente aí é que ele deixa ser o ente

enquanto ente. Apenas, o Ser se recusa e se nega a apresentar-se como ente. Esta

recusa, esta renúncia, no entanto, não tira nada ao ente, pelo contrário, ela deixa ser ao

ente a possibilidade de se manifestar como ente. Este pudor do mistério do Ser é, pois,

a fonte de tudo aquilo que se mostra. Graças a este pudor, o Ser pode ficar esquecido.

Graças a este esquecimento é que o Ser enquanto Ser pode ser, para aqueles que

pensam desde o ente e sua entidade, chamado de Nada.

O nome “Nada”, aqui, evoca o silêncio do sentido do ser, da realidade em

retirada deixando e fazendo acontecer as realizações do real. “A arte de pensar é dada

por um modo extraordinário de sentir e de escutar o silêncio do sentido, nos discursos

das realizações”52. Por isso, para a experiência do pensamento, a linguagem não é

apenas as tramas do falar e dizer de um discurso, é, antes, o escutar e o calar que deixa

51 Crepúsculo dos deuses, VIII, 78. Apud: introdução à metafísica, p. 63. 52 Leão, E. C. Aprendendo a pensar II. Daimon, p. 204.

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ser a ressonância do silêncio do sentido, que nos põe a caminho, nos envia, nas vias do

nosso pensar. No pensamento, “uma paixão mais ordinária do que toda a semântica ou

qualquer sintaxe, a paixão do sentido, toma posse de nosso ser e nos faz viajar por

dentro do próprio movimento de referir, de remeter, de enviar”53.

Mestre Eckhart fez a experiência da “coisa mesma”, isto é, da radicalidade do

pensamento, que é tracionado pela retração do mistério do ser, como o silêncio do

sentido ou a entoação do Nada na sonância e ressonância do ser. Num dos Sermões

Alemães (101), que toma em consideração o introito da missa noturna do Natal, ele

comenta uma passagem do livro bíblico da Sabedoria: “Quando todas as coisas estavam

no meio de um silêncio, então do trono real desceu” “uma palavra secreta em mim” (Sb

18, 14-15). Eckhart se concentra primeiro na expressão “dum medium silentium

tenerent omnia” (enquanto todas as coisas eram tidas no meio-silêncio). Então ele

exclama, dizendo:

Ó, Senhor, onde está o silêncio e onde está o lugar onde esta palavra foi dita? Observai, no entanto, o que eu disse anteriormente: Está no mais límpido que a alma pode efetuar, no mais nobre, no fundo, sim, no ser da alma, isto é, no mais abscôndito da alma. Ali é “o meio silêncio”, pois ali nenhuma criatura pode entrar, nenhuma imagem; ali, a própria alma não possui atuação nem compreensão, não sabe de nenhuma imagem, seja de si mesma ou de qualquer criatura54.

Este discurso não fala sobre o silêncio. Fala desde o silêncio. Fala, de tal modo

que seu discorrer deixa ser em si mesmo e por si mesmo o silêncio a respeito do qual

discorre. É que o silêncio não é algo de objetivo. Nem mesmo é algo de subjetivo. O

silêncio não é a mera ausência de ruído das coisas, nem é o mero calar do homem. O

homem pode calar e, neste calar, não deixar ser o silêncio. O homem pode falar e deixar-

ser o silêncio. Do mesmo modo, pode calar e deixar ser o silêncio. Pode falar e não deixar

ser o silêncio. É que o silêncio não é nenhuma atuação do homem. Não é algo que o

homem pode fazer ou deixar de fazer. O silêncio, de que fala Eckhart, não é um silêncio

que o homem ou as coisas podem ter. É, pelo contrário, algo como um “medium”, um

meio, um elemento, uma ambiência, algo que envolve e perpassa, uma atmosfera, que

53 Idem. 54 Volume II, p. 192.

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tem todas as coisas, inclusive o homem, o fundo e a condição de possibilidade de sua

vitalidade e de toda a sua atuação, de toda a sua atividade e passividade, de toda a sua

ação e omissão, e, portanto, é a sua essência abscôndita, o seu ser inapreensível, que se

dá sempre na fuga de toda a tentativa de apreensão e de objetivação. Este silêncio não

é algo que se possa ter. É o que tem todas as coisas. Medium é o medial. Não é ativo

nem passivo nem reflexivo. O medial é o que se faz a si mesmo, se perfaz, se envia como

experiência fundante da abertura, do salto, da eclosão do mundo. Medial é ser como

“actus primus”, ato primeiro. Ou melhor: medial é a entoação do nada na sonância e na

ressonância do ser:

O ser sopra sob mil e mil tonalidades em todos os verbos do nosso falar, seja na voz ativa, na passiva, na reflexiva. E assim, em suma, ser é a ação de fundo, a ação onipresente em todas as atuações de todas as nossas ações e não ações (...). E o que os antigos denominavam de medial, que hoje defasado, restou como voz reflexiva do verbo, não seria propriamente o modo da possibilidade de ser que é o originário, elementar e primeiro de todas as ações, paixões, recepções e reações reflexivas, portanto, a potência, a possibilidade dada de antemão, a priori, como entoação do nada, onipresente, retraído no pudor e na continência da plena liberdade de sua jovialidade? Antes de e em todas as possíveis e atuais variantes de entidades, silencioso, modesto e discreto é o nada, antes e depois, dentro e fora do ser e nada, de tudo e nada, em sendo o constante sustento da ocorrência do simplesmente dado, de tal modo simples que se é, antes e sem precisar dizer que ser e pensar é o mesmo55.

Filosofia é o empenho do pensamento radical. A radicalidade do pensamento

depende de sua capacidade de pensar não somente ao largo do senso comum e à

margem da ciência, mas também de pensar contra a filosofia, contra a sua historiografia

e os seus padrões e “ismos”, contra os seus problemas montados e suas respostas

prontas, contra as fixações de suas definições e suas doutrinas, suas disciplinas e seus

sistemas, como, ainda mais, de o pensamento pensar contra si mesmo, para poder

corresponder à linguagem, ou melhor, para poder responder ao silêncio do sentido, à

entoação do nada na sonância e ressonância do ser.

A piedade do pensar consiste no questionar. Consiste em questionar o sentido

de ser. Isto significa: ser tracionado na e pela retração do ser. A retração do ser significa:

55 Harada, Hermógenes. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana e franciscana. Petrópolis: Vozes / Bragança Paulista: Universidade São Francisco (Instituto Franciscano de Antropologia) / Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, 2009, p. 233-234 (negrito do autor).

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o ser, subtraindo-se, velando-se no pudor do seu mistério, deixa e faz ser com

propriedade todo o ente, e atrai o pensamento para o seu fundo abissal. O sentido do

ser não é nada. Ou melhor: é um nada. Um nada que dá ao pensamento a riqueza da

pobreza do não-saber. É desta pobreza, de fato, que nasce a jovialidade do pensar.

E o sentido do ser não é nenhum conteúdo determinado, mas sim um desvelar-se do Abismo da serenidade do Nada, que afeiçoa cada vez mais a nossa busca, a sabermos cada vez menos, a fim de nos dispormos cada vez mais, a melhor ouvir, a melhor auscultar e a melhor receber as novas possibilidades de ser, emergentes dessa plenitude abissal do Nada. Essa busca, quanto mais busca, tanto mais se torna pura disponibilidade da espera auscultante do inesperado, na total pobreza do saber, na plenitude do vazio de uma recepção atenta, na vulnerabilidade da finitude alegre e grata (Hermógenes Harada – De Estudo...).

Eckhart nos acena para o Nada num Sermão Alemão (n. 71), que fala da

conversão de Paulo, intitulado: “Surrexit autem Saulus de terra apertisque oculis nihil

vedebat” (levantou-se, porém, Saulo, da terra e, abertos os olhos, nada via – At. 9, 8).

Eckhart aproveita deste Sermão para falar da máxima iluminação do pensamento, a

abertura do olhar do intelecto em, que o homem é envolvido por aquilo que Dionísio

Areopagita chama de “caligem divina”, ou seja, pela “obscura”, isto é, “supraluminosa”

luz da Deidade. Eckhart diz:

Parece-me que essa palavrinha tem quatro sentidos. Um sentido é que quando se levantou da terra e de olhos abertos nada via, esse nada era Deus; pois quando viu a Deus ele o chamou de um nada. O segundo sentido: quando se levantou, ele ali nada viu senão Deus. O terceiro: nada viu em todas as coisas senão Deus. O quarto: quando viu a Deus, viu então todas as coisas como um nada56.

Mestre Eckhart foi um pensador, isto é, aquele cujo saber e não-saber sabe ao

nada, traz o sabor do nada criativo. Quem sabe, não pensa. E quem pensa, não sabe. Por

isso, perguntar é a piedade do pensamento. Para um pensador amante da pobreza, que

se dispõe a ser um Idiota, um homem versado na “douta Ignorância”, um único saber, o

saber do não-saber, o saber do Nada, é digno de ser buscado, em todo o questionar.

Este saber do não-saber, este saber dos idiotas, é coisa rara. No acima referido sermão

de Natal, ou seja, sermão da Noite Silenciosa, Eckhart fala deste não-saber:

56 Vol. 2, p. 64.

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Toda a verdade que todos os mestres já ensinaram com o próprio intelecto e compreensão ou que devem ensinar sempre mais até o último dia, todos esses jamais compreenderão o mínimo que seja desse saber e desse fundo. Embora se chame de não-saber e ignorância, possui interiormente mais do que todo saber e conhecimento fora dele. Pois esse não-saber cativa-te e atrai para fora de todas as coisas sabidas e de ti mesmo. Foi o que teve em mente Cristo quando disse: “Quem não renunciar a si mesmo e não deixar pai e mãe e tudo o que é exterior, esse não é digno de mim” (Mt 10, 37-38)57.

A renúncia não é uma perda, mas é, antes um ganho. Heidegger interpretava a

renúncia como um “re-anúncio”. Certamente, o re-anúncio da riqueza e da plenitude do

ser se dando na pobreza receptiva do não-querer, do não-saber, do não-ter. Renúncia é

abnegação. A abnegação, porém, não é mera negação, mas é, antes, a abertura para o

nada criativo. “A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da

simplicidade”58. O Nada do ser é a simplicidade. Simplicidade é a vigência e o vigor do

simples. “Simples” significa sem articulação, sem dobras, inteiriço, uno, um”. Num

Sermão Alemão (nº 21), em que comenta a locução “unus deus et pater omnium” (um

Deus e pai de todos – Ef. 4,6), Eckhart se refere ao Um. O Um é o Nada, não como

negação, mas como negação da negação:

São Paulo diz: “Um Deus”. Um é algo mais puro do que bondade e verdade. Bondade e verdade nada acrescentam. Acrescentam sim no pensamento; quando é pensado, então acrescenta. Um, ao contrário, nada acrescenta, onde ele <Deus> é em si mesmo, lá ele é antes de efluir no Filho e no Espírito Santo (...). Um mestre afirma que um é um negar do negar. Se digo “Deus é bom”, isso então junta algo <a Deus>. Um <ao contrário> é um negar do negar e um denegar do denegar. O que significa <um>? Significa aquilo a que nada se ajunta. A alma recebe a deidade como ela é em si apurada, onde nada <lhe> é acrescentado, onde nada é pensado <de acréscimo>. Um é um negar do negar. Todas as criaturas carregam em si uma negação; uma nega ser a outra. Um anjo nega que seja um outro <anjo>. Deus, porém, tem um negar do negar; ele é Um e nega tudo o mais, pois nada é fora de Deus.

O Um não é um entre outros. Não é nenhum isto ou aquilo. Não é o outro. Nem

o totalmente outro. É o não-outro. É o Mesmo. A identidade de que provém e que rege

e sustenta, conduz e consuma toda a diferenciação e toda a diferença. O Sempre o

57 Vol. 2, p. 199. 58 Heidegger, O Caminho do Campo (de 1949), tradução do Carneiro Leão, em Revista Vozes, n. 4, 1977, p. 328.

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Mesmo. Heidegger, num texto intitulado “O Caminho do Campo” (1949) fala do Simples

como o Um e faz alusão a Eckhart. Como pensador, ele experimentou que, na

receptividade do não-saber do pensar, isto é, no ver simples que deixa ser a simplicidade

do ser e, nela, o Nada como o retraimento de seu fundo abissal, cresce e amadurece um

saber jovial e sereno. Em “O caminho do Campo” (1949), ele escreve:

O Simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo, protege os seus dons. O alcance a envergadura de todas as coisas maduras, que demoram em torno do Caminho, é que instauram mundo. Como diz Eckhardt, o velho mestre de vida e leitura: no não dito de sua linguagem é que Deus é Deus59.

O homem de hoje não está maduro para o simples. Encontra-se dissipado na

multiplicidade, emaranhado na complexidade. Ele não tem ouvidos para o silêncio do

sentido, apenas para o ruído das máquinas, que ele confunde com a voz de Deus. “E

assim – continuamos citando Heidegger – o homem dissipa e erra sem caminho. Para o

dissipado o Simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados

pela náusea só acham monotonia à sua volta. O Simples se retirou. Sua força silenciosa

sucumbiu”60.

