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s. barreto O Circo & outros contos

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O Circo & outros contos

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s. barreto

O Circo&

outros contos

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SUMÁRIO

SOLIDÃO ......................................... 7

APRESENTAÇÃO .............................. 9

Conto 1 - O Circo .............................11O CIRCO ........................................ 12

Conto 2 - A Criação .........................91A CRIAÇÃO .................................... 93

Conto 3 - Negociando o Fim ...........105NEGOCIANDO O FIM ....................107

Conto 4 - À Deriva ......................... 118À DERIVA .....................................120

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Na premente ausência de filhos fidedignos – em face dessa nefasta coerção imposta pela vida pós-moderna aos “pais tardios” - dedico este reles escrito aos meus sobrinhos: BETINA e CÁSSIO; pessoinhas há quem muito estimo, apesar do meu aspecto friorento, distante, absurdamente indiferente e pouco amoroso... Meu “amor” a vocês se limita e persiste até onde a banalidade imposta pela busca cega pela Sobrevi-vência, Capital e Poder - de ambos os lados - permitam que ele vá.

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SOLIDÃO

Eu amo a solidão! - aqui meu peitoEu sinto dilatar-se, e ter mais vida;Aborreço os salões, onde se mente,Onde a voz, que se falia, é voz fingida.

Que valem meigos risos sedutores?Que valem frases, que não vem do peito?Eu amo a solidão! - dos seus eflúviosEu sinto dentro d’alma o puro efeito.

Zombe embora de mim a turba insana,Que vive nos prazeres engolfada,Eu olho-a sobranceiro, como o cedro Olha a frágil vergôntea soçobrada.

Amável solidão, quanto eu te amo!Amor, pureza, encantos, tu resumes;Só tu me dás alívio ás minhas mágoas,Em ti vivo de amor e de perfumes.

Nas graças naturais, que te circundam,A ideia do infinito em ti contemplo;E’ teu solo um altar da Divindade,

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Teu céu azul, diáfano é o templo.As aves, que modulam seus gorjeios,São anjinhos na terra, que desencantam,As flores, que perfumam teu espaço,São incensos a Deus, que se alevantam.

Quando o mundo real meus olhos viram,E o vagido primeiro dei a terra,A sorte impiedosa disse: “Vai-te!Sê poeta, padece, chora e erra.”

E eu tenho padecido e hei chorado,E minha vida ha sido sempre errante;Sou como a folha, que o tufão arrasta,Sou como o echo de choroso amante.

Cumprirei minha sina como as aves,Que solitárias vivem pelas selvas,Como a flor inocente, peregrina,Que nasce, cresce e murcha junto ás relvas.

Cachoeirinha (Icó) 1856.

José Coriolano

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APRESENTAÇÃO

O escritor Saulo Barreto Lima Fernandes nasceu no dia 17 de maio de 1983 em Teresina/Piauí, reside em São Luís/Maranhão, Bacharel em Direito pela Universida-

de CEUMA, graduando Ciências Sociais (Antropologia, Sociologia e Ciência Política) na Universidade Estadual do Maranhão - UEMA; e trabalha na Secretaria Municipal da Educação - SEMED. S. Bar-reto é autor dos livros: Artigo XVII: um livro de quase crônicas (2014), Artiguelhos (2014), Pecados consolados (2015); ainda no mesmo ano, juntamente com o escritor César Barreto Lima, foi coautor da biografia O Poeta do Becco: uma viagem no tempo.

Jovenildes RibeiroGraduanda do curso de Letras da

Universidade Estadual do Maranhão - UEMA

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Conto 1 - O CIRCO

Tema principal: Maus tratos aos animais, assunto deveras oportuno e relevante na atualidade.Narra a vida e revolução dos animais como macaco, leão, leoa, coelho... em um circo onde são maltratados pelo dono do circo e funcionários do mesmo. Põe em evidência a crueldade dos seres racionais contra os irracionais: a má alimentação, os castigos, a precariedade e má higiene do ambiente em que vivem, a desnutri-ção. O pivô da revolução feita pelos animais é a teoria do sociólogo “Karl Marx” encontrada no livro “O Capital,” deixado cair por um universitário que frequentava o circo, naquela noite. Instruídos de-vidamente pelo conteúdo do livro, os animais se revoltam contra o circo, os donos do circo e toda forma de opressão; tendo como desfecho a destruição do circo, a absolvição dos funcionários e a condenação, à morte, dos donos do circo. Revolução esta, sinteti-zada nessa frase: “animais de todo mundo uni-vos.” (O Circo)

De acordo com Mario Ciampi Presidente da associação hu-manitária de proteção e bem estar animal (ARCA/BRASIL) “o prin-cípio básico da relação homem / animal deve ser o de caber ao homem prover condições adequadas para a manutenção das ne-cessidades, psicológicas e comportamentais do animal. Quando se não é capaz de garantir a segurança do animal este não deve ser mantido pelo homem.”

Na atualidade quando vemos noticiários e no cotidiano ce-nas reais de crueldade, maus tratos e abandono de animais, tor-na-se necessário que façamos muito mais que a nossa parte, seja conscientizando os ofensores, seja auxiliando as vítimas, todo o esforço é bem vindo, antes que os animais resolvam fazer justiça com as próprias mãos, ou melhor, com patas!

Jovenildes Ribeiro

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O C I R C O

Era pra ser um dia como qualquer outro. Mas, como tudo que é ruim, ainda pode piorar, eis que a poluição sono-ra, de uma certa grande cidade, tão peculiar a qualquer

outra, é robustecida por um outro som, igualmente não muito afá-vel. Em terra firme, pessoas - franzindo suas testas e com uma das mãos esticadas pouco acima dos sobrolhos, com vistas a fazer sombra aos olhos - tentavam observar ao longