para antes que a gente vire pó

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    A gente mata um homem, a gente um assassino.

    A gente mata milhes de homens, a gente um conquistador.

    A gente mata a todos, a gente um Deus.

    J. Rostand

    ...No foi do dia para a noite que a espcie chegou a essenvel bestial e dramtico de organizao, a esse grau de me-diocridade crepuscular e a essa condio indecente de sofri-mento. Fez-se a arma, a roupa, o sapato, o chapu, o relgio,

    as tesouras, os culos, o remdio, a comida em caixas, as malas,os semforos, os meios de transporte para poupar as pernas eos tendes. Fez-se a casa e depois fizeram com que ela subissena vertical, e a precisou inventar as escadas, as janelas, oscaibros, os telhados. Os violinos, as cordas, as almas. Vieramas xcaras e os lquidos feitos de razes e de sementes, o acare alguns animais embalsamados para o acompanhamento.A escrita, o livro, o taxi, o relgio e as horas, o salto alto e as

    meias-liga para criar tambm a iluso. Fez-se o bero e a lpi-de para o cadver, a bicicleta, a agulha para furar a lngua e asorelhas. Eliminou-se o braquiossauro, surgiu o vagabundodogmtico. Fez-se a gravata, o pente, a umbrela. E fez-se o frioe o fogo que precisou ser condensado e domado. Surgiram osidiomas e as ruas, as perptuas ruminaes, as moedas e osbancos para armazenar o dinheiro. Portsoken Street diz a placapregada no cimento. Band-aid para os calos e capas para a chu-va que bate intempestiva na vidraa. O vidro, o cigarro che-gando aos lbios, um vu sobre a cabea cheia de buracos.Tattoo, a marca de Caim! A mo administrando tudo e nos seusdedos se introduziram anis de diamantes. A chave presa auma corrente, o pescoo cheio de penduricalhos sacrossantos.A fala, a letra, a pizza exposta no mesmo andar do campanrio.122. Fez-se os nmeros, deu-se nome aos porcos e placas aostaxis. Pedestrians look both ways em letras brancas e fundo ver-melho. Um pingo fura a vidraa e transborda o capuchino. Um

    abatjour e o tubo de alumnio que o suporta. O salo gren!

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    Desvendou-se o pulmo e a pneumonia. As horas, o dedo in-dicador em riste e o riso de dois bbados. Look rigth escrito noconcreto do piso. Look. Os olhos e os colrios para combater as

    poeiras glaciais, as coxas com suas varizes para correr da chu-va e para proteger a vulva. As gotas descendo pela careca econtraindo a massa no interior do crnio e oJuzo Final estam-pado na cara de um salsicheiro. O brevirio de errncia lam-buzado de vinho, Caim descendo as escadarias da toalete paraladies. O farol e sua linguagem, as palavras falsificadas, o vo-lante do lado oposto ao do corao. A disritmia, a pequenez ea mania de grandeza. E fez-se a noz-vmica e a anestesia.

    A seringa a ampola e a veia. Um, dois trs, quatro e pronto:decolamos no nada. O salto para o nada que o sono multipli-cado por um bilho. O Eu, a Personalidade, a Alma, oSer, o Corpo, as Crenas, as Prepotncias nada podecompetir com uma simples ampola de trs centmetros, capa-cidade demonaca do homem!!! E o veculo mais potente detodos a maca, com a leveza de suas rodas deslizando noconcreto de nuvens... Vertigem pag! O encanto chacinado!