O Simples é o dom de uma conquista. Pensador é o homem que conhece o

Simples como uma conquista própria de sua propriedade. É alguém a quem foi dada a

palavra furtiva do Ser, que ressoa no meio-silêncio. A dádiva do Simples, isto é, do Um,

da plenitude da deidade, é chamada por Eckhart de “palavra secreta”. São suas as

seguintes palavras:

Diz o homem sábio: “No meio da noite, quando todas as coisas estavam num silêncio e caladas, então foi-me dita uma palavra secreta, isso veio de modo furtivo, como que de um ladrão”. Como ele a chamou de palavra, visto estar oculta? A natureza da palavra é revelar o que está oculto. Abriu-se e brilhou diante de mim mostrando ser algo revelador. E foi-me anunciado Deus. Por isso chama-se “uma palavra”. Mas: era-me oculto o que era. Isso foi a sua chegada furtiva, num sussurro e num silêncio, para que pudesse se revelar. Vede, é

59 Revista Vozes, 1977, p. 47. 60 Idem, ibidem.

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necessário e deve-se persegui-la porque está escondida. Brilhava e estava escondida61.

Como um ladrão, na calada da noite, vem esta palavra. Os que vigiam, os

“pastores do ser”, ou então os “sábios do oriente”, os pensadores do outro começo, que

caminham seguindo uma estrela, na espera do inesperado, são visitados por esta

palavra. Ela vem como um ladrão. É a “coisa mesma”. Eckhart cita um mestre pagão,

que diz a outro mestre: “Percebo algo em mim, que brilha anterior ao meu intelecto.

Sinto muito bem que é algo. Mas não posso compreender o que é. Pois parece-me

apenas que, se pudesse apreendê-lo, conheceria toda a verdade”62. A propósito do

caráter furtivo do advento desta palavra, Eckhart diz: “Esconde-se e no entanto se

mostra. Vem de modo furtivo, parecendo querer tomar e roubar todas as coisas da alma.

Mas esse fato de mostrar-se e revelar-se como algo, com isso quer cativar a alma e atraí-

la para si e roubá-la e retirá-la de si mesma”63. Entretanto, no roubo ou arroubo desta

palavra furtiva a alma, retirada de si mesma, é colocada em Deus, e passa a receber de

Deus a sua própria deidade. Expropriada de si mesma, a alma é apropriada por Deus e,

ao mesmo tempo, Deus e sua deidade se torna próprio da alma. É o Er-eignis, o

acontecer do evento-apropriador, no pensamento de Eckhart. Com ele, é dado um saber

jovial ou uma jovialidade sábia. Heidegger anota:

No ar do Caminho do Campo (...) nasce e se cria uma jovialidade sábia, cujo semblante muitas vezes aparece carregado. Este saber jovial é a “serenidade” (Gelassenheit) (...). A jovialidade sábia é uma abertura para o eterno. Sua porta gira nos gonzos que um hábil ferreiro forjou, um dia, com os enigmas da existência64.

A coisa mesma, a causa, que provoca o pensamento a pensar com propriedade,

isto é, com simplicidade, no medium silêncio, não é nenhuma coisa, é o Nada, o

retraimento, o abismo do mistério do Ser enquanto Ser. O pensar do sentido do ser, de

seu retraimento, de seu abismo, tem dois conceitos fundamentais. Ambos dizem, em

perspectivas diversas, o mesmo: Abgeschiedenheit (Desprendimento) e Gelassenheit

(Serenidade). A primeira nomeia a “coisa mesma” na experiência de pensamento de

Eckhart. A segunda evoca a “coisa mesma” na experiência de pensamento de Heidegger.

61 Vol. II, p. 197. 62 Idem. 63 Idem, p. 198. 64 Idem, ibidem.

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Tentemos, por fim, percorrer os caminhos abertos por estes dois conceitos

fundamentais, ou seja, por estes dois conceitos do fundamento-abismo do ser,

enquanto Nada.

“Desprendimento”: com esta palavra queremos evocar a “coisa mesma” do

pensamento, o ser, que, no dizer do Eckhart, é “algo em mim, que brilha anterior ao

meu intelecto”, quiçá, no silêncio, na caligem, na quietude que reina no e como o “fundo

da alma”. No alemão medieval falado por Eckhart (Mittelhochdeutsch), a palavra é

“abegescheidenheit”, no alemão moderno é “Abgeschiedenheit”. O sufixo “-heit”

corresponde, aproximadamente, ao nosso “-dade”. Designa vigência e vigor de ser, ser

como vigência e regência de uma presença. O sufixo se acrescenta a “Abgeschieden-”.

Por sua vez, ali nós temos o prefixo “ab” e o verbo “scheiden”. “Ab” assinala certo

retraimento. Diz o distanciamento do que se retrai, do que se retira, do que se vela e se

encobre. Assim, “Abschied” significa despedida. O movimento de quem se despede é o

de ir se retirando. Quem se retira, na despedida, some no horizonte, se vela e se encobre

em sua invisibilidade. Assim, na língua alemã, o morto é chamado “der Abgeschiedene”:

o desprendido. A morte é, com efeito, a despedida do ente, e o desprendimento para o

ser. É a testemunha que evoca a diferença e a abissalidade do ser, o Nada. A segunda

parte da palavra “Abgeschiedenheit”, é dada pelo particípio passado de “scheiden”, que

significa separar, dividir, partir, isto é, separar cortando, sulcar. O particípio passado diz

o que foi e está separado. É o “transcendente puro e simples”. No entanto, é preciso

entender bem este transcendente e sua transcendentalidade. É que não se trata de um

ente que está além do mundo. Não se trata de nenhum ente. Trata-se, antes, do não

ente, isto é, do Ser como Ser, do Ser como não-outro, como Nada, como Identidade,

como o Simples, o Um. Para socorrer a fragilidade de nosso intelecto, tão indisposta a

pensar o que lhe é mais natural, o mistério do ser, vamos chamar em socorro a nossa

imaginação:

Imaginemos a “transcendentalidade” do retraimento da Abgeschiedenheit do ser, não “metafisicamente”, para além, por cima, para mais alto, superando o Ente Supremo (Deus), mas a modo de sombra e silêncio do fundo a “abraçar”, envolver, impregnar o todo da criação, inclusive o Deus, o ipsum esse, discreta e respeitosamente penetrando até os recantos mais secretos desse todo, qual tênue vibração do berço que num balanço suave e imperceptível segura, conserva, embala e nina a criação no seu todo e em suas partes.

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Imaginemos esse ser no seu nada como a terra, rodeada do imenso mar, insondável e inesgotável, como a superfície virada para nós e o seu verso. Talvez então possamos imaginar também que o ser da Abgeschiedenheit é tão outro, tão diferente dela no seu retraimento que nem sequer podemos dizer que ela é condição de possibilidade de o ente ser, inclusive o ser do Ente Supremo, inclusive a entidade e nadidade da própria deidade”65.

A “Abgeschiedenheit” – o desprendimento –, como sentido do ser, vige como

abissal retraimento, como o silêncio de fundo de todas as coisas, como o humilde e

recatado pudor do mistério originário. É a partir desse silêncio, que se percute e

repercute a Palavra, o Verbo, do Um. É a partir do abismo do retraimento que o ser

emerge como fontal e originária superabundância da doação da liberdade criativa, que

deixa e faz ser todas as coisas, na sua diferença, na identidade consigo e com todo o

universo. “Abgeschiedenheit” – desprendimento – é a proximidade calma de um vigor

que rege sem se impor, que se doa, retirando-se e retraindo-se para dentro do pudor de

seu mistério.

A calma e a quietude deste vigor do desprendimento, assim entendido,

ontologicamente, chama-se serenidade. A palavra em alemão é Gelassenheit. Ela é

formada pelo prefixo “ge” (recolhimento, reunião), pelo radical “lassen” (deixar) e pelo

sufixo “heit” (vigência, vigor de ser). Diz, portanto, a identidade, a unidade recolhida e

acolhedora do mistério de ser, que deixa-ser, com propriedade, todas as coisas, ou

melhor, todas as diferenciações e todas as diferenças. O deixar, aqui, portanto, precisa

ser tomado como um deixar-ser.

O verbo “deixar” aqui não significa uma omissão e negligência. Quer dizer antes

a essência de todo o cuidado enquanto solicitude. O “deixar” tem, então, aqui, o sentido

de uma ação con-criativa, ou seja, criativa com a própria criatividade da vida, que age,

em todo o devir. O deixar-ser deixa ser o ser e o não ser de tudo o que está sendo e

devindo, e isso, numa unidade. O deixar-ser é o cuidado do mistério do ser pela unidade

de ser e ente, pela unidade de identidade e diferença. É pelo deixar-ser (sei-lassen), que

se dá no “fundo da alma” humana, que acontece a abertura, a eclosão, o ponto de salto

65 Harada, Hermógenes. Imaginando a definição de non-aliud. In: Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba-Pr, 2007: Faculdade de Filosofia São Boaventura / Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval , vol. 4, n. 1, jan. / jun. 2007, p. 195.

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do mundo, do universo enquanto uni-verso. Ora, o universo só acontece como universo

na abertura da alma humana, que, como dizia Aristóteles, é, de certo modo, todas as

coisas. Uni-verso significa: vertido, virado para o Um. O universo acontece como

universo na alma desprendida, livre, solta, pura, límpida, e, ao mesmo tempo, recolhida,

unificada em si, por ser unificada no Um, com o Um, como o Um. No fundo da alma

humana cintila, isto é, abre-se e fecha-se, doa-se e se retrai, brilha e se esconde, o

mistério do ser como Gelassenheit, como serenidade.

O deixar-ser deixa e faz ser, no fundo da alma do homem, a abertura da “aberta”,

da “clareira” do ser, para tudo o que está sendo e vindo a ser. A clareira do ser é a

paisagem de todas as paisagens. É o “país das maravilhas”. Ela se abre desde o “fundo

da alma” do homem. É a abertura que acolhe e recolhe todo o manifestar. É o próprio

“medium”, o elemento da manifestabilidade do que quer que seja. Ela é a liberdade da

verdade, ou seja, a liberdade que franqueia ao que se manifesta a possibilidade de se

manifestar na sua claridade, seja luz, seja sombra. Na clareira, o Ser (Sein) cria um aí (Da)

para a manifestabilidade de todo o ente. Na clareira, o Ser se clareia para o homem, mas

como o mistério, que, escondendo-se, possibilita o aparecimento de tudo o que se torna

vigente, tanto o presente quanto o ausente, tanto o que é, como o que foi e será.

Concedendo o perdurar na vigência da presença a coisas e homens, abrigando, isto é,

acolhendo e recolhendo tudo e todos no seu bojo, a aberta do ser, enquanto paisagem

de todas as paisagens, deixa insinuar o semblante da serenidade (Ge-lassen-heit).

O deixar-ser é a dádiva da serenidade. Mas, ao dar esta dádiva do deixar-ser, que

abre e inaugura a abertura do ser enquanto manifestabilidade do ser do ente, o mistério

de ser se recolhe no seu escondimento. No dizer de Eckhart, acontece como uma

“palavra secreta”, “oculta”, “furtiva”. O que nela se anuncia se furta a mostrar-se como

ente, como um “isto ou aquilo”.

Para Eckhart, como para Heidegger, pensar é agradecer. É a correspondência ao

mistério do ser como gratidão. O que, porém, constitui a gratidão enquanto tal?

Resposta: um nada. Trata-se, porém, naturalmente, não de um nada privativo, nem de

um nada negativo. Trata-se, antes, de um nada receptivo e, ademais, concriativo, uma

vez que, ao receber, concebe, e torna-se fecundo, isto é, gera, deixa e faz nascer. Pensar

é receber e agradecer a dádiva de ser, quer dizer, é deixar ser o ser e o nada de tudo. A

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vibração da gratidão, a ressonância de seu nada de pura recepção, é o canto do louvor.

