pinter, harold. vozes de família

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  • 8/22/2019 PINTER, Harold. Vozes de famlia

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    Vozes de FamliaFamily Voices

    Harold Pinter

    Traduo Alexandre Tenrio

    1985, revista em Abril de 2003

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    Personagens

    VOZ 1, um rapaz

    VOZ 2, uma mulher

    VOZ 3, um homem

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    Vozes de Famlia estreou no rdio, em transmisses da BBC nos dias 3 e22 de Janeiro de 1981 com o seguinte elenco:

    VOZ 1 Michal KitchenVOZ 2 Peggy AshcroftVOZ 3 Mark Dignam

    Direo de Peter Hall

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    Posteriormente Vozes de Famliaestreou no palco do National Theatre,em Londres em 13 de Fevereiro de 1981. Com o mesmo elenco e sob a

    mesma direo. O cenrio de John Bury

    VOZ 1Eu tenho me de divertido muito.

    O tempo s vezes bom, s vezes ruim, mas surpreendentemente quente,afinal, quase o tempo todo.

    Espero que voc esteja bem, e no to fraca quanto da ltima vez que eu tevi.

    No, voc no estava fraca, voc estava perfeitamente bem, sua aparncia que era de fraca.

    Voc sente a minha falta?

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    Eu tenho me divertido muito e espero que goste de saber disso.

    Neste exato momento estou completamente bbado.

    Tomei umas cinco cervejas no pub da rua de cima, e depois umas trs dosesde usque e vim literalmente rolando pra casa.

    Quando digo casa, posso afirmar que o meu quarto extremamenteagradvel. E o banheiro tambm. Extremamente agradvel. Tomo banhosverdadeiramente agradveis neste banheiro. E as outras pessoas da casa

    tambm. Elas se deitam nuas na banheira e tomam banhos agradveismesmo. As pessoas da casa no se cansam de falar por a sobre a magnficabanheira e o magnfico banheiro que compartilhamos, no se cansam defalar, literalmente pra todo mundo que encontram sobre os adorveisbanhos que se tomam aqui, de certa forma inigualveis, pra ser sincero.

    Isto, deve-se muito senhoria, uma tal de Sra Withers, uma pessoarealmente encantadora, de impecveis credenciais.

    Quando disse que estava bbado, eu estava naturalmente brincando.

    Aposto como voc sorriu.

    Me?

    Entendeu a brincadeira? Voc sabe que eu nunca ponho nenhuma gota delcool na boca.

    Eu gosto de estar nessa cidade enorme. Absolutamente sozinho. Esperofazer amigos num futuro no muito distante.

    Espero fazer amigas tambm.

    Espero encontrar uma garota bem legal. E assim que eu a encontrar, voulev-la em casa pra conhecer minha me.

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    Gosto de caminhar nessa cidade enorme, absolutamente sozinho. engraado no conhecer ningum. Quando cruzo as pessoas na rua, elasno sabem que eu no conheo nenhuma delas. Elas conhecem outraspessoas e ainda outras pessoas as conhecem, ento elas naturalmentepensam que mesmo que eu no as conhea, que conheo outras pessoas.Ento elas me olham, tentam captar meu olhar, ficam esperando que eufale. Mas como eu no as conheo, eu no falo. Nem nunca sinto a maisleve vontade de falar.

    Sabe, me, eu no me sinto s, porque tudo que me aconteceu est aqui

    comigo, me faz companhia; minha infncia, por exemplo, atravs da qualvoc minha me, e ele, meu pai, me guiaram.

    Tenho me dado muito bem com a senhoria, a Sra Withers. Ela diz que eusou seu nico consolo. Bebemos sempre alguma coisa juntos na hora doalmoo, e depois na hora do ch, e noite eu sempre a acompanho em maisuns drinques no pub da rua de cima.

    Ela serviu na fora area feminina, durante a segunda guerra. No enche osaco, amizade, o que ela vive dizendo. Quer ver ele ficar rindo como umporco na merda? s chamar ele de comandante.

    Voc ia gostar muito dela, me.

    Acho que est amanhecendo. Posso v-lo se erguendo. Um outro dia. Umnovo e bem vindo dia. E assim termino essa carta pra voc, minha queridame, com todo meu amor.

    VOZ 2Querido. Onde voc est? As flores aqui esto lindas. Cheio de botes.Voc que gostava tanto. Por que voc no escreve nunca?