    Uma buzina. Londres arcaica efashion que se espreme sobre simesma. Fez-se tambm o ziguezague de olhos e de raas. Nomapa a conexo entre os vultos que se encontram para rir, rirde que caveira estressada? Caim e os meteoritos. O palet indosozinho para o escritrio, no bolso de dentro a poo pessoalde veneno e os cnones da putaria conjuntural. Foi-se a chuva,fez-se o sol. Taxi! Palavra enigmtica. Voltou a chuva! Ondeest o escafandro? A nuca encostada na cripta. As pilhas jesto pela metade. Fez-se a esquina e o cruzamento, os pacotespara transportar o po miservel de todos os dias. Next please!A voz da moa do caf que de outra tribo. Tacapes! Setasenvenenadas! Os clios de duas polegadas. Um dia, certamen-te, ela trocar o next pelo last. Um japons pisando numa poade gua, cada um tem a sua tsunami. Os desnveis existemapesar de ter-se feito os centmetros e a boca de cristal. Next

    please! O next sou eu, minha cmera digital e minha segundacaneca de caf. Next! Next please! Next um caralho! Amanh

    ser last! No meio de todos esses objetos, essas coisas, esses

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    instrumentos, esses signos, esses significantes, essas senhas,ilicitudes, marcas e libis, o sistema, fantasma e onipresente queno um ser com dna, se parece mais a uma serpente de ao,

    sem ncleo cercada de serviais e que vai se esticando, estican-do, esticando. Os lacios em sua auto-ignorncia morrem epassam enquanto o sistema, com sua vastido e com um discolunar sobre a cabea vai se desenvolvendo como uma doenaprogressiva, uma verruga, um tumor no interior da alma. Soesses imensos blocos de concreto cheios de bandeiras, brasese de cdigos, cada vez mais altos, densos e sem identidade.Onde a entrada moo? Quem esteve aqui? Quem fez isto ou

    aquilo? A ordem veio de onde? Tudo h dois mil anos atrs?No h registro do essencial, s a viso pueril fica nos arquivosde ferro ou nos discos rgidos para dar o que fazer aos profes-sores de histria e de humanidades. As catedrais, as mas-morras, o cheiro e os pingentes da camareira tcheca, os bancos,a filosofia e a ditadura dos mercados, a terra inteira sendodevorada por seus vermes. Um mundo de pancrcios! A m-sica do congo fazendo vibrar minhas clulas tupinambs. Aqui

    nos cus de Londres um trnsito intenso de avies que vopara onde? D para adivinhar o que cada passageiro leva namala, nos bolsos e no crebro e a quantas anda sua ansiedade,o que far em seu destino, como e quando voltar. E depoisdesses sero outros caixeiros-viajantes como eles, com as mes-mas coisas nos bolsos, nas malas e nos crebros. H uma in-dstria imensa de avies, de malas, de fobias e de pessoasfuncionando a todo vapor, e tudo para seguir girando na ce-gueira dessa urucubaca e ao redor do essencial, sem a coragemradical para o pouso definitivo. Hare hare, krisna hare!!! Lvo sete ou oito sujeitos quase hermafroditas vestidos de rosae saltitantes, rebolando e tocando sininhos por Piccadilly...Krisna, Krisna, Krisna hare. Mas, cad o Krisna? Atravessam aavenida pacificamente sabendo que mais l na frente vo en-contrar-se com a faco dos da Jihad Islmica , e que mais nafrente ainda se juntaro aos da Opus Dei, e mais adiante aindaaos Filhos de Jeov, aos maronitas, aos do Reino dos ltimos

    dias, aos mrmons, aos Filhos de Maria e com outros tambm

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    temerosos do demnio e todos empenhados em heroicizar-semutuamente. Aleluia! Aleluia! que l vem agora uma manifes-tao dos monarquistas, outra dos democratas, outra dos re-

    publicanos, outra dos socialistas, outra dos ditadores esclare-cidos, outra dos dapornocracia e vrias dos pseudo libertriosde todo o orbe. No imaginam que de um janelo de mrmoreda City um banqueiro sbrio e entediado assiste a tudo, e que sele sabe at onde e at quando essa palhaada democrtica &holstica toda deve e pode durar... A rua ainda est l. O pare-do, o raio, a mulher dbia que se agarra ao guarda-chuva. Next