Num dos Sonetos a Orfeu, Rilke diz que cantar não é encantar. “Na verdade, cantar é

um outro sopro. Um sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um vento”66. E, num dos seus

“Sermões Alemães”, o 19, Eckhart pergunta: “o que louva a Deus? ”. E responde: “A

igualdade”. E explica: “Assim, pois, louva a Deus tudo quanto na alma é igual a Deus; o

que de algum modo é desigual a Deus não louva a Deus; isso é assim como um quadro

que louva seu mestre, pois o mestre imprimiu no quadro toda a arte resguardada em

seu coração, fazendo-o totalmente a ele tão igual. Essa igualdade do quadro louva sem

palavra o seu mestre. O que se pode louvar com palavras ou rezar com os lábios é de

pouco valor”67. Assim, para Eckhart, pensar é agradecer e louvar, mas louvar é ser,

tornar-se igual a Deus, ou melhor, mais do que isso, é ser, tornar-se idêntico com Deus,

um com Deus. Deus é Um. Nada é mais alto do que a unidade de Deus. Tornar-se um no

Um e com o Um: eis o impulso e o anseio mais radical do pensamento em Eckhart. É o

impulso e o anseio do amor. A obra do amor é a unidade com o amado. Deus é amor. É

unidade e identidade dos diferentes. Unidade e identidade que não anula, antes deixa

ser a diferença. No amor, a unidade não nega a diversidade, a identidade não destrói a

diferença. No amor, a identidade deixa e faz ser a diferença, a unidade recolhe a

diversidade sem destruí-la, antes, promovendo-a. Eckhart usa a palavra “Minne” para

amor. Originariamente, Minne designava a ternura e o vigor do amor entranhado, terno,

que se desdobra em diligente cuidado e antecipação solícita, em bem-querer atencioso,

que se empenha por poupar e proteger, defender e salvar. No contexto do

relacionamento entre amantes, Minne trinken – beber o amor – era, numa ceia, co-

memorar a dádiva do amor, era re-cordar a gratuidade e a graciosidade do encontro

amoroso, da afeição e da intimidade que ele fazia surgir. Co-memorar a dádiva é recebê-

la, sempre de novo, numa gratidão que a faz frutificar. Em Eckhart, a palavra “Minne”

evoca e re-corda o mais antigo de tudo quanto há: o desprendimento como dádiva do

amor primeiro, isto é, primordial. Mas, o que é o amor? “Got ist die minne, und der in

der minne wonet, der wonet in gote und got in im”. O amor, “minne”, é Deus. Deus é

amor e quem mora no amor, mora em Deus e Deus mora nele. “Minne” é o

desprendimento como fonte que jorra cordial na super-abundância e super-fluência da

66 P. 24-25. 67 Eckhart, M. Sermões Alemães, vol. I, p. 135.

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doação de toda e qualquer possibilidade de ser. É a soltura e a leveza do

desprendimento que, encobrindo-se a si mesmo no recato de sua humildade, deixa

brotar e jorrar de si toda e qualquer possibilidade de ser. Esse modo de ser do

desprendimento como amor, um discípulo tardio de Eckhart, no século XVII, o médico e

poeta Angelus Silesius, cantou como o florescer por florescer da Rosa. Na

impossibilidade de dizer melhor o que se tentou trazer à fala, vamos terminar esta

meditação com este célebre verso de “O peregrino querúbico”:

“A rosa é sem por quê,

floresce por florescer,

não olha p’ra seu buquê,

nem pergunta se alguém a vê”68.

68 Silesius, Ângelus. Il Pellegrino Cherubico. Torino: Ed. Paoline, 1989, p. 156.

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A VIA DO DESPRENDIMENTO NO PENSAMENTO DE MESTRE ECKHART

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Ao frei Harada, por ter-se tornado, definitivamente, um desprendido.

(+ 21 de maio de 2009).

I. Do desprendimento como sentido do ser

Com o nome “desprendimento” nós tentamos traduzir uma palavra primordial no

pensamento de Eckhart. Em alemão a palavra é “Abgeschiedenheit”. O sufixo “-heit”

corresponde, aproximadamente, ao nosso “-dade”. Designa ser, vigor de ser, ser como

vigência e regência de uma presença. O sufixo se acrescenta a “Abgeschieden-”. Por sua

vez, ali nós temos o prefixo “ab” e o verbo “scheiden”. “Ab” assinala certo retraimento.

Diz o distanciamento do que se retrai, do que se retira, do que se vela e se encobre. Assim,

“Abschied” significa despedida. O movimento de quem se despede é o de ir se retirando.

Quem se retira, na despedida, some no horizonte, se vela e se encobre em sua

invisibilidade. Assim, na língua alemã, o morto é chamado “der Abgeschiedene”: o

desprendido. Nessa fala, a separação da morte é compreendida como o acontecer do

desprendimento. O luto não é perda. É a maturação do desprendimento. Tanto o morto

quanto os enlutados são colhidos na retração e no retraimento do desprendimento. O

morto é quem se recolheu no retraimento, tendo sido colhido pela quietude da noite do

mistério. Ele é uma palavra dita, que retorna para o seu silêncio.

A segunda parte da palavra “Abgeschiedenheit”, é dada pelo particípio passado de

“scheiden”, que significa separar, dividir, partir, isto é, separar cortando, sulcar. O

particípio passado diz o que foi e está separado, dividido, partido. O substantivo

“Scheide” é bainha, duas tábuas de madeira ou de couro que guarda a espada de dois

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gumes69. “Scheide” é também corte, cisão, fenda. E, daí: raia, limite. Corte, por sua vez,

evoca dor.

“Mas o que é dor? A dor dilacera. A dor é o rasgo do

dilaceramento. A dor não dilacera, porém, espalhando

pedaços por todos os lados. A dor dilacera, corta e

diferencia, só que ao fazer isso arrasta tudo para si, reunindo

tudo em si. Enquanto corte que reúne, o dilacerar da dor é

também um arrancar para si que, como riscas ou rasgaduras,

traça e articula o que no corte se separa. A dor é a junta

articuladora no dilaceramento que corta e reúne. Dor é a

articulação do rasgo do dilaceramento. Dor é soleira. Ela dá

suporte ao entre, ao meio de dois que nela se separam. A

dor articula e traça o rasgo da di-ferença. A dor é a própria

di-ferença”70.

A dor é soleira: passagem onde o fora se torna dentro e o dentro se torna fora. A

dor atravessa. Dor é travessia. O atravessar da dor corta e separa. Nesse cortar e separar,

porém, une e recolhe. O estranhamento da dor traz consigo o instaurar da intimidade. Dor

é viger da diferença71. Na dor, os diferentes se reportam um ao outro. Na dor, os diferentes

se tornam suporte um para o outro. Dor é estranhamento, que cria intimidade72.

O cristianismo medieval conheceu esse mistério da dor que é di-ferença que separa

e une, ao mesmo tempo, na experiência da Cruz. No Crucificado, o desprendido por

excelência, se dá esse singular paradoxo da dor, que separa e une, estranha e cria

intimidade:

“O Crucificado – unificação do que não se deixa unificar:

humildade e sublimidade, inacessibilidade do que se retrai

do horizonte do mundo e sofrimento onde a dor é plena, ser-

69 Seguindo a imagem da bainha, “Scheide” significa também tanto vagem como vagina. 70 Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista-SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 21. 71 “Diferença”, em grego, é − diaforá: indica o movimento de portar, carregar, levar (verbo

− fero) num movimento de atravessamento, numa travessia ( − diá). Em alemão, “diferença” se diz “Unter-schied”. Nessa acepção da palavra alemã, diferença é a separação que une, isto é, que faz se reportarem mutuamente aqueles que ela separa e que os faz se recolherem na intimidade do “entre” (“unter”, em alemão, é “inter” em latim: o entre, a intimidade dos que se pertencem). 72 A palavra grega para “dor” é − algós. Heidegger suspeita que a palavra algós seja aparentada

com − alégo, que significa ter cuidado com, preocupar-se com, cuidar, respeitar. Esse verbo, por

sua vez, seria a intensificação de − légo, que significa o íntimo recolhimento. Dor é recolhimento no mais íntimo da diferença. Assim como alegria é expansão. Recolhimento e expansão são o movimento do

- lógos. Correspondem, grosso modo, à - léthe – como velamento, ocultação que encobre

por e para poder cuidar, e - alétheia – como desvelamento, como des-ocultação que libera para o nascer, crescer e consumar. Cfr. Heidegger, Martin. Wegmarken. Frankfurt a.M., Vittorio Klostermann 1996, p. 404.

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voltado-para-si e irradiação. No ponto em que o sofrimento

se torna máximo, unificam-se o Divino e o Humano, surge

algo de novo. A cruz se torna elo.”73

A cruz se torna elo. Revela unidade. Diz a identidade da di-ferença e a di-ferença

da identidade. É o ponto de salto da nova criação, do novo Céu e da nova Terra. É o vir à

luz da unidade primordial entre o Divino e o Humano. A cruz é soleira. É passagem.

Interstício. É porta. É viragem. É centro. É a fenda, onde tudo se entrecruza. Percussão

que repercute em todas as coisas, mostrando que tudo é Um.

A co-pertença dos diferentes que se unem na dor da Cruz e são gerados a partir do

vigor da misericórdia, aparece como com-paixão na figura da Pietà.

“No sofrimento, Deus e Homem não somente se

aproximam, mas se unificam. Sofrer e con-sofrer, dor e co-

miseração formam um círculo, no qual a Cruz é inserida. A

Pietà é um tipo de imagem que se cristalizou na longa

história da experiência cristã da Cruz; ela mostra a co-

pertença de Deus e Homem. Deus e Homem são em verdade

diferentes, mas o divino e o humano são Um” 74.

Na com-paixão de Maria aparece a dor como recolhimento que une os separados

na ternura e vigor da misericórdia, que se doa e se retrai como delicadeza e vigor do amor

que con-sofre e con-sola:

“Jesus Cristo Crucificado, na crueza sagrenta da morte da

Cruz, seu abandono, sua solidão, sua absoluta pobreza da

exinanição; junto a Ele, a presença, colada rosto a rosto,

corpo a corpo, de Maria, Virgem-Mãe, na incondicional

disposição de ser com o seu Filho na pronta e absoluta

acolhida da Vontade do Pai... Nessa paixão do amor de

Maria, Virgem e Mãe, na ternura e vigor da imaculada

limpidez virgem da decisão de doação total, da vitalidade

inesgotável da dedicação materna há uma vigência quase

imperceptível da presença de Maria junto de Jesus Cristo.

Vigência de uma paixão, cuja doação possui a ternura da

benevolência, a delicadeza, o pudor e a intimidade de mãe

e esposa que, em se dando toda e inteira, acolhe com

gratidão a graça de poder amar e servir ao seu amado;

vigência de uma paixão, de cujo vigor diz o Cântico dos

73 Rombach, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menscheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 145. 74 Rombach, Heinrich. Op. cit., p. 147.

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Cânticos: ‘o amor é forte como a morte, e a paixão decisiva

e radical como o abismo: suas centelhas são centelhas

incendiárias, labaredas divinas. Águas caudalosas não

poderão apagar o amor, nem os rios poderão afogá-lo’(Ct

8,6s)”75.

É do abismo da identidade da cruz que emerge a diferença nítida de toda a

concreção de ser. Do abismo da Cruz emerge o sentido de ser que se deixa nomear, isto

é, evocar, na palavra “Abgeschiedenheit”, desprendimento. Esse sentido de ser é o

retraimento que se recolhe como uma ausência-presença a modo de serenidade suave,

humilde, discreta, modesta, cheia do pudor e do recato do mistério, simples e pobre. Esse

retraimento é o fundo abissal, que deixa e faz tudo ser o que é. É do abismo dessa

identidade que emerge e brota toda a diferença, que articula e compõe o uni-verso.

“Abgeschiedenheit” é o retraimento que deixa e faz ser a unicidade de cada sendo na sua

diferença, isto é, na singularidade de sua identidade. É o suporte que recolhe e acolhe toda

e qualquer diferença como a unidade de tudo em tudo.

“Imaginemos a “transcendentalidade” do retraimento da

Abgeschiedenheit do ser, não “metafisicamente”, para

além, por cima, para mais alto, superando o Ente Supremo

(Deus), mas a modo de sombra e silêncio do fundo a

“abraçar”, envolver, impregnar o todo da criação, inclusive

o Deus, o ipsum esse, discreta e respeitosamente penetrando

até os recantos mais secretos desse todo, qual tênue

vibração do berço que num balanço suave e imperceptível

segura, conserva, embala e nina a criação no seu todo e em

suas partes. Imaginemos esse ser no seu nada como a terra,

rodeada do imenso mar, insondável e inesgotável, como a

superfície virada para nós e o seu verso. Talvez então

possamos imaginar também que o ser da Abgeschiedenheit

é tão outro, tão diferente dela no seu retraimento que nem

sequer podemos dizer que ela é condição de possibilidade

de o ente ser, inclusive o ser do Ente Supremo, inclusive a

entidade e nadidade da própria deidade”76.

A “Abgeschiedenheit” – o desprendimento –, como sentido do ser, vige como

abissal retraimento, como o silêncio de fundo de todas as coisas, como o humilde e

recatado pudor do mistério originário. É a partir desse silêncio, que se percute e repercute

75 H. Harada, Em comentando I Fioretti. – reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista: EDUSF; Curitiba: Faculdade São Boaventura, 2003, p. 57-58. 76 Harada, Hermógenes. Imaginando a definição de non-aliud. In: Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba-Pr, 2007: Faculdade de Filosofia São Boaventura / Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval , vol. 4, n. 1, jan. / jun. 2007, p. 195.

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a linguagem do Um. É a partir do abismo do retraimento que o ser emerge como fontal e

originária superabundância da doação da liberdade criativa, que deixa e faz ser todas as

coisas, na sua diferença, na identidade consigo e com todo o universo.

“Abgeschiedenheit” – desprendimento – é a proximidade calma de um vigor que rege

sem se impor, que se doa, retirando-se e retraindo-se para dentro do pudor de seu

mistério.

II. Do desprendimento como Amor (Minne)

A plena vigência do desprendimento como sentido do ser chama-se, em Eckhart,

Minne.

Eckhart não recorre à palavra usual para amor, Liebe, mas à palavra que se diz no

contexto do amor cavalheiresco medieval, Minne. Originariamente, Minne designava a

ternura e o vigor do amor misericordioso, que se desdobra em diligente cuidado e

antecipação solícita, em bem-querer atencioso, que se empenha por poupar e proteger,

defender e salvar. Minne, depois, passou a designar a intimidade do amor de

enamoramento no encontro entre um homem e uma mulher e na doação mútua e inteira,

a modo do amor esponsal. A partir do século XII e XIII passou a nomear o protótipo do

amor-dedicação de um cavaleiro para com uma dama, o motivo de suas lutas, de suas

façanhas e de suas gestas77.