    Penso em voc sem saber como voc est. Ser que voc pensa em mim?Sua me? s vezes? Alguma vez?

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    Voc mudou de endereo?

    Ser que fez alguma amizade? Algum bom rapaz? Ou alguma boa moa?

    H tantos bons rapazes e boas moas por a. Mas por favor no v semisturar com outro tipo de gente. Gente que pode te dar problema. E vocodiaria. Voc que to escrupuloso, to particular.

    s vezes fico pensando em como eu gostaria de viver feliz pra sempre comvoc e sua jovem esposa. Ela seria uma esposa to boa para voc. E eu,

    uma vez ou outra, jantaria com vocs. Um jantar que eu mesma prepare, jque vo estar os dois, com certeza, to cansados depois de um longo dia detrabalho.

    s vezes saio pra caminhar pelas trilhas do morro e penso em voc. Pensona poca em que voc caminhava pelas trilhas do morro, com seu pai,sanduches de queijo. No era? Vocs sentavam no topo da colina e comiamos sanduches. Lembra da nossa brincadeira? Mmnham, mmnham,

    mmnham! Foi uma caminhada danada, seu pai dizia. Foi um mmnham,mmnham, mmnham danado, eu dizia. E vocs dois riam.

    Querido, eu sinto tanto a tua falta. Dei a luz a voc. Onde voc est?

    Escrevi pra voc h trs meses, contando sobre a morte de seu pai. Vocrecebeu minha carta?

    VOZ 1Eu no tenho absoluta certeza se gosto das pessoas desta casa, alm da SraWithers e de sua filha Jane. Jane vai ao colgio e se aplica nos deveres decasa.

    Vive enfiada nos livros. Acho isso impressionante. Isso uma coisa que

    no se v mais hoje em dia. Mas no tenho a menor certeza sobre as outraspessoas da casa.

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    Um um velho.

    Esse que velho se recolhe cedo. Ele careca.

    A outra uma mulher que usa vestidos vermelhos.

    O outro um outro homem.

    Ele um homem grande. Bem maior que o outro. Seu cabelo preto.Sobrancelhas pretas e as mos cobertas de plos pretos.

    Pergunto Sra Withers sobre essas pessoas mas ela s fala de seus dias deguerra na fora area feminina.

    Decidi que Jane no filha da Sra Withers, neta.. A Sra Withers temsetenta anos, Jane quinze. Estou convencido que esta a verdade.

    noite ouo sussurros que vm dos outros quartos e no consigo entender.

    Ouo pessoas nas escadas, mas no me atrevo a sair para investigar.

    VOZ 2Quanto mais teu pai se aproximava da morte, mais ele falava em voc, comternura e perplexidade. Eu o confortava com a idia que voc tinha sado decasa pra que um dia ele pudesse se orgulhar de voc. Acho que consegui.Um de seus ltimos pedidos foi: D-lhe um tapinha nas costas por mim.D-lhe um tapinha nas costas por mim..

    VOZ 1Acabei de fazer uma descoberta extraordinria. O nome do velho carecaque se recolhe cedo, Withers. Benjamin Withers. Ou trata-se de umamera coincidncia, ou ele vem a ser algum parente.

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    Pedi a Sra Withers que me contasse a verdade sobre isso. Ela se serviu deuma dose de gim e ficou olhando pro copo antes de beber. Depois ela olhoupra mim e disse: Voc meu animalzinho de estimao. Sempre quis terum animalzinho de estimao mas nunca tive, agora eu tenho um.

    s vezes ela me faz carinho. Como se fosse minha me.

    Mas no esqueci que tenho me e que voc a minha me.

    VOZ 2

    s vezes me pergunto se voc ainda lembra que tem me.

    VOZ 1Uma coisa aconteceu. A mulher que usa vestidos vermelhos, me convidou aentrar em seu quarto para tomar um ch. Entrei em seu quarto. Era bemmaior do que eu supunha, com sofs e cortinas e vus e panos e tapetes e

    paredes forradas com tecido macio, azul escuro. Jane, sentada num sof,fazia seu dever de casa, parecia. Convidaram-me a sentar neste mesmosof. O ch j estava pronto e permanecia pronto num aparelho deporcelana oriental de suprema elegncia. Deram-me uma xcara. Outra praJane que me sorriu. Eu no me apresentei, disse a mulher, meu nome Lady Withers. Jane sorvia o seu ch com as pernas enroscadas em cima dosof. Seus dedos dos ps calados em meias encostaram na minha coxa.No era o maior sof do mundo. Lady Withers sentava-se a nossa frente,num sof substancialmente maior. Seu vestido, eu decidi, no era vermelho,era rosa. Jane estava de verde, menos os dedos dos ps, cobertos de preto.Lady Withers me perguntou sobre voc, me. Ela me perguntou sobreminha me. Eu disse com convico absoluta que voc era a melhor me domundo. Ela pediu que eu a chamasse de Lally. E que chamasse Jane deJane. Eu disse que eu j chamava Jane de Jane. Jane me deu um brioche.Acho que era um brioche. Lady Withers deu uma mordida em seu brioche.

    Jane deu uma mordida em seu brioche, os dedos dos ps agora no meucolo. Lady Withers parecia estar se deliciando com seu brioche, em seu

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    sof. Ela terminava um e pegava outro. Nunca tinha visto tantos brioches.Numa olhada percebi que haviam travessas cheias espalhadas pelo quarto.Lady Withers comeu um segundo brioche com total naturalidade e emseguida outro. Jane ao contrrio, ruminava o seu como se estivesse quasesonhando e quando um farelo ficava no seu lbio de cima ela o removiacom a lngua, sem pressa. Pra mim era impossvel conciliar isso com aagitao dos seus dedos dos ps. Sua boca, comendo, era calma,controlada. seus dedos dos ps, no comendo, agitados, altamentenervosos, at histricos, talvez. Meu brioche ficou duro como uma pedra.Fui dar uma mordida e ele escapuliu da minha boca, quicou no meu colo.Jane o agarrou com os ps. Isso acalmou seus dedos. Ela brincava com o

    brioche entre os dedos dos ps com uma certa habilidade. A me lembreique num de nossos primeiros encontros ela me disse que queria seracrobata.

    VOZ 2Querido. Onde voc est? Por que no escreve nunca? Ningum sabe devoc. Ningum sabe se est vivo ou morto. Ningum consegue te encontrar.

    Ser que voc mudou de nome?

    Se ainda estiver vivo voc um monstro. Teu pai te amaldioou antes demorrer. Amaldioou a mim tambm, pra falar a verdade. Amaldioou atodos que estavam l. S voc no estava l. No te culpo pelo mau humordo teu pai, mas a tua ausncia, o teu silncio, era um fardo pesado demaispara ele, um tormento pra ele. Morreu se lamentando, se maldizendo. Eraisso o que voc queria? Agora estou sozinha, s a Millie, que vem s vezesme visitar. Nela eu encontro algum conforto. Seus olhos se enchem dguaquando ela fala em voc, os olhos de sua triste irm, poas de lgrimas. Elase casou muito bem, e tem um filhinho lindo. Quando ele crescer vai querersaber por anda seu tio. O que ns vamos dizer?

    Ou talvez voc chegue num carro novinho em folha, um dia, num futurono to distante, usando um terno novo, assim do nada, e me aperte em

    seus braos.

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    VOZ 1Lady Withers se levantou. Como Jane est fazendo o dever de casa, eladisse, voc no se incomodaria de ir embora e voltar outro dia. Jane tirouos ps do meu colo, tinha o meu brioche preso entre os dedos. Sim, claro,eu disse, a no ser que Jane queira que eu a ajude em seu dever de casa.No, obrigada, disse Lady Withers, eu mesma a ajudo nas lies.

    O que eu no disse, que tenho pensado em dar aulas particulares. Achoque eu poderia ser um timo professor, para jovens, numa infinidade dematrias. Jane seria a aluna ideal. Ela tem uma paixo verdadeira pelo

    conhecimento. Pode-se perceber pelo seu jeito de respirar. Quando ela teolha, possvel ver l dentro, em seus olhos, uma paixo crua, selvagem,carente mas vida por aprender.

    So pensamentos de meia noite, me, embora a hora exata seja dez e vinte etrs.

    VOZ 2Querido?

    VOZ 1Enquanto estava deitado na banheira, esta tarde, pensando essas coisas,parece que algum bateu na porta da frente. O homem de cabelos pretos,parece, foi atender. Haviam duas mulheres paradas na porta. Disseram serminha me e minha irm, e perguntaram por mim. O homem disse que noas conhecia. No, ele nunca tinha ouvido falar de mim. No, no havianingum aqui com aquele nome. Esta era uma casa de famlia, no seadmitiam estranhos. As pessoas por aqui tm se dado muito bem obrigado,sem intrusos. Acho melhor, ele disse, vocs voltarem pro lugar de ondevieram, e parar de incomodar pessoas inocentes e trabalhadoras comdifamaes e calnias, esses tumores de sua mentes depravadas, j em

    visvel estado de decomposio. possvel sentir o mal-cheiro de vocs distncia e no me falta muito pra processar as duas por imoralidade,

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    comportamento indigno e vadiagem, em outras palavras, por ficarvagabundeando de porta em porta, em completa misria. Ento, melhordar o fora, antes que eu chame a polcia.

    Estava deitado na banheira quando a porta abriu. Pensei que tivessetrancado. Me chamo Riley, ele disse, como est o banho? timo, eu disse.Voc to um corpo esguio e to bem tratado, ele disse. Eu achava vocmagrinho, nunca imaginei que tivesse um corpo to bem tratado eproporcional, como estou vendo agora. Ora, obrigado, eu disse. No amim que deve agradecer, ele disse, mas a Deus. Ou a sua me. Acabei dedespachar duas mendigas que bateram a. Tenho certeza que pelo menos

    essas duas nunca mais passam pela nossa porta. Ele ento sentou-se nabeirada da banheira e me contou tudo isto que acabei de te contar.

    Interessante saber que meu pai no se deu ao trabalho de fazer a viagem.

    VOZ 2Ouo os paos de seu pai na escada. Ouo ele tossindo. Mas os paos e a

    tosse desaparecem. Ele no abre a porta.

    s vezes, eu acho, que estive sempre sentada assim. Eu acho, s vezes, queestive sempre sentada assim, sozinha, diante da lareira acesa, indiferente,cortinas fechadas, noite, inverno.

    Est vendo, eu tambm tenho os meus pensamentos. Pensamentos queningum imagina que eu tenha, pensamentos que ningum da minha famlia

    jamais sups que eu tivesse. Mas escrevo sobre eles pra voc, onde querque voc esteja.

    O que quero dizer que, por exemplo, quando lavava os seus cabelos comum shampoo to delicado, e enxaguava, e depois os enxugava suavementecom a toalha mais macia, com todo cuidado pra no ouvir nenhummurmrio de incmodo ou desconforto seu, ento eu olhava fundo nos seus

    olhos e via voc me olhando fundo, e eu sabia que voc no precisava demais ningum, de ningum mesmo, eu sabia que voc se sentia plenamente

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    feliz em meus braos, eu tambm sabia, por exemplo, que ao mesmo tempoeu continuava sentada, a lareira indiferente acesa, sozinha no inverno, numaeterna noite sem voc.

    VOZ 1A Sra Withers toca piano. Estavam sentadas as trs mulheres pelo quarto.Pelo quarto, espalhadas, garrafas de vinho ros de um tom inesquecvel derosa. Elas tomavam o vinho em taas to bonitas e seus gestos eram de umaleveza e elegncia que eu imaginava, j h muito esquecida. Lady Withersusava um colar em seu pescoo de alabastro, um pescoo admiravelmente

    jovem. Tocava Schumann. Ela sorriu. Sra Withers e Jane sorriram pra mim.Eu peguei um lugar. Peguei e me sentei nele. Eu estou nele. No vou deix-lo nunca.

    Ah me, encontrei meu lar, minha famlia. Nunca imaginei que um dia eupudesse ser to feliz!

    VOZ 2Eu devia era te esquecer. Eu devia era te amaldioar, como fez teu pai. Eupeo a Deus, oh como eu peo, que a tua vida seja um inferno. S esperouma carta sua me pedindo ajuda. A eu vou cuspir na tua carta.

    VOZ 1Me, me, acabei de ter um encontro tremendamente mstico edesagradvel com o homem que diz ser o Sr Withers. Ser que pode me darum conselho?

    Entre, meu filho, ele me chamou. Olhe bem. No mexa em nada. Eu nodisponho da noite inteira. Eu entrei. Um jarro. Uma bacia. Uma bicicleta.

    Voc sabe onde est? Ele disse. Voc est em meu quarto. Isto aqui no

    uma estao de trem. Entende? Isto aqui um verdadeiro osis.