    please! Os badalos de um sino, gente de todo o zodaco, o rel-

    gio, a hora, um annimo que menciona a meretriz da Babilniae a errncia intemporal. Algum executa no violinoMeditao,da pera Thais enquanto um Caim superstar cobre a cabeacom um chapu de colono escocs e se embrenha no meio datempestade resmungando uma frase longa e incompreensvel.Os vages vo cambaleando do aeroporto em direo a estaode Earls Court. Londres parece estar mais clara e mais radiantedo que nunca. Checo mentalmente meus papis, meu hlito, o

    passaporte, a grana. Tudo est em seu devido lugar. O homemda frente vai lendo uma pequena coletnea de Tales de Mileto.Comeo por lembrar a mim mesmo que j no sou um adoles-cente e que apesar dos msculos, dos ossos, do crebro e dapica estarem intactos, posso pifar de um momento para outro

    j que algum dos tantos males incurveis pode muito bem estarsendo gerado no segredo de minhas entranhas. Para morrerbasta estar vivo resmungavam os velhotes hipocondracos deminha infncia. Mas acredito ou me iludo que minha sadeest intacta, apenas meu corao dispara quando exagero nacafena (disse cafena e no cocana), vai a mil por segundo, dsaltos e rodopios, levando-me a pensar como Salomo queaquele que confia em seu prprio corao uma besta. Tambm meu

    brao direito, dependendo do enredo, fica incomodo, princi-palmente quando vou alm do tempo no violino ou quandoescrevo por longo tempo. So os malditos tendes disse-me umortopedista de fundo de quintal. No seriam as horas de voo?

    Estive duas vezes em seu consultrio e ele repetiu as mesmas

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    frases sem olhar-me nos olhos. Cheguei a indagar-me se essasbolotas gelatinosas que levamos implantadas no crnio noforam colocadas a apenas para decorao ou, na melhor das

    hipteses, com a finalidade de focar apenas dos joelhos parabaixo de nossos interlocutores. Por qu no, no ?

    Ah, males do violino! Coisas de msicos! De escrives! Oude tenistas, ou de lavadeiras, ou de motoristas de caminho. Atos punheteiros tm tendinites, ouvi sua assistente na sala ao ladocochichando para outra mulher. As mulheres adoram imaginarum macho tipo orangotango esfolando o ganso em sua solidourbana. No porque se excitem com isso, mas por uma espcie

    de vingana. Quanto mais o macho for perverso e ridicularizadomaior a iluso de igualar-se a ele em direitos e em idiotices.Alongamentos, bolsa de gelo intercalada com bolsa de guaquente, suco de limo como anti-inflamatrio, benzeduras,rezas, hormnios etc., etc. Quando se morria com cinquentaanos no se chegava a conhecer esses incmodos. Morria-seintacto! Agora as coisas so diferentes, a longevidade umpresente de grego s manadas, uma cortesia da indstria de

    fraldas e de medicamentos ao rebanho fbico e hipocondraco...Chegar o dia em que o mundo sentir saudades e nostalgiadas fatais picadas de cobras e de escorpies assim como dovelho infarto, aquele que chegava fulminante e retirava o sujeitodo cenrio ainda cheio de projetos e de dignidade. O risvel que devemos essa sobrevida incmoda muito mais ao sabo, penicilina, ao Sal de frutas, ao leo de rcino e at mesmo aomertiolate de que medicina e filosofia.

    J estive neste pas e nesta cidade outras vezes, semprecomo um aliengena ou mesmo como um pria e at possvelque as penses mais vagabundas daqui ainda tenham em seuscadernos a memria de meu nome. Reconheo que a monarquiasempre fez mal para minhas entranhas. At hoje minhas tripasparecem no lidar bem com essa anomalia. Uma coroa, seja debrilhantes, de louros ou de espinhos sempre me alerta para afarsa. Na verdade, nunca fiz questo de incluir esse pas nasminhas rotas. Sempre desviei desse porto como quem desvia

    de um iceberg traioeiro e fatal. Sempre caguei para os Beatles

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    e para a Rainha, mas no nego a simpatia por mister Bin, pelosvikings, pelos piratas e muito mais ainda por Shakespeare,esse louco que colocou at sua prpria existncia em cheque.