A palavra “Minne” traz consigo a raiz indogermânica “men”. Essa raiz atua, por

exemplo, na formação da palavra latina “mens, mentis” (mente) e também na formação

do verbo grego - mimnesko – que significa recordar. Daí vem a palavra

− mnemosyne – que significa recordação, memória. Como nome próprio,

77 Já no fim do século XII aparecem, na coorte de Aquitânia, poemas destinados a cavaleiros, que desenvolvem uma nova concepção da relação homem-mulher. A fonte de inspiração é tirada no De amicia, de Cícero. O amor cortês (amor curialis) se distingue do amor conjugal. Dá-se no relacionamento de um cavaleiro com uma dama, que não é sua esposa. Era considerado um exercício de nobreza, pois implicava um relacionamento desinteressado, que não estava em vista de uma sociedade conjugal e familiar, nem de descendência. As regras de devotamento e devoção do vassalo para com o seu senhor se transferem para a dama ou senhora. A cortesia desse amor se expressa no serviço e na homenagem que o cavaleiro presta à dama. As façanhas ou gestas de suas lutas eram modos de louvar a dignidade e a beleza da dama. A virtude do cavaleiro no amor de sua dama devia ser comprovada por sua bravura, por sua valentia, pela sua generosidade, pelo seu respeito. A ternura era considera como um dom livre e gracioso do amor. Cfr. Vauchez, André. Dizionario Enciclopédico del Medievo. Vol. I. Roma: Città Nuova, p. 74 (verbete “amore”, de autoria de Olivier Boulnois).

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Mnemosyne é o nome da mãe das musas. Trata-se, aqui, de uma memória criativa e não

de uma memória meramente reprodutiva. Memória criativa é a atenção e a disponibilidade

da mente para o instante de salto da inspiração e da criação. Essa memória originária é

pensamento: espera do inesperado da revelação, do surgimento e retraimento, do ser. Ela

é presença de espírito que deixa ser o irromper de uma nova presença e vigência, como

possibilidade de ser, no instante claro da criação. É acolhimento agraciado e agradecido

pelo inesperado irromper do dom de uma nova possibilidade de ser, que vem a tornar-se

obra. É cuidado em re-cordar a dádiva da criação, é empenho e solicitude em ter sempre

presente a doação da dádiva na sua graciosidade e gratuidade. Na linguagem medieval,

Minne trinken – beber o amor - era co-memorar a dádiva do amor, era re-cordar a

gratuidade e a graciosidade do encontro amoroso, da afeição e da intimidade que ele fazia

surgir. Co-memorar a dádiva é recebê-la, sempre de novo, numa gratidão que a faz

frutificar.

Em Eckhart, a palavra “Minne” evoca e re-corda o mais antigo de tudo quanto há:

o desprendimento como dádiva do amor primeiro, isto é, primordial. “Minne” é o

desprendimento como fonte que jorra cordial na super-abundância e super-fluência da

doação de toda e qualquer possibilidade de ser. É a soltura e a leveza do desprendimento

que, encobrindo-se a si mesmo no recato de sua humildade, deixa brotar e jorrar de si toda

e qualquer possibilidade de ser. Esse modo de ser do desprendimento como amor, um

discípulo tardio de Eckhart, no século XVII, cantou como o florescer por florescer da

Rosa:

“A rosa é sem por quê,

floresce por florescer,

não olha p’ra seu buquê,

nem pergunta se alguém a vê”78.

O sentido do ser, que é o desprendimento como amor, se articula triplamente em

imensidão, profundidade e originariedade.

A imensidão do amor é abertura sem fim, largueza de uma generosidade que, de

antemão, tudo acolhe e recolhe cordialmente. O amor é a abertura ilimitada da doação e

da recepção. É ânimo que se expande na alegria do doar-se e se concentra no

78 Silesius, Ângelus. Il Pellegrino Cherubico. Torino: Ed. Paoline, 1989, p. 156.

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contentamento do receber. A grandeza do amor está na simplicidade com que ele se expõe

no doar e se dispõe no receber.

A profundidade do amor é abissal. Sem fundo. O amor não tem “porquê”. Ele

brota e jorra do fundo de seu retraimento na gratuidade de sua doação. Flui, reflui e super-

flui em si mesmo. O amor se basta na ab-soluta plenitude de si.

A originariedade do amor está na sua liberdade criativa, que faz saltar de si toda a

possibilidade de ser. O amor é o in-stante do ponto de salto de tudo quanto há. Da

originariedade do amor é que tudo recebe sua nascividade e sua jovialidade. Dela, tudo

recebe o frescor de sua novidade e a unicidade de sua singularidade.

III. O desprendimento como Nada e como Um

O desprendimento, que é amor, vive de seu nada. A niilidade do nada do

desprendimento, porém, não é nenhuma privação, nem é qualquer negatividade ôntica. A

niilidade do nada do desprendimento, que é amor, consiste na liberdade de sua doação,

cujo fundo é o vigor de sua ab-negação, de sua renúncia: o ab- da “Abgeschiedenheit”, o

seu retraimento. A negação da ab-negação não é mera negatividade. É, antes, o não

absolutamente positivo da renúncia, que se retrai e se recolhe como a possibilidade do

sim de toda a doação e recepção do amor.

O desprendimento vive a superabundância do amor na livre renúncia de si. De

fato, o desprendimento já sempre abdicou de si, para deixar e fazer jorrar de si o amor na

doação e na recepção. Na absoluta positividade da doação e recepção, o amor já sempre

renunciou a si mesmo, ou seja, já sempre re-anunciou o retraimento como abdicação de

si. A renúncia anuncia o que se vela e se oculta. Ela assinala o retraimento. A vigência e

regência do desprendimento como amor se dá na força de tração de seu retraimento:

“A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável

da simplicidade” 79.

A renúncia do amor se recolhe na sua simplicidade. Simples é o amor, no sentido

de não querer aparecer: não olha para si mesmo, nem pergunta se alguém o vê. Simples é

79 Heidegger, O Caminho do Campo (de 1949), tradução do Carneiro Leão, em Revista Vozes, n. 4, 1977, p. 328.

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o amor, no sentido de ser humilde, no sentido de não querer ser alguma coisa nem coisa

alguma, no sentido de se contentar em ser nada, e, no recato e modéstia desse nada, deixar

e fazer ser tudo. Simples é o amor, no sentido de ser silêncio, o medium a partir do qual

tudo percute e repercute no ser.

O desprendimento é a identidade simples de onde emerge toda e qualquer

diferença. No nada de seu retraimento, ele é o não-outro:

“O ente, realçado na sua identidade diferencial, do fundo

pelo corte (...) somente salta no instante do corte. E então

nesse instante, nessa fenda, no sulco é insinuado o a priori

de todas as aprioridades e aposterioridades como vigência

do empuxo do retraimento do ser, a Abgeschiedenheit. É

identidade anterior a toda anterioridade e posterioridade do

destacar-se dos entes nas suas diferenças. É identidade

anterior a si mesma, ao seu aparecer e não aparecer; é como

silêncio de fundo de todas as coisas, que jamais é outro a si

mesmo, pois toda referência ao outro, a si e de si mesmo, é

liquidada no empuxo do retraimento do desprendimento ab-

soluto do ser das entidades de toda e qualquer

universalidade do ser do ente no seu todo” 80.

O Um é a identidade simples do desprendimento que se retrai no nada de sua

renúncia. É a partir dessa identidade simples que se abre a possibilidade de ser de toda e

qualquer identidade diferencial. A unicidade do um é ab-soluta, isto é, é solta e, ao mesmo

tempo, recolhida nela mesma. O Um é sempre o Mesmo para si mesmo.

IV. O desprendimento como a deidade do Deus uno e trino

O desprendimento é a plenitude simplesmente. A plenitude de ser como Nada e

como Um. O desprendimento é a plenitude de ser como o nada da renúncia do amor. É

plenitude de ser como o absoluto contentamento de ser na doação e na recepção do amor.

O desprendimento nomeia a deidade de Deus, isto é, o próprio de Deus na plenitude de

seu ser. Deidade é Deus vigendo no seu “a se” e “in se”.

A deidade de Deus vigora na unidade de sua essência, que se desdobra na trindade

de sua vida:

80 Harada, Hermógenes. Imaginando a definição de non-aliud. In: Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba-Pr, 2007: Faculdade de Filosofia São Boaventura / Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval , vol. 4, n. 1, jan. / jun. 2007, p. 196.

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“O três é o número exordial, o número numerador de toda

relação, a fonte de qualquer numeração. No três, temos,

indissolúvel e consubstancialmente conjugados, o um, o

dois, e a união do um com o dois. Três, nos diz Mestre

Eckhart (LW IV, Sermo 29), não é a soma de um mais dois.

O três é a integração viva, vital e circularmente simultânea

da unidade de um + um + um. Unidade esta, que não sofre,

mas viceja e se alegra com e na Trindade, pela difusão da

bondade de sua união. É a fecundidade ontológica do bem:

Bonum est diffusivum sui: o bem é difusivo de si mesmo.

Não é o bem que é trino. É a Trindade que é o bem. Assim

como se dá circulação da unidade na Trindade, assim

também se dá circulação da Trindade na unidade. O Bem

da unidade circula eterna e incriada, para dentro, na

Trindade, e se comunica temporal e livre, para fora, na

criação. É a unidade da Trindade que nos cria. Eckhart nos

diz, com toda a experiência cristã: ad extra ex tribus: toda

atividade é criadora, vem e vive do três” 81.

Esse est Deus – ser é Deus. O desprendimento, enquanto, plenitude solta e

absoluta do ser, é amor – amor que é Deus. A dinâmica do ser de Deus em Deus, sua vida,

se articula na riqueza superabundante do amor que se faz pura e fontal doação (Pai), pura

e total recepção (Filho) e pura e plena união de quem doa e de quem recebe (Espírito),

pois quem doa também recebe a graça de poder dar, e quem recebe também doa a

disponibilidade de receber e, nessa reciprocidade de dar e receber, o amante se torna

amado e o amado se torna amante, e amante e amado são um só na força unitiva do amor.

A vida de Deus em Deus se dá como a absoluta plenitude do ser, na vigência da

inesgotável e superabundante gratuidade no dar e no receber do amor. A identidade da

unidade divina se desdobra e se articula numa dinâmica difusiva de doação e de

comunicação de si ao outro, que nós chamamos de bem. A unidade vive, isto é, viceja e

se alegra toda na Trindade. A Trindade vive, isto é, se recolhe e se aquieta na abissal

intimidade, que é a unidade dos diferentes. O Pai é o fundo abissal em que se assenta e

repousa essa vida da Trindade. O Pai é a liberdade geradora do desprendimento da

deidade. O Filho é a jovialidade do sim na recepção desprendida, isto é, agraciada e

agradecida, humilde e pobre, da doação e da comunicação da riqueza super-fluente do

Pai. O Filho é recepção, acolhida, concepção e recolhimento da verdade do amor do Pai:

é a jovialidade do intelecto. O espírito é a unidade do amor do Pai e do Filho. É o

81 Leão, Emmanuel Carneiro. A mística de Eckhart em Eckhart. In: Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba-Pr, 2007: Faculdade de Filosofia São Boaventura / Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval , vol. 4, n. 1, jan. / jun. 2007, p. 171.

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contentamento e a alegria da plenitude de ser como desprendimento. É irradiação desse

contentamento. É o sorriso de Deus, como viu e cantou Dante:

“O luce eterna, che sola in te sedi

Sola t’intendi, e da te intelletta

Ed intendente te ami ed arridi!

Ó luz eterna, que, só, repousas em ti

mesma

Só, te entendes, e por ti mesma entendida

E entendente, te amas e sorris!” 82.

Essa plenitude, porém, embora se baste a si mesma, não quer ficar só. Não é bom

que Deus esteja só... Isso vale tanto para a experiência cristã do divino “em si” (in se,

quoad se) quanto para a experiência cristã do divino “para nós” (quoad nos), tanto para a

intimidade da vida divina em si (ad intra), quanto para a revelação e comunicação dessa

mesma vida divina na criação e na encarnação (ad extra).

“No Comentário ao Êxodo, ele nos diz:

Viver é uma fervura (exsitio), um borbulhar incessante em

que o ser fermenta, se agita e transborda, derramando-se

sobre si mesmo, despejando-se em tudo que a vida é, antes

de viver. Por isso é que a vida da Trindade é a criação da

vida fora da Trindade.

Viver está em jorrar livremente a necessidade de ser o ser

que se é” 83.

V. O desprendimento como filiação e encarnação

O Um é o mistério do retraimento da Abgeschiedenheit – do desprendimento.