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    Este aqui o nico cmodo da casa onde se pode pegar uma caravana paratodos os pontos do Oriente. Compris? Understand? Entendeu? Ser queest pronto pra me seguir montanha abaixo? Olha pra mim. Meu nome Withers. Estou a e por a. est me seguindo? Embargo a todas asterminologias imprecisas. Comigo? Embargo a todas as redundncias.Todas as reas de conexo verboten. Voc est num beco sem sada,lutador. Jogue o peso sobre todas os ps esquerdos que conseguir arranjar.No pare de danar. O velho fox-trot a resposta clssica, mas no aresposta a que me refiro. Nem estou falando de nenhuma outra resposta.Que vivam os escravos, entendeu? Este um lugar coalhado de criaturas,criaturas de espasmos rtmicos, de deslizes rtmicos, franjas de macarro,

    pudins ao molho de maionese, uma catapulta de lixo e bagulho apodrecido,a parafernlia toda mostra. T me seguindo? Tudo se soma. Est na tuafrente e nas tuas costas. O nico capaz de lhe conceder a graa que tantoalmeja. Presta ateno aos teus atos. Olha em frente. Olha firme. Segue omeu raciocnio? No deixe tudo ficar to elameado. Olha a lama. Tentesentir o feeling da coisa, filho, a densidade. Olha pra mim.

    E eu olhei.

    VOZ 2Eu estou doente.

    VOZ 1Era o mesmo que olhar prum buraco na terra cheio de lava de vulco, me.Uma olhada apenas foi o bastante pra mim.

    VOZ 2Volta pra mim.

    VOZ 1

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    Fui tomar um campari com soda na cozinha com a Sra Withers. Ela mefalou de sua juventude. Eu era muito disputada, ela dizia. Minha pele eraum pssego. Eles costumavam vir de longe tentar a sorte. E eu ca de quatropor um homem da artilharia. Ele me adorava. Mataram ele porque noqueriam que soubssemos o que felicidade. Podamos ter nos casado e tertoneladas de filhos. Mas no, tss. Ele sumiu num naufrgio. Ouvi a notciapelo rdio.

    VOZ 2Estou te esperando.

    VOZ 1Mais tarde, naquela mesma noite, Riley e eu tomamos um chocolate juntosem seu quarto. Eu gosto de rapazes esguios, Riley disse. Esguios masfortes. Nunca fiz nenhum segredo disto. Mas era preciso que mecontrolasse, que mantivesse sempre curtas as rdeas de minhas inclinaes.Isto porque minha verdadeira vocao a religio. Sempre fui um homemprofundamente religioso. Pode imaginar a tenso que isso tem criado emminha alma? Ando por a num constante estado de tenso espiritual,emocional, psicolgica e fsica. insuportvel a disciplina a que meobrigo. Meu desejo de uma violncia inacreditvel e vai de encontro ameus interesses mais sinceros, que de estar sempre ao lado direito deDeus. Como v, sou um homem grande. Poderia esmigalhar um rapazinhocomo voc at a morte. A morte que amor. A morte que entendo comoamor. Mas mantenho esses meus desejos presos em algemas e correntes deferro. Sou bom nesse negcio. J que trabalho na polcia, e sou altamente

    respeitado. Tanto na polcia como na igreja, sou altamente respeitado. Onico lugar onde no sou altamente respeitado aqui nesta casa. Eles

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    cagam pra mim aqui. Embora eu seja parente prximo. De certa forma. Souum timo tenor, e nunca me chamam pra cantar. Eu devia era ir morar nomeio do deserto do Sahara. O problema que aqui tm mulheres demais. Ecom o careca intil falar. Est sempre distante. Vive num mundo que sele sabe que existe. Eu gosto de sade, fora e conversas inteligentes. Foipor isso que me interessei por voc, garoto. Sem falar que realmente achovoc interessante. No tenho ningum com quem falar. Estas mulheres metratam como um leproso. Embora eu seja parente. De certa forma.

    Que parente?

    Ser que a Sra Withers me de Jane, ou ser sua irm?

    Mas nos dois casos, por que Jane no se chama Lady Jane Withers? Outalvez se chame. Ou talvez no seja o caso. Ou talvez a Sra Withers venha aser a Honorvel Senhora Withers? Mas se for este o caso onde entra o SrWithers? De onde afinal vem seu nome Withers? Quero dizer, qual o seugrau de parentesco com o resto dos Withers? Quem Riley?