    Existiu? No existiu? Trata-se de um pseudnimo? Questionamos vagabundos das letras. Claro que alm deles, a existncia deLord Byron tambm deu a este pas uma luz especial. Seu textoblasfemo sobre Caim fez parte do material que derreti paracompor este trabalho. A primeira vez que tentei aportar poraqui, tempos em que tudo era festa, at mesmo ser preso, acabeina priso de um desses aeroportos. Dois trs dias ali com aescria planetria e depois o repatriamento. Motivo: sempre o

    mesmo: nada de dinheiro nos bolsos e um visto do Marrocosainda fresco no passaporte. Marrocos! Naquela poca diziam era comum se transportar haxixe de Tanger para Amsterdam,via Dover e em potes de marmelada. E eu com isso? Nuncaprecisei de uma mentira irrefutvel! Os guardas me apalparam,reviraram meus cacarecos ligaram para a Rainha e interditaramminha agenda sonamblica. Do Principio do prazer bruscamentepara o Principio da realidade! As fronteiras de fora confrontadas

    com as fronteiras de dentro. Entre mim e o que realmente sou diria Fernando Pessoa apareceu a escurido. O passaporte!No, no era uma inveno antiga o tal passaporte. Foi depoisda denominada Segunda Grande Guerra que as policias e as elitesmapearam com mais rigor as estradas do mundo, minaram asbeiradas de todos os abismos e marcaram o gado. Em minhasgavetas tenho uns sete ou oito, todos abarrotados de carimbos,selos e repatriamentos. Estrangeiro! Cigano! Forasteiro! Umpasso a mais e epa! Pare a! No se mexa! Policia! Mos nanuca!!! Seus documentos! Tudo documentado. Do nascimento morte. Aqui o bero, acol a lpide. Um mundo de misriasjurdicas e de larvas burocrticas!

    H alguns anos havia jurado em nome do olhar de ternurade meu cachorro que ao completar sessenta anos inventaria,por minha prpria conta, uma espcie de ano sabtico e deaposentadoria eterna. Mudaria de nome, apagaria todos osvestgios de minha histria, queimaria minha biblioteca e

    me mandaria definitivamente pelos estrades do mundo

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    numa tentativa de esconjurar o mal. Chega! Dizia. Essasociedade manicmio, desprovida de propsito e vazia de sentido(como diria Schopenhauer) j no mais suportvel. Preciso

    cair fora, poupar-me das horas e dos urros dessa legio depolticos desgraados, borrar para sempre de meu cotidiano aideia senil de cidadania. Nunca mais ouvir falar em religio,em ptria, em trabalho e em responsabilidades. As entranhasdo inferno deveriam ser mais aprazveis que o drama desseplaneta de mmias onde a mediocridade, os livros sagrados, apolticagem e principalmente lendas como a de Caim vinhamtranstornando tudo e todos durante sculos. Desde longa data

    sonhava em dizer adeus a esse mundo simplrio e contaminadopela suposta inveja e pelo hipottico e criminoso legado de Caim,daquele filho bastardo de Ado e Eva que, num momento deverdade escarnecida e de lucidez extremada, teria eliminado1/5 da humanidade com uma nica bordoada. Se retardei meuprojeto e se tive que mutil-lo foi porque no meio do caminhohaviam as correntes invisveis, as vboras furiosas, as cercas eos arames farpados. Como salt-los sem perecer?

    Cheguei aqui um dia depois do prncipe descabaaroficialmente a condessa. Alm das manchetes, de uns babacase de alguns estrangeiros que vieram especialmente para asbodas e para as cerimnias , no se fala mais sobre o assunto.Que uma estupidez todo mundo sabe, mas se no fossemrituais inslitos como esse, talvez o Reino Unido no tivessese mantido at hoje na cspide dos imprios. Claro que osmsseis e as toneladas de diamantes rapinados da fricaajudam, e muito. Mesmo assim, apenas Londres. Grandiosa,imponente e claro, me de todos os imprios. Os indianos, osargentinos e os aborgenes australianos que o digam. Paris,imbatvel no campo das letras, dos livros, das teses e de outrasmasturbaes intelectivas, se comparada Londres, pareceriauma aldeia de poetas e de bebedores de absinto... Os indianos,os chineses, africanos negros, espanhis, italianos e os povosdoMagreb etc., marcam presena em tudo por aqui, claro queno mundo underground e sempre sob o mau olhado dos lordes.