Tudo provém dele, mas ele mesmo a si mesmo se oculta, no pudor e humildade de sua

doação ilimitada, abissal, originariamente geradora, criativa, produtiva. Da identidade

simples do abismo da unidade do Um tudo é gerado, criado, produzido. Daí:

“Em toda diferença e diferenciação, vive, numa intensidade

infinita, a Deidade de Deus, na pluralidade, sem fim, de

todas as coisas. No Sermão 22, ele insiste: “Em sua suprema

82 Dante Alighieri, A Divina Comédia, Paraíso, canto XXXIII, n. 124-126. Elaborei, aqui, uma tradução própria. Cfr. Alighieri, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo-SP: Landmark, 2005, p. 886-887. 83 Leão, Emmanuel Carneiro. Op. cit., p. 181.

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pureza, a haste tenra e frágil retorna para a unidade do ser

de Deus, donde tudo provém”.

A unidade de todas as coisas tem sua raiz na deidade. A

unidade é como a deidade, mais fundamental do que o ser e

seus transcendentais. A divindade perfeita de Deus reside

na unidade. Se assim não fora, Deus não seria Deus.

Conclusão do Sermão: “Deus está todo inteiro em tudo, no

bem e no mal, no ser e no não-ser”.”84

A vida de Deus em Deus, na unidade de sua essência, se dá, antes de tudo, como

a geração do Filho pelo Pai. O acontecer da filiação do Filho se dá como a recepção da

doação amorosa do Pai, que, na soltura de seu desprendimento, lhe comunica a plenitude

infinita do ser. Gerar e ser gerado, doar e receber, Pai e Filho são momentos de uma

mesma liberdade de ser na plenitude do desprendimento do amor. O amor faz aparecer o

amante e o amado, o gerador e o gerado. Essa ação livre e solta em si mesma, ab-soluta,

do desprendimento do amor se dá como a dinâmica da vida de Deus em Deus. É o pulsar

eterno da vida do amor, que se retrai e se expande, que se recolhe e abre. Como um círculo

que se retrai para o centro e se expande desde o centro, num movimento que é,

simultaneamente, centripetal e centrifugal, velamento e encobrimento, por um lado,

desvelamento e desencobrimento por outro. Como as Rosáceas das catedrais góticas nos

fazem intuir.

A vida de Deus é transbordamento na superfluência e superfluidade (gratuidade)

do ser que se doa: Deus charitas est: Deus é amor (Minne). O amor fontal que é pura e

límpida doação no gerar é o Pai. O amor originário que é pura e límpida recepção no ser

gerado é o Filho. O olhar do Pai e do Filho, desde sempre, se encontram nesta dinâmica

do amor recíproco e, deste “encontro”, emana o “suspiro”, o “respiro”, o “sopro” desta

vitalidade amorosa, em que Pai e Filho pulsam (Espírito).

O próprio do Filho é a pura recepção:

“Uma tal recepção é ser na igualdade Dele com Ele: é o Um

na liberdade, na Gottesminne. Esse ser de corpo e alma a

absoluta, desprendida recepção da filiação é como

repercussão de um toque, é como cintilar de uma faísca, é o

in-stante, o ‘piscar’ de olhos na mira no encontro do Pai no

Filho e do Filho no Pai. Ser continuamente, sempre de novo

esse cintilar, é a existência cristã, não no sentido

confessional ou religioso, mas sim no sentido do ser

84 Leão, Emmanuel Carneiro. Op. cit., p. 181.

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desprendido no desprendimento da deidade. Nessa

existência ser e pensar, ser e querer, ser e amar, é o mesmo.

E essa mesmidade é algo como a pura e límpida

transparência da disposição grata e obediente da liberdade

de ser como Deus na recepção. Essa transparência da

recepção na filiação é o intelecto, o conhecimento, o co-

nascimento”85.

O ser-Filho encontra o seu próprio na pura recepção da super-fluente e

transbordante gratuidade da doação do ser, que jorra do Pai. Pura é esta recepção por ser

inteiramente desprendida (abgeschiedene) de si mesma, na renúncia de si. A renúncia não

tira, a renúncia dá a disposição de, sempre de novo, reenviar-se ao Pai: à fonte, à origem

da pura e absoluta doação. A renúncia reenvia o Filho ao Pai, como à sua fonte e origem,

do mesmo modo que faz o Pai doar-se puramente ao Filho. O amor (Minne), a vida de

Deus em Deus, é, portanto, Espírito de desprendimento (Abgeschiedenheit) no doar e no

receber. É pelo desprendimento do amor absoluto que o Pai está no Filho e o Filho no

Pai.

“Este é o mistério do amor, que ele une o que poderia ser

por si no seu ‘cada um’ e que, no entanto, não é e não pode

ser sem o outro” 86.

Dito de outro modo, a igualdade do Pai e do Filho é livre igualdade no amor e a

igualdade no amor se sustenta como identidade (co-pertença essencial) na diferença

(mantendo o próprio de cada um) e como diferença (unicidade pessoal) na identidade

(necessária comunhão de essência).

A recepção da filiação por parte do Filho “é como repercussão de um toque, é

como o cintilar de uma faísca”. Esta faísca ou centelha (scintilla) é o eidos da alma.

Cintilação

“é o abrir-se e fechar-se instantâneo da luz, sua

manifestação e ocultamento repentinos. O apoucado e

incontrolável dessa luz pode, na sua prontidão e

disponibilidade humanas, iluminar todo um âmbito ou

incendiar, como um raio que se abre e fecha num instante

[87]

85 Glossário aos Sermões Alemães, p. 346s. 86 Schelling, A essência da liberdade humana, p. 80 (a tradução aqui está modificada). 87 A Boa Nova (Evangelho) não consiste justamente no anúncio de que esta faísca do Amor do Filho, Jesus Crucificado, já incendiou todo o universo, isto é, toda a criação?

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(...)

Deus é luz, o intelecto e a alma humana, em seu fundo, à

imagem Dele, são uma centelha divina”88.

A alma vive de Deus, ou seja, é da deidade de Deus que ela haure o seu ser, a sua

essência, o seu vigor. A essência da alma está radicada em Deus, no seu seio, no seu bojo:

no Filho de Deus. Esse, o Filho de Deus, é a forma originária, o eidos, o arqué-tipo da

alma. Na vida de Deus em Deus, o Filho é o Lógos: intelecto/palavra. No Filho, isto é,

no Intelecto primordial, Deus pensa, ou seja, concebe, intui e gera todo o sendo. No Filho,

quer dizer, na Palavra primordial, Deus deixa e faz vir à luz tudo quanto foi, é ou será. A

criação é ressonância e repercussão da Palavra do Pai, que diz: fiat! Faça-se!89. No Filho,

entretanto, a primeira ressonância e repercussão, a primeira geração é a da alma. No Filho,

nós fomos, desde toda a eternidade, concebidos e amados como filhos. Somos filhos no

Filho, desde toda a eternidade, antes de qualquer tempo, isto é, antes de qualquer duração

e sucessão. Somos filhos no Filho, concebidos no in-stante pleno da eternidade, onde toda

a vida de Deus já nos foi dada plena e simultaneamente90.

O Filho, enquanto Intelecto, é intuitus originarius: é a visão de Deus que faz vir à

luz cada ente criado. Cada ente criado é o reflexo, a imagem, a semelhança, do seu eidos,

que foi gerado em Deus, concebido no Filho, seu Intelecto. A alma, no entanto, enquanto

criatura racional ou intelectual, não é criada à imagem de um pensamento ou idéia em

Deus, mas ela é criada à imagem do próprio Deus, melhor, do próprio Intelecto, o Filho,

que, por sua vez, é esplendor e glória da essência divina.

“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”.

“Mas por agora deve-se saber que a criatura racional ou

intelectual distingue-se de toda criatura que está debaixo

dela, pelo fato de aquelas que são inferiores serem

produzidas segundo a semelhança com aquilo que está em

Deus e possuírem suas próprias idéias em Deus, pelas quais

foram feitas, mas por razões determinadas segundo as

88 Cfr. a contracapa da revista Scintilla... 89 Esta Palavra vigora continuamente, em todo o tempo (creatio continua). Por isso, cada momento do tempo é igualmente próximo do instante da criação. O instante em que Deus diz: ‘Faça-se!’ se repete a cada momento. Chesterton ilustra o frescor e a jovialidade desta disposição criadora de Deus dizendo que é como se Deus assistisse a cada dia o nascer do sol e, como uma criança que nunca se cansa da eterna novidade do mundo, dissesse reiteradamente: “faz de novo!”. 90 Cfr. a definição de Boécio da eternidade: posse plena e simultânea da vida.

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espécies distintas entre si na natureza; mas a natureza

intelectual tem antes a própria semelhança de Deus do que

alguma coisa que seja ideal em Deus. A razão disso é que

‘o intelecto é como tal a capacidade de tornar-se tudo’, não

isso ou aquilo determinado por espécies. Daí que, segundo

o Filósofo, ‘é de certo modo tudo’ e todo ente. Também

Avicena, no livro IX da Metafísica, diz assim: ‘a perfeição

da alma racional consiste em que se torne um universo

intelectual, nela descrevendo a forma do todo’, até que nela

se perfaça a ordem do ser universal e assim se transforme

num universo intelectual, a figura do ser de todo o mundo’.

É por isso que o homem procede de Deus ‘na semelhança

da substância divina’, e por causa disso, só a natureza

intelectual é capaz de receber as perfeições das substâncias

da essência divina, como as da ciência, sabedoria,

presidência, organização dos entes, da providência e

governo das outras criaturas. E é isso que se diz aqui:

façamos o homem à nossa imagem e semelhança, não de

alguma coisa de nossa, e em seguida: ‘Deus criou o homem

à sua imagem’, não de alguma coisa de seu; ‘segundo a

imagem de Deus’, não de alguma coisa qualquer de Deus.

E Agostinho disse que a alma é ‘imagem de Deus porque é

capaz de Deus, porque é capaz das perfeições que são

próprias da essência divina, como a sabedoria, a

providência, o governo, a presidência ou o domínio sobre

tudo que está abaixo do homem e do intelecto. É isso que

significa o que se diz aqui: façamos o homem à nossa

imagem e semelhança”91.

Enquanto Intelecto, a alma humana é capaz da pura recepção do eidos de todo e

qualquer ente. Ela é o vazio em que se imprime a evidência da configuração do ser de

cada um dos entes e de todos eles no seu conjunto:

“A razão de ser da imagem, portanto, é que expresse tudo

aquilo de que é imagem, e não simplesmente alguma coisa

determinada nele. É por isso que o grego chama o homem

de microcosmo, isto é, mundo em miniatura. O intelecto,

portanto, enquanto intelecto, é a semelhança de todos os

entes, é algo que contém em si a totalidade dos entes, não

este ou aquele, com exclusividade. Daí que seu objeto é o

ente em sentido absoluto, não só este ou aquele ente”92.

A alma é o nada que pode se tornar tudo, na dinâmica do seu ser intelectual. Por

isso, a alma humana, enquanto Intelecto, é configuradora do mundo. Ela é, por

conseguinte, de certa maneira – a saber, a modo do Intelecto – todos os sendos em suas

91 Eckhart, Comentário ao Gênesis, n. 115. 92 Idem, ibidem.

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possibilidades de ser. Alma e mundo, por conseguinte, se espelham mutuamente: a alma

se espelha no mundo e o mundo se espelha na alma. A alma é o batente da possibilidade

de ser; como a toada da percussão do toque do ser, como repercussão ‘syntônica’

constitutiva do mundo. A alma freme na tênue vibração do toque do ser, que se dá como

a proximidade calma de um vigor que rege sem se impor, que se doa, retirando-se e

retraindo-se para dentro do pudor de seu mistério. Tal estremecimento constitui o

privilégio de sua finitude agraciada. E a percussão desse toque do ser, que se dá como o

retraimento da plenitude amorosa da deidade, que a gera como filha no Filho, a torna

medium da repercussão da Palavra eterna do Pai no tempo do mundo.

O vir à fala da alma é o próprio eclodir do mundo. É a “repercussão ‘syntônica’

constitutiva do mundo”. “A alma é, de certa maneira, tudo”. Na alma ressoa o toque do

silêncio do mistério do ser e, nesse ressoar e como esse ressoar, vem à fala, cada vez, o

mundo dos sendos. A alma é uma porta pela qual está passando, continuamente, a gênese

do mundo. Chamamos de “syntônica” a essa passagem. O que quer isso dizer?

“Por exemplo, escutando música na escala menor e ali nessa

escuta a música passa da menor à maior, a tonância de todos

os tons muda da escala menor para a maior. Todos os tons

da escala menor como os tons da escala maior são

impregnados pela tonância e dentro dessa tonância, como

todo, surge a tonância menor e maior impregnando todos os

tons. Aqui não se passa de um tom para outro, aqui a

passagem se faz cada vez do todo para dentro de cada um

dos tons. E sempre se guarda simultaneamente o tom

concreto cada vez seu na sua tonância própria como que

impregnado de tonalidade onipresente e onipregnante em

todos os tons. Esse fenômeno é designado pelo termo

syntônica, a modo do termo synfônica”.