    Se est me achando perplexo, impaciente, confuso, inseguro e com medo,vai me achar tambm profundamente satisfeito. Minha vida tem formaagora. a casa tem uma atmosfera confortvel como voc j deve terpercebido, eu converso indistintamente com todas as pessoas da casa,menos com o Sr Withers com quem ningum fala, a quem ningum serefere, por razes bvias. Mas quase nunca saio de casa. Ningum parecenunca sair de casa. Riley sai raramente. Deve trabalhar na polcia secreta.Jane continua a fazer um monte de deveres, embora aparentemente, no va escola nenhuma. Lady Withers nunca sai de casa. Ela tem seusconvidados. Ela recebe convidados. So os passos que ouo noite nasescadas.

    VOZ 3Soube que sua me lhe escreveu dizendo que estou morto. Eu no estou

    morto. Ainda falta muito preu morrer, apesar de muita gente h muitotempo desejar a minha morte. Especialmente voc. Voc que reza pela

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    minha morte, h muito tempo. Eu escuto tuas preces, elas ecoam nos meusouvidos. Preces pedindo pela minha morte. Mas eu no estou morto.

    Bem no se pode dizer que esta seja a verdade. No, no este o caso. Euestou mentindo. Estou levando-o por alias de um jardim, estou brincando,estou me divertindo um pouco, acho que finalmente tenho este direito.Porque estou morto. Morto como uma pedra. Escrevo pra voc do meutmulo. Uma palavrinha rpida pra relembrar os velhos tempos. S pra noperder o contato. Um oi da escurido. Um ltimo beijo do seu pai.

    Acho melhor ir parando por aqui. No tenho muito a dizer. A gente se

    cansa. Por que se dar ao trabalho? Por sua causa, filho, eu acho, voc queera meu filho to querido. Estou sorrindo. Aqui neste tmulo de vidro.

    Sabe por que uso a palavra vidro? Porque d pra ver atravs.

    Cuide-se bem filho. Continue firme.

    S tem uma coisa que realmente me enche. No meio desse absoluto

    silncio, desse silncio onipresente que atravessa as horas do dia, eu aindaouo, s vezes, um cachorro latindo. Um latido distante. Ah como isso meapavora.

    VOZ 1Decidiram me dar um nome. Eles me chamam de Bobo. Bom dia Bobo,eles dizem, ou at amanh Bobo, ou olha a baba, Bobo, ou no esquece dedar a descarga, Bobo, ou segura a bola, Bobo, ou sempre do lado de c dostrilhos, Bobo, ou ainda tem grafite na lapiseira, Bobo? e os truques nastrancas, Bobo? e estas botas do bolhas, Bobo.

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    A nica pessoa que no me chama de Bobo o velho. Ele no me chama denada. Eu no chamo ele de nada. Nunca vejo ele. Ele ta sempre em seuquarto. Eu nunca chego perto. Ele est velho, e vai morrer logo.

    VOZ 2A polcia est atrs de voc. Vale lembrar que voc menor de vinte e umanos. Todas as delegacias j tm uma descrio minuciosa sua. Medisseram que no vo desistir enquanto voc no for encontrado. Em meudepoimento, eu disse que acredito que voc esteja nas mos de gente do submundo e que esto te explorando e te prostituindo. Declarei tambm que

    voc jamais teve determinao e nenhuma fora de carter, e que palpavelmente susceptvel a todo tipo de agrado e conversa mole. Mulheresforam sempre seu fraco, desde criana. No esqueci daquela francesa,Franoise. Ou aquela outra indecente que se disfarava de governanta. Masvoc pode estar certo que vo te encontrar, meu rapaz, e no esperequalquer tipo de perdo.

    VOZ 1Estou voltando pra casa, me, pra abraar voc.

    Estou voltando pra casa.

    Estou voltando pra dar um tapinha nas costas do meu pai. Cad o velho?Quero tanto bater um papo com ele. Onde ele est? J procurei em todos oslugares de sempre, at na antiga casa de veraneio, e nada. No vai me dizerque ele resolveu ir embora naquela idade? Acho que seria egosta demais.O que que voc fez com ele, me?

    VOZ 2Eu vou te dizer uma coisa, meu querido. Eu desisti de voc como algumque desiste de uma tarefa ruim. S me diz uma ltima coisa. Voc acha que

    a palavra amor faz sentido?

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    VOZ 1Estou voltando. Estou prestes a comear a viagem de volta. O que ser quevoc vai dizer?

    VOZ 3Tenho tantas coisas a lhe dizer. Mas estou totalmente morto. O que tenho adizer jamais vai ser dito.

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