    Por incrvel que parea, me dou bem com essa gente pag,

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    aptrida e filhos legtimos de Caim que no tm nem umapedra onde descansar o pescoo e nem papel para limpar-se.Para esquentar as canelas vim caminhando de Padingtton at

    aqui no Chinatown. Agora, um caf em frente aoApollo Theatre.L longe uma cpula bizantina. De vez em quando uma sirenecausando sobressalto a todos os bandidos das redondezas.Saber que h cmeras por todos os lados no deve ser muitoagradvel, nem mesmo para o mais servil e para o maisestpido dos patriotas. Os taxis lembram os diablos rojos doPanam. Quem trocar as batatas fritas por uma salada gregapode at comer de vez em quando nas biroscas Fish&chips sem

    ter um infarto e sem sair daqui pesando meia tonelada. Osturistas passam clicando o celular e a galope numa espcie detranse. O que ser que procuram realmente? Eu, na verdade,estou em busca apenas de uma toalete. Aqueles que gostam deconhecer as cidades a p, sair de casa pela manh e s voltara noite, bom j nos primeiros dias ir mapeando as toaletesdisponveis nos trajetos de vagabundagem e de errncia. Apesarde Londres ser muito bem servida de mijatrios, dependendo

    de onde voc est, da temperatura (e da idade que voc tem) orisco de mijar nas calas sempre existe. A toalete daArt Galery,por estar nas proximidades de Piccadilly etc uma das minhaspreferidas e das de mais fcil acesso por aqui. Entra-se nosalo principal, dobra-se direita em direo ao caf, desce-sepor uma escada preta de granito, dobra-se agora esquerda,desce-se uns degraus e pronto. Ufa! Nada melhor que umaboa mijada! Muito boa tambm a do British museum, ali ondeo velho Marx escreveu praticamente toda sua obra. Algumasestaes de metr tm as suas, oMuseu Sherlock Holmes tambm,modesta mas util. As do Strabuch caftm me quebrado o galhovrias vezes. A do Mac Donald de Paddington foi de mximaimportncia depois de ter ingerido um caf americano queaqui mais ou menos um litro. Quem j viveu em outrasgrandes cidades percebe logo que os ingleses deram umaateno especial a essa necessidade ignbil e sucateada do serhumano. Fico sempre tentando entender como a humanidade

    adaptou-se to facilmente a esse ridculo papel de alambique e

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    a esse destino mrbido e vagabundo de subdesenvolvimento...Frequentemente h indicaes nas ruas tipo: toaletes a 100metros. Toalete no Hyde Park, no andar de cima etc. A de um

    restaurante asitico perto do cemitrio Thompson s se podeusar se for tambm comer ou beber alguma coisa. Beber? Oraminha senhora? Estou a fim de fazer exatamente o contrrio!!!A do Restaurante Mr. WU no Chinatown, que fica no andar decima bom us-la antes de sair, mas sempre depois de j tercomido. No Covent Garden , h vrias. Em frente a The RoyalCourts of Justice existem duas subterrneas, uma para ladiese outra paragentlemen. A nica at agora que tive que pagar

    (50pounds) vejam que descaramento, foi a que fica na CatedralSaint Paul, onde uma placa indica que ela e outros locaissagrados dali so administrados por uma tal de PaternosterLodge. Ora, Pater nostre! E no rabo, no vai nada???