Cada alma é, cada vez, tudo. O todo se dá todo em cada alma. Por ser nada e tudo,

por ser única em si mesma e una com todo o sendo, a alma é singular e universal. A

essência da alma é a Abgeschiedenheit – o desprendimento. Na sua finitude agraciada, a

alma é, como a deidade de Deus, ab-soluta. A vocação ontológica da alma humana é o

chamado de ser espírito na absoluta liberdade da aseidade do desprendimento. Essa

possibilidade excelente, no entanto, já foi dada ao ser humano, à medida que ele é criado

e redimido para ser Filho no Filho. Ser criado à semelhança de Deus, portanto, significa

ter o privilégio de poder-ser Filho no Filho. Este poder-ser, portanto, como

impossibilidade possível, é graça – graça que nos foi revelada e outorgada em Jesus

Cristo, o Crucificado. Ser em Cristo é, portanto, viver dessa graça e nessa graça, em todos

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os nossos empenhos e desempenhos de vir a ser o que somos. A alma vem a ser o que ela

é, por sua vez, quanto mais ela realiza, em si, a livre recepção do ser filho no Filho. Daí

que, o máximo para Deus é gerar, em si, a alma e o máximo para a alma é gerar, em si,

Deus.

Vir a ser o que sou, sendo Filho no Filho, sendo em Cristo Crucificado, é ser

gerado por Deus. Contudo, ao ser gerada por Deus, a alma também gera Deus, ou melhor,

gera em si mesma o Filho de Deus:

“Num escrito se diz: O maior de todos os dons é que nós

sejamos filhos de Deus, e que ele gere em nós seu Filho (1

Jo 3, 1). A alma que quer ser filha de Deus não deve gerar

nada em si. E naquela em que o Filho de Deus deve nascer,

não deve ser gerado nenhum outro. O maior anseio de Deus

é: gerar. Nada lhe satisfaz, a não ser que gere seu Filho em

nós. Também a alma de modo algum se satisfaz se o Filho

de Deus nela não nascer...”93.

De repente, nesta disposição e gosto para o gerar, nós encontramos um traço

decisivo da vigência da alma (de sua natureza). E com isso, nós encontramos o nome

mais apropriado para essa essência da alma: “mulher”:

“Que o homem conceba Deus em si é bom, e nessa

concepção ele é virgem. Mas que Deus se torne nele

fecundo, isso é bem melhor. Pois frutificar a dádiva é a

única gratidão para com a dádiva. E ali, o espírito é mulher,

na gratidão que gera novamente, lá onde o espírito gera

novamente a Jesus para dentro do coração paterno de

Deus...” 94.

Qual a dinâmica desta geração, à qual pertence a vida da alma? Ela é dúplice:

auto-geração (geração de si em si) por meio da liberdade e na livre disponibilidade do

amor que se faz humilde recepção, geração de Deus em si, que é, no fundo geração de

Deus em Deus:

“A alma gera a si mesma em si mesma e gera a si mesma a

partir de si, para fora, gerando-se de novo para dentro de si

mesma...

De si a alma gera Deus, a partir de Deus em Deus. Ela gera-

o retamente a partir de si. Ela o faz para que, no que ela é

93 Sermão 11, p. 97. 94 Sermão 2.

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conforme a Deus, gere de si a Deus: assim ela é imagem de

Deus...”95.

A alma recebe o seu poder-gerar Deus do fundo do abismo da Abgeschiedenheit

– do desprendimento, isto é, da livre e virginal disponibilidade de servir:

“Virgem que é mulher, isto é, livre e desprendida, sem

vontade própria, está, todo o tempo, próxima de Deus e de

si mesma, de modo igual. Traz muitos frutos e grandes, nem

mais nem menos do que é o próprio Deus. É esse o fruto, e

é esse o nascimento que a virgem-mulher traz à obra, todos

os dias, cem vezes, mil vezes, sim, vezes sem fim, parindo,

frutificando, do fundo do mais nobre abismo. Ou dito

melhor ainda: em verdade, do mesmo abismo, de onde o Pai

gera sua Palavra eterna, ela também, em co-engendrando,

torna-se fecunda. Pois Jesus, a luz e o resplendor do coração

paterno – no dizer de São Paulo, glória e esplendor do

coração do Pai, que, com poder, transluz o coração paterno

(cfr. Hb 1, 3). – é unido a ela e ela a Ele. Unificada com este

Jesus, ela esplende e brilha como um Um único, como uma

luz pura e clara no coração do Pai”96.

A alma deixa atuar em si o poder de gerar Deus no que ela tem de mais íntimo e

de mais alto: no fundo da alma, na mente, no coração. O fundo da alma é aquela dimensão

mais superior e mais interior de nós mesmos em que acontece aquela geração de Deus em

nós. Outro nome para esta dimensão essencial de nós mesmos é mens: mente97. A tradição

chama de Coração98. Já Echkart chama também de Intelecto. O intelecto é a cabeça99 da

alma:

“Se me perguntam: por que rezamos, por que jejuamos, por

que fazemos todas as nossas obras, por que fomos batizados

e – o que é o mais sublime – por que Deus se fez homem?

95 Sermão 43. 96 Eckhart, Mestre. Sermões Alemães, p. 47s. 97 São Boaventura chama de mens, mas também de apex mentis: ápice da mente. 98 Na tradição, coração é nome primordial para o centro de toda a vida espiritual da alma: do pensamento, da vontade, do sentimento, etc. 99 Cabeça significa o que há de mais elevado no humano: o que nele se volta para o alto, para Deus. Para os medievais o fato de o homem andar ereto, com a cabeça erguida e não voltada para baixo, como os animais, era um distintivo de sua dignidade. Pelo que vimos nessas últimas duas notas, os medievais fazem coincidir cabeça e coração: ambos falam do mesmo, mas de perspectivas diferentes. Cabeça é o summo meo (o mais elevado de mim), na linha da verticalidade. Coração é o interior meo (o mais dentro, mais íntimo de mim), na linha da interioridade. Depende de como se enfoca a viagem da individuação: se como elevação (da mente para Deus) ou se como penetração interior, para o âmago de mim mesmo, em que vige a essência (fundo/fundamento/abismo) da minha alma.

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– Eu responderia: por isso, para que Deus seja gerado na

alma e a alma < por sua vez > seja gerada em Deus...

... A palavra eterna se pronuncia interiormente, no coração

da alma, no íntimo, no mais puro, na cabeça da alma, da

qual já falei recentemente, no intelecto: lá dentro, realiza-se

o nascimento...”100.

Todo o nascimento, porém, acontece como uma forma de morte. É ruptura,

irrupção, passagem. Só que passagem da escuridão para a luz! O nascimento da alma a

partir da alma, o nascimento da alma em Deus e de Deus na alma, o que é sempre o

mesmo, se dá somente por meio da Cruz. A partir da Cruz toda a dor se torna dor de parto:

sofrimento do nascimento da alma, do nascimento da alma em Deus e de Deus na alma

e, no nascimento da alma, o nascimento do mundo, do Céu e da Terra:

"A cruz é o ponto central da essência de todas as coisas

nessa paisagem ontológica do pensamento medieval. É

como uma fenda que entrecruza todo e qualquer

movimento, onde se processa e procede a ordenação das

esferas dos entes na sua totalidade como dimensão ou como

densidade de ser. É o ponto de contato entre a totalidade da

repercussão de cada percussão como o encontro de

diferentes mundos ou repercussões, constituindo cada vez o

mesmo Um uni-verso. Enquanto fenda, interstício entre

mundos, a cruz (os sofrimentos, as dores, as dificuldades

etc) é o in-stante da saída e entrada simultâneas de uma

totalidade ou de um nível da densidade de ser para outro. É

o momento da viragem de transformação de uma dimensão

para outra. Essa passagem se chama conversão ou retorno.

Dito de outro modo, no movimento do operari, no surgir,

crescer e consumar-se da obra, há sempre de novo o toque

transformador da cruz. Esse movimento de contínua

conversão pode ser comparado a uma porta basculante.

Vira para dentro e para fora do mesmo modo. Ou melhor, a

saída é ao mesmo tempo entrada: igual e simultaneamente.

Significa dizer que toda e qualquer transformação faz

repercutir todos os lugares e recantos do uni-verso em

cordialidade, cuidado e alvoroço pelo surgimento,

crescimento e consumação da vida na ab-soluta soltura da

liberdade da criação na afiliação divina..."

100 Sermão 38, p. 223.

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ECKHART – VARIA

Neste segundo sentido, estrito, um pensador é uma “planta rara”, crescida num

“solo raro”101. Ou melhor, pensador é uma “planta” que encontrou no chão ordinário

em que se enraíza a existência humana, no céu e na terra, comum a todos os humanos,

algo de extraordinário. O pensador é uma árvore que lançou suas raízes nas profundezas

veladas da terra e que, quanto mais profundamente as lançou, tanto mais se ergueu

para a pureza, a claridade e a jovialidade do céu.

Mestre Eckhart será um teólogo cristão. O seu modo de conceber o pensamento

a respeito de Deus será cristão, isto é, um modo que assinala a radical transcendência

de Deus e, ao mesmo tempo, a sua radical proximidade junto à criatura e,

especialmente, junto ao homem, à sua alma. É, isto é, um Deus a quem o homem pode

invocar, num encontro pessoal, de abertura eu-tu, dizendo, como Agostinho: tu és

“intimius intimo meo, superius supremo meo” (mais íntimo do que o meu mais íntimo e

superior ao que há de mais de mais elevado em mim). Trata-se, portanto, de um Deus

Altíssimo em si mesmo e em referência à criatura, ou seja, um Deus sobre-elevado,

sobre-essencial e sobre-divino, como diria Dionísio Areopagita, e, ao mesmo tempo, um

Deus intimíssimo à alma humana. Numa das suas conversações espirituais, tidas após o

jantar, com os jovens frades em Erfurt, quando era prior do convento e vigário da

Turíngia (1294 a 1298) – conversações que deram origem aos textos intitulados “Rede

der Unterweisungen” (Discursos de instrução) –, Eckhart dá uma indicação de

discernimento prático para a vida do “homem interior”, ou melhor, para a vida de

relacionamento do homem com Deus, que parte deste princípio da proximidade de Deus

ao homem. Ele diz:

O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de enfermidades, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tenham as tuas grandes transgressões, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como próximo a ti. E, há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com

101 Heidegger, Revista Vozes, p. 49-51.

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constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.

O Deus de Eckhart é o Deus revelado do Novo Testamento, o Deus, que é Amor.

A vida de Deus em Deus é Amor.

como Mestre, primeiramente, nos anos de 1302 e 1303, promove o debate de

questões , e projeta a redação de um “Opus Tripartitum”,

O processo canônico de acusação de heresia, movido contra Eckhart por

iniciativa do Arcebispo de Colônia Henrique de Virnenburg, contra o qual ele se

defendera em Avignon, morrendo em meio à peleja desta defesa, em 1327, bem como

a bula “In agro dominico”, de João XXII, que condenou 28 proposições tiradas de suas

obras, sendo 28 consideradas como contrárias à fé e 11 como sentenças que soavam

mal aos ouvidos piedosos, e que concedia que, “com muitos esclarecimentos e

complementações poderiam resultar e ter um sentido católico”, não calou a sua voz de

mestre de pensamento na história. Eckhart, com efeito, continuou sendo considerado

como “Lesemeister” (mestre de leitura) e como “Lebemeister” (mestre de vida). Quer

como mestre de leitura, quer como mestre de vida, Eckhart é sempre um mestre de

pensamento. Pois a vida fática é a experiência mais radical do pensamento. E é a partir

desta experiência radical que ele se mostra um “mestre de leitura”. Pois ler significa

recolher, concentrar-se no dito da escritura, auscultando neste dito, a ressonância do

não-dito, do silêncio do mistério, que constitui a vida da nossa vida. Assim, sua leitura

se transforma em contemplação, isto é, um ver que se vê visto pelo mistério que nos

fita, desde o fundo da vida, como vida da nossa vida, mistério que se costuma nomear

com o nome “Deus”.

Entretanto, o que é um mestre? Ora, alguém que ensina, respondemos

prontamente. Porém, podemos recordar aqui um dito do poeta-pensador brasileiro,

João Guimarães Rosa, que serve como uma advertência à nossa preguiça de pensar. O

dito de Guimarães Rosa é: “mestre não é quem ensina, mas quem, de repente,

aprende”. A resposta de Guimarães Rosa nos é mais instrutiva do que a nossa,

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corriqueira, preguiçosa. É que a resposta: mestre é quem ensina, embora correta, não é

verdadeira, ou seja, não é descobridora do essencial. Essencial é que, por e para ensinar,

um mestre deve sempre de novo aprender, “de repente”. Isso quer dizer: um mestre é

alguém que está sempre de novo na “espera do inesperado” e que, desta espera, que

constitui o pensamento, aprende sempre de novo com a própria Verdade, e, que, só por

isso, pode ensinar alguma coisa a alguém, que também está na busca do aprender. Disto

nos fala Heidegger, no ciclo de lições intitulado Was heisst denken? – O que evoca

pensar?

É bem sabido que ensinar é ainda mais difícil do que aprender. Mas raramente se pensa nisso. Por que ensinar é mais difícil que aprender? Não porque o mestre deva possuir um maior acervo de conhecimentos e os ter sempre à disposição. Ensinar é mais difícil do que aprender, porque ensinar quer dizer “deixar aprender”. Aquele que verdadeiramente ensina não faz aprender nenhuma coisa que não seja o aprender. É por isso que o seu fazer causa muitas vezes muitas vezes a impressão que junto dele nada se aprende. Isso acontece porque inconsideradamente entendemos por “aprender” a só aquisição de conhecimentos utilizáveis. O mestre que ensina ultrapassa os alunos que aprendem somente nisto: que ele deve aprender ainda muito mais do que eles, porque deve aprender a “deixar aprender”. O mestre deve poder ser mais ensinável do que os alunos. O mestre é muito menos seguro no seu ofício do que os alunos do seu. Por isso, no relacionamento do mestre que ensina e dos alunos que aprendem, quando o relacionamento for verdadeiro, jamais entram em jogo a autoridade de quem sabe muito nem a influência autoritária do representante magisterial. Por causa disso é ainda uma grandeza ser mestre – que é bem outra coisa que ser professor célebre. Se hoje – onde tudo é medido sobre o que é baixo e conforme o que é baixo, por exemplo, sobre o lucro – ninguém mais deseja ser mestre, isso é devido sem dúvida ao que esta grande “coisa” implica e à grandeza de si própria. ”

Ensinar é tarefa do aprender. Só pode ensinar quem continuamente aprende a

aprender. Não só. Quem também continuamente aprende a deixar-aprender. O deixar-

aprender é o modo livre e libertador de fundar o relacionamento entre quem ensina e

quem aprende. Só pode ensinar quem se faz companheiro do aprendiz, considerando-

se a si mesmo um eterno aprendiz que, quanto mais aprende, mais se torna um iniciante

na aprendizagem do mistério da vida. Pois a experiência da vida é o horizonte de toda

aprendizagem. Dela emerge a aprendizagem, nela se dá, para ela retorna. Todo

aprender ou é para a vida ou não é aprender. A vida, com sua verdade, é quem ensina.

Em face dela todos nós somos sempre discípulos e condiscípulos. Sempre. Enquanto

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vivemos. Até o último respiro. Ensinar é um fazer que consiste em deixar-ser. Deixar-ser

o que? Resposta: deixar-ser a dinâmica medial do aprender. O verbo “deixar” aqui não

significa uma omissão, pelo contrário, significa uma solicitude que está aquém de toda

atitude intervencionista e invasiva, ou seja, positivamente falando, um cuidado para que

a ação – no caso, a ação do aprender – se desenvolva segundo a força criativa da vida,

que acontece segundo suas próprias leis e segundo sua dinâmica própria. O “deixar”

tem, então, aqui, o sentido de uma ação con-criativa, ou seja, criativa com a própria

criatividade da vida, que age, tanto em quem aprende como em quem ensina. Como,

porém, para os vivos viver é ser, então o deixar aprender é deixar (a vida) viver (em nós

e entre nós), o qual é, em última instância, deixar ser: deixar ser o ser.

A aguda experiência da vida fática desde o encontro pessoal do si-mesmo com

Deus como vida da vida do homem constitui a matriz de pensamento de Mestre Eckhart.

Eckhart é um mestre de pensamento.

No pensamento e desde o pensamento, o homem realiza as virtualidades de sua

humanidade. O vigor do pensamento, com efeito, vige tanto no mito e na arte, quanto

na fundação da Pólis, tanto na fé em Deus, quanto na filosofia, vige, sobretudo, na

mística da experiência de simplesmente viver e morrer. Enfim, a vigência do

pensamento está se dando em todas as possibilidades da liberdade criativa da

existência, em que o homem recebe a dádiva da sua humanidade e agradece-a,

tornando-a fecunda. Eckhart, no segundo dos seus “Sermões Alemães”, ensinou que

“frutificar a dádiva é a única gratidão para com a dádiva”. Heidegger, que considerara

Eckhart o seu “velho mestre de vida e de leitura”102, ensinou que agradecer é pensar e

que pensar é agradecer.

102 O caminho do Campo (1949). Revista Vozes, 1977, p. 47.

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Pensar é agradecer. Em que sentido? Pensar receber cordialmente a doação do

ser. A doação do ser, porém, tem o caráter de mistério. O ser doa-se obliquamente no

que está sendo e em seu desvelamento, deixando-o ser, à medida que se retrai, se

subtrai, se recusa, no pudor de seu mistério. Nessa retração, neste retraimento e

subtração, nesta recusa de se fazer notar, o ser acontece como um nada, pois ser não é

nenhuma coisa que está sendo. Trata-se, porém, de um nada criativo, pro-criativo, con-

criativo, promovedor e receptivo de toda a diferenciação no que está sendo. Pensar é

receber esta doação sub-reptícia de ser, esta doação furtiva, que acontece no silêncio,

na caligem, na quietude, enfim, na noite mais alta que se dá no fundo da alma. Pensar

é agradecer esta doação.

E, ficando no mesmo, mas em sentido inverso, pode-se dizer que agradecer é

pensar. Agradecer é pensar, no sentido, de recordar, isto é, de cordialmente rememorar

e comemorar o que se deu, e, dando-se, recolheu-se, e, recolhido, ainda perdura na obra

da Verdade e nos determina. Por isso, o passado do pensamento nunca é o passado que

simplesmente passou e não mais retorna. É, antes, o passado que perdura e retorna e

que não somente nos segue, mas até mesmo nos antecede, quando se trata de

respondermos ao apelo do futuro, isto é, quando se trata de pensar as primícias do

porvir, acenando-se nas precisões de nosso presente. É que o passado mantém

reservadas e poupadas para o futuro a plenitude e as profundezas do querer e poder103.

Hölderlin, o poeta da poesia, o poeta-pensador, diz, num fragmento: “........e

quando repousamos da vida do dia, dizei, como é que agradeço? Invoco o Alto? ”.

Heidegger, o pensador do ser e do pensamento, o pensador que concebeu e realizou o

pensar como poesia e poema, comenta: “Como é que agradeço? ” – Agradecer só sabe

quem fez a experiência de sentir-se grato àquilo que o determina, que ele próprio não

é”104. O pensamento se torna, aqui, realização da finitude agraciada e agradecida.

Finitude é não-ser a partir de si mesmo, é ter no nada de si, e no ser recebido de outro

o fundo e fundamento de si mesmo. Agraciada é esta finitude, pois, para o finito, tudo

é doação e recepção. Até mesmo a possibilidade e a capacidade de receber é recebida,

isto é, é dádiva do mistério da gratuidade e da gratuidade do mistério. Agradecida, pois

103 Uma palavra de agradecimento (1959). In: Revista Vozes, 1977, p. 50. 104 A questão sobre a morada do homem (1969). Revista Vozes, 1977, p. 53.

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o finito recebe cordialmente a própria possibilidade de receber, e restitui ao doador esta

recepção, como uma doação e uma oferenda de si.

No Sermão Alemão 2, Eckhart toma a alma humana em seu caráter receptivo

recorrendo à dupla figura feminina da virgem-mãe. A alma é virginal à medida que é

serviçal e disponível105, à medida que ela é livre, “sem nenhum impedimento em relação

à verdade suprema, assim como Jesus é solto e livre, e é virginal nele mesmo”106. Mas,

dirá Eckhart, não basta que a alma seja “moça-virgem”, é preciso que ela se torne

“mulher”. Ele elucida:

Agora prestai atenção e observai com precisão! Se o homem permanecesse para sempre moça-virgem, dele não viria nenhum fruto. Para tornar-se fecundo, é necessário que seja mulher. “Mulher” é o nome, o mais nobre que se pode atribuir à alma, e é muito mais nobre do que “moça-virgem”. Que o homem conceba Deus em si é bom, e nessa concepção é ele moça-virgem. Mas que Deus se torne nele fecundo, isso é bem melhor. Pois frutificar a dádiva é a única gratidão para com a dádiva. E ali, o espírito é mulher, na gratidão que gera novamente, lá onde o espírito gera novamente a Jesus para dentro do coração paterno de Deus107.

Assim, se pela gratuidade do seu amor benevolente Deus gera o seu filho na

alma, pela gratidão, a alma gera o filho de Deus em Deus! Se pela disponibilidade

desprendida de si e serviçal, solta e límpida, o homem se prepara para receber Deus em

si, com outras palavras, se pela jovialidade do desprendimento Deus se torna fecundo

no homem, pela gratidão o homem se torna fecundo em Deus. Podemos perguntar:

como é que, pela gratidão, a alma gera Deus? Bernhard Welte traz à fala a natureza

fecunda da gratidão do seguinte modo:

O agradecimento surge daquele que foi agraciado e ele vale para aquele que é o agraciador. Ele é um movimento do agraciado para o agraciador. E o que surge neste movimento do agraciado para o agraciador? O que o agraciado diz para o agraciador? Ele não diz, talvez: isso você me deu: tu és tão bom!? Em tal fala ele tem a ver, certamente, com a dádiva, mas não somente com a dádiva. Mais

105 Em alemão a palavra virgem se diz “Jungfrau”: moça, no sentido de “jovem mulher”. Também se diz “Mädchen”, que é o diminutivo de “Magd” (serva, criada): servazinha, criadinha. “Indica, pois, a disposição dócil e generosa, o frescor de boa vontade, em se doar ao serviço, diligente e aplicadamente livre, solta, na jovialidade da virgem, isto é, da jovem mulher “solteira” (ledig): límpida e pura liberdade de ser intacta como fonte da vida, sempre prestes a ser doação-mãe” (Harada, H. Glossário. In: Sermões Alemães, p. 280). 106 Eckhart, M. Sermões Alemães, vol. I, p. 47. 107 Idem, ibidem.

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propriamente, ele tem a ver com o dar do doador. E, antes de tudo, que este é assim, como ele é, tão bom. O ser, enquanto o ser-bom do doador, provém agora do coração e da boca do agraciado e, provindo assim, vai de volta ao encontro do agraciador mesmo. E este irradiar está pleno do sentir alegre e amoroso do agraciado. Portanto, não acontece propriamente nada de novo, e, no entanto, acontece algo novo. Nada de novo, pois só aquele, que já está aí, o agraciador em sua bondade, é trazido à tona no agradecimento. Entretanto, há algo novo, pois ele agora é trazido à tona pelo agraciado, ele provém do agraciado, este o “gera”, e neste provir e neste nascimento o agraciado é plenificado de sentimento alegre e amoroso108.

Hölderlin, num poema tardio, que começa com as palavras “No azul sereno

floresce a torre da igreja com o teto de metal...” traz os versos: “Deve um homem, no

esforço mais sincero que é a vida, / levantar os olhos e dizer: assim / quero ser também?

Sim. Enquanto perdurar junto ao coração / a amizade, pura, o homem pode medir-se

sem infelicidade com o divino”109. Heidegger, ao comentar a inocente palavra “amizade”

que aparece nestes versos acompanhada do adjetivo “pura”, remete ao termo grego

“kháris” e a um dito sobre a “kháris” que aparece no verso 522 da tragédia Aias de

Sófocles: “kháris khárin gár estin he tíktous’aei”. A tradução de Heidegger diz: “Huld

denn ist’s, die Huld hervor-ruf immer”. Em português: “A benevolência é o que sempre

faz apelo à benevolência”. A amizade é, com efeito, benevolência que responde à

benevolência. Os versos de Hölderlin nomeiam o advento da benevolência, da “kháris”,

junto ao coração do homem, isto é, junto à sua essência. E dizem que, enquanto junto

a esta essência perdurar, isto é, viger, a amizade pura, a benevolência que responde ao

apelo da benevolência, “o homem pode medir-se sem infelicidade com o divino...”.

Mutatis mutandis, o pensamento de Eckhart é um “medir-se sem infelicidade”, isto é,

um medir-se agraciado e agradecido, isto é, não um medir-se desgraçado e ressentido,

com o divino, ou melhor, com Deus, ou melhor ainda, com a Deidade. Benevolência faz

apelo à benevolência. Há um dito popular francês que parece dizer o mesmo com outras

palavras: “noblesse oblige” – a nobreza obriga. Em português, quando sentimos

gratidão, respondemos: obrigado! “Obrigado” significa: estou ligado, pela gratidão, ao

agraciador. A gratidão é um vínculo, uma correspondência, que responde com

gratuidade ao apelo da própria gratuidade. Todo o pensar de Eckhart é um dizer

108 Welte, B. Op. Cit., p. 134. 109 Apud Heidegger, M. Ensaios e Conferências: p. 171.

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“obrigado”. Isto é: é um corresponder, na pobreza da receptividade, à riqueza do reino

de Deus, isto é, é um corresponder à superfluência fontal da plenitude de Deus. O seu

pensar é, pois, uma concreção da gratidão.

O pensamento fundamental que deu fôlego ao pensar de Eckhart, isto é, que o

provocou incessantemente a pensar, e que fez dele um pensador, isto é, nas palavras

de Nietzsche, “um homem da espécie de um arco com a máxima envergadura de

tensão”110, pois tal arco se estende do ser até o nada, é o pensamento da superfluência

da plenitude de Deus. A benevolência veio ao seu coração como a provocação de tal

pensamento. É a partir desta provocação que o seu pensar se mede com o divino, com

Deus, com a Deidade. Seu pensar é, pois, sustentado pelo “pathos” da gratidão. É que

todo o pensamento de todo o pensador acontece como a ressonância de um pathos.