    L vem o bus 23. nesse que vou sem ter a mnima ideiapara onde. As manchetes dos jornais so unnimes: apagaramo Bin Laden. Bin Laden, o irmo legtimo de Caim... Todo omundo imperialista est se iludindo de que, daqui para diante,

    ser possvel dormir em paz... V iluso na terra da Pop-art.Caim! Vim a esta cidade com o pretexto de garimpar suasimpresses digitais, algumas de suas imagens e de concluir estetrabalho sobre esse personagem em suas sagas mil e em suainarredvel caminhada1. E digo pretexto, porque evidente quepoderia ter concludo essa estria e essa memria ultrajada emqualquer lugar, em Planaltina de Gois, na garagem de casa,na privada, na Feira do rolo ou mesmo entre um semforo eoutro... Longe de ser opecado capital ou a entidade terrificante queos pastores, os rabinos, os padres, os filsofos, os empresriose executivos bem sucedidos e outros moralistas costumamapregoar de dentro de suas sotainas, a inveja (cujo patrono seriaCaim) pode ser nosso mais puro e mais autntico termmetrode alerta para com as malandragens institudas, para com a

    1 Ao saberem que estava escrevendo sobre Caim, vrias pessoas me alertaram que umportugus, um tal de Saramago acabara de lanar um livro sobre o mesmo assunto. Melhor retruquei-lhes. Ao invs de um abacaxi, teremos dois. E depois, aqui entre ns, nada mais desprezvel, cretina e cainesca de que uma comparao ou uma disputa intelectual.

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    covardia moral e para com as ignominias sociais. (Diga-mea quem invejas que saberei o nome de mais um ladro eimpostor!). Da o reconhecimento mesmo tardio de que

    Caim foi nosso primeiro heri iconoclasta, nosso primeirohomem de exceo, nosso tit e justiceiro pr-histrico, o maismacho dos homens e o primeiro sujeito a dizer audazmente umno, tanto a Deus como a toda imbecilidade e a toda neuroseviciada e repetitiva que viria atormentar a famlia nuclear pelossculos afora. A proposio socrtica do conhece-te a timesmogravada numa parede do templo de Delos, no nada dianteda pergunta de Caim: por que esse crpula e no eu?. 2Acusado

    secularmente de ser a bile negra, de cometer o primeiro crimeda espcie, de ter tentado sabotar o projeto divino e de ser opatrono dos ressentidos e dos invejosos, Caim, o protagonistaprincipal dessa anedota infame, foi apenas o bode expiatriode uma ideao educativa falida, bem como a primeiravtima tanto da soberba divina como da baixeza familiar, daignorncia dos pais e de um moralismo putrefato, abstrato eesdrxulo. Moralismo que, alis, vem at hoje engendrando amatriz do cidado perdulrio, do sujeito bonzinho e piedoso,

    do burocrata srdido e mascarado, do gestor mentiroso ehienizado,3 do vivaldino poltico e enfim, do bundo vulgare atual, conhecido e respeitado por quase todos, aquele miniestelionatrio que, ainda escravo da Puta da Babilnia e emfranca degenerescncia se esfora para ocultar o quo insossa a vida e para dar a impresso de ser uma alma voltada para o cu,

    para o social e para a paz, mas que, na verdade, conserva viva e latenteem sua memria apenas a nostalgia da trapaa e do inferno.4

    2 Por que esse palhao com cara de crocodilo, e no eu? Por que essa megera ignorante,esse puxa-saco mentiroso, essa hiena descadeirada, esse estelionatrio horripilante, esseestpido de nvel superior e no eu? Por que esses trogloditas, essa quadrilha de farsantes,esses canastres desmiolados, esses burros de gravata, essas serpentes do entardecer, essespulhas de porta de cadeia e de fundos de igreja e no eu?3 Quem teve intimidade com o servio pblico concorda plenamente com Paul Masson:Os funcionrios so como os livros de bibliotecas: os que esto em lugares mais altos soos que menos prestam.4 Ver Ernest de Gengenbach,Judas ou o vampiro surrealista, & etc Editora, p. 33, Lisboa1970.

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    Caim conduzindo Abel para a morte / James Tissot

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    Caim mata Abel / pintura do sculo XV

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    Caim e Abel /John Cheere

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