Assim, entre os gregos, foi o “pathos” do “thaumadzo”, da admiração, do espanto e do

estupor com o ser, que levou os gregos ao filosofar e, assim, à filosofia. Por outro lado,

como vemos em Descartes, inicialmente, os modernos são conduzidos ao filosofar e à

filosofia pela dúvida, seguindo o apelo do lema: “de omnibus dubitandum est” (há que

se duvidar de tudo). Entre um e outro modo de filosofar, o pensar de Eckhart é uma

correspondência à dádiva de ser desde o “pathos” da gratidão. Nomeamos, aqui, o

“pathos” e, com isso, corremos o risco de pensar curto demais este fenômeno. Podemos

entender o pathos como mero sentimento. E paira diante de nós a advertência que

André Gide fez no tocante à literatura e que bem podemos aplicar também à filosofia,

isto é, ao filosofar, ao questionar e pensar: “C’est avéc les beaux sentiments que l’on fait

la mauvaise littérature” (é com os belos sentimentos que se faz a ruim literatura).

Poderíamos nós também concluir que com os belos sentimentos se pode fazer uma ruim

filosofia. Ora, filosofia é a atividade de aprender a pensar. Ora, se o pensar e o

pensamento de Eckhart tivessem sido ruins, isto é, sem vigor e sem vigência criativas e

libertadoras, não teria dado tanto a pensar a outros pensadores e não teria havido uma

tradição de pensamento que a ele se voltaria sempre de novo para, junto dele, do seu

pensado e impensado, dito e não dito, aprender a pensar, o que de fato houve e

continuará havendo. Junto do seu pensamento, por exemplo, Tauler e Ruysbroeck,

exercitaram a aprendizagem do pensar. Das provocações de seu pensamento

110 Apud Heidegger, M. Revista: p. 51.

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receberam estímulo o pensar de um Nicolau de Cusa, o último dos pensadores

medievais e o primeiro dos modernos. Não só: também Hegel dele muito aprendeu. E

Heidegger, como vimos, o considerou “o velho mestre de vida e de leitura”. Na verdade

O que, porém, constitui a gratidão enquanto tal? Resposta: um nada. Trata-se,

porém, naturalmente, não de um nada privativo, nem de um nada negativo. Trata-se,

antes, de um nada receptivo e, ademais, concriativo, uma vez que, ao receber, concebe,

e torna-se fecundo, isto é, gera, deixa e faz nascer. Pensar é receber e agradecer a dádiva

de ser, quer dizer, é deixar ser o ser e o nada de tudo. A vibração da gratidão, a

ressonância de seu nada de pura recepção, é o canto do louvor. Num dos Sonetos a

Orfeu, Rilke diz que cantar não é encantar. “Na verdade, cantar é um outro sopro. Um

sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um vento”111.

Num dos seus “Sermões Alemães”, o 19, Eckhart pergunta: “o que louva a Deus?

”. E responde: “A igualdade”. E explica: “Assim, pois, louva a Deus tudo quanto na alma

é igual a Deus; o que de algum modo é desigual a Deus não louva a Deus; isso é assim

como um quadro que louva seu mestre, pois o mestre imprimiu no quadro toda a arte

resguardada em seu coração, fazendo-o totalmente a ele tão igual. Essa igualdade do

quadro louva sem palavra o seu mestre. O que se pode louvar com palavras ou rezar

com os lábios é de pouco valor”112. Assim, para Eckhart, pensar é agradecer e louvar,

mas louvar é ser, tornar-se igual a Deus, ou melhor, mais do que isso, é ser, tornar-se

idêntico com Deus, um com Deus. Deus é Um. Nada é mais alto do que a unidade de

Deus. Tornar-se um no Um e com o Um: eis o impulso e o anseio mais radical do

pensamento em Eckhart. Pensamento que se torna oração. Eckhart pergunta: “o que é

oração? ” E responde com uma definição que ele julgava ser de Dionísio, o Areopagita,

111 P. 24-25. 112 Eckhart, M. Sermões Alemães, vol. I, p. 135.

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mas, que na verdade, é de João Damasceno: “ein vernünftic ûfklimmen in got, daz ist

gebet”113

Não só agradecer é pensar, como também pensar é agradecer.

Disso sabia Sócrates, no “sei que nada sei”. Disso sabia Platão, que na imagem

alegórica do Sol, deixa entrever o mistério do “Agathon”, o Bem, que é “epékeina tes

ousias”, além de toda a entidade do ente. No livro VI da Politeia (A República), ele diz

que o Bem “está muito além da entidade do ente em sua majestade e em seu poder”

(509b). E, no livro VII ele põe a contemplação do Bem como o termo da anábasis, a

ascensão da mente no processo de libertação pela e para a verdade. Mesmo Aristóteles,

na Ética a Nicômaco, remete, em última instância, ao Bem puro e simples (to agathon

haplos), fim de todas as ações humanas, felicidade do homem. E Plotino percebeu que

todo o discurso filosófico culmina no paradoxo de falar do inefável. Ele diz:

Como pois falamos dele? Na realidade dizemos alguma coisa acerca dele, mas

não o exprimimos e não temos dele nem conhecimento nem intelecção. De que

maneira, pois, falamos acerca dele, se não o possuímos? Ou então, se não o possuímos

com o conhecimento, não o possuímos de outro modo? Mas o possuímos assim, de

maneira a falar acerca dele, mas não a exprimi-lo. E, de fato, dizemos aquilo que ele não

é; mas aquilo que ele é, não o dizemos. Assim, falamos dele a partir daquilo que vem

depois dele (Enéadas, V, III, 14, 1-8) (PLOTINO, 2000, p. 367).

No século XV, Nicolau de Cusa, leitor atento de Eckhart, chamou este saber de

“douta ignorância”. A vigência deste saber que se dá não-sabendo, próprio do

pensamento, não somente funda a filosofia, quanto também é como um sal para a

teologia cristã, sal que dá a ela o sabor do mistério e que a preserva da pretensão de

aferrar Deus nas malhas do discurso, da razão discursiva, predicativa, dedutiva,

113 Versão de Quint: “Ein Aufklimmen zu Gott in der Vernunft, das ist <das> Gebet” (p. 503). Em João Damasceno (De fide orthodoxa III c. 25 – PG 94, 1089): Oratio est ascensus mentis in Deum (proseché estin anábasis nou prós thon Theón”. No sermão latino 24 Eckhart remonta a Damasceno e define que oração é “intellectus in deum ascensus”. Tauler, por sua vez, define que a oração é “ein ufgang des gemûtes in Gotte” (p. 319).

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argumentativa. A teologia mística dos Padres da Igreja e dos doutores medievais, que

está além e aquém e dentro de toda a teologia afirmativa e de toda a teologia negativa,

está impregnada deste saber, que é sabor do não-saber. Gregório de Nissa, de quem

Dionísio Areopagita aprendera os caminhos da teologia, no “De beatitudinis” (Das Bem-

aventuranças), ensina que o bom vidente não é o que vê o visível, mas sim o que vê o

invisível. Ele diz:

Quem deixa todas as aparências para trás, não somente o que o sentido, mas

também o que a razão faz aparecer para o olhar, este anseia sempre mais por

interioridade, até que ele, por meio do investigar da razão, mergulha no invisível e

incompreensível e aí vê Deus. Uma vez que o buscado transcende todo saber, nisso jaz

o verdadeiro saber do buscado, nisso consiste o ver: no não ver (en touto to idein en to

me idein), em ser compreendido pelo incompreensível, como se é envolvido por certa

escuridão (De Beatitudinis, PG 44, 377 A) (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 89).

Na Idade Média, Boaventura ainda faria eco a este pensamento no sétimo

degrau do Itinerarium Mentis in Deum, quando acenava e indica, com palavras de

paradoxo, que o máximo da iluminação é escuridão.

Aprender a pensar inclui tanto a solidão do pensar por si mesmo no solilóquio,

que é um colóquio da alma consigo mesma, quanto a comunhão do pensar no diálogo

com os outros, especialmente com aqueles que são chamados de “os pensadores”. Ao

usarmos a palavra “pensamento”, aqui, estamos assumindo o pensamento em sentido

forte, como sendo o pensamento dos pensadores, que quer ser não um simples

“cogitare” (cogitar: representar), mas um verdadeiro e próprio “intelligere” (um inteligir,

no sentido de ler e recolher o que está latente, entre, de permeio e no permeio do que

está sendo, do real).

Queremos, pois, aprender a pensar com o pensamento dos pensadores, isto é,

com o que eles pensaram. Aprender a pensar com o pensamento de um pensador

significa aprender a explicar este pensamento e a explicar-se com este pensamento.

Mas, o que é explicar um pensamento? “Explicar um pensamento é deixar surgir a

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profundeza de suas implicações com o real, é fazer emergir a vitalidade de sua aplicação

às realizações, e assumir o vigor de suas complicações com a realidade”114.

Entretanto, aprender a pensar não é somente explicar um pensamento. É,

outrossim, explicar-se com o pensamento dos pensadores. Isto quer dizer: aprendemos

a pensar, pensando com o pensamento deles, com o pensado e com o não pensado,

com o dito e o não dito deste pensamento. Aprendemos a pensar lendo os seus textos,

isto é, colhendo tanto o que está vigente, no sentido de estar presente e patente nas

linhas das suas escrituras, quanto o que está vigente, no sentido de estar ausente, mas

latente nas entrelinhas. Aprendemos a pensar, não somente definindo as posições e as

oposições de pensamento dos pensadores e as nossas, mas também e sobretudo

questionando as suposições tanto das posições e oposições do pensamento deles,

quanto das nossas. É que não estudamos os textos dos pensadores para repetir os

problemas que eles colocaram ou as respostas que eles deram, nem para apontar erros

e refuta-los. Estudamos os textos dos pensadores para pensar, com o que eles

pensaram, novos caminhos de pensamento. Caminhos que só podem ser os nossos.

Caminhos que nos são destinados pelo mistério de ser no tempo de nossa existência.

Caminhos em que somos enviados, destinados, a partir de nossa época. Pensando com

o pensamento dos pensadores, somos alçados à contemporaneidade do pensamento e

colocados no diálogo histórico da filosofia, em que somos, ao mesmo tempo, antigos,

medievais e modernos, contemporâneos e extemporâneos. “Só assim é que nos

sentiremos conosco em todo esforço que fizermos de estar com eles”115.

Explicar um pensamento e explicar-se com um pensamento se dá no empenho

de uma leitura libertadora e criativa dos textos da tradição. Libertadora, pois nos liberta

a capacidade de pensar. Criativa, pois nos permite, no hoje, entrever possibilidades de

futuro, que o passado mantém reservadas e poupadas, a saber, a plenitude do querer e

do poder-ser, que a tradição pode liberar, no diálogo, que se dá desde o nosso hoje com

a atualidade sempre contemporânea do pensamento do passado, isto é, com o que foi

114 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 14. 115 Leão, E. C. Filosofia Medieval. In: “Scintilla. Revista de Filosofia e Mística Medieval” (FAE, Instituto São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval”. Vol. 9, nº 2, Jul./Dez. 2012, p. 152.

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e que, tendo sido, se recolheu, e, neste recolhimento continua vigendo em nosso

presente, e podendo nos preceder em direção ao nosso futuro.

A “coisa mesma” a se pensar, em todo o empenho de pensamento, nunca está

patente no dito, mas sempre está vigente no não dito e é o que provoca todo o dizer

dos pensadores. É o mesmo que provoca o dizer dos poetas. É a realidade mesma,

comum e ordinária transparecendo numa luz maravilhosa e extraordinária. Tomás de

Aquino chamava-a de o “mirandum”: aquilo que é digno de se admirar, de se maravilhar.

Ele disse, certa vez, que “o filósofo se parece com o poeta porque ambos se ocupam

com o maravilhoso (mirandum) ”. Já Platão e Aristóteles diziam que a filosofia surge e

se rege e se consuma a partir do “pathos” da admiração (thaumatzo). É o toque furtivo

do mistério de ser como o “mirandum”, o maravilhoso. A “coisa mesma”, portanto, é o

maravilhoso, a paradoxia e a taumaturgia da própria realidade em fuga, se doando e se

retirando, nas realizações do real. Por isso, é o inominável. Dele podemos falar, mas não

podemos exprimi-la. Ela é o não dito e o não dizível. Todo falar dela e todo o dizer a

partir em referência a ela é apenas um acenar.

Um pseudônimo de Kierkegaard, Virgilius Haufniensis, autor de “O conceito de

angústia” anota: “não é meu desejo descobrir novidades mas cultivar a alegria, o bem

amado esforço de refletir sobre o que não parece senão imensamente simples”.

Aqui e agora concentramo-nos, pois, no pensamento de Eckhart. Em certo

sentido, bem amplo, pensador é todo o homem. Com efeito, é constitutivo do humano

o pensar. Num sentido estrito, porém, pensador é aquele homem que assume este ser

pensador, constitutivo de todo o homem, numa radicalidade tal que dele se pode dizer

o seguinte: que nasceu, pensou e morreu. Eckhart é um destes pensadores. Um destes

homens cuja grandeza consiste pura e simplesmente em ter nascido, pensado e

morrido. Vamos tentar, pois, explicar o pensamento de Eckhart, isto é, nos dispor a nos

explicarmos com o pensamento dele, percebendo como é que este pensamento esteve

implicado com o real, aplicado às realizações, complicado com a realidade. Real,

realizações e realidade, porém, são momentos do advento do mistério de ser como

tempo nos envios da história.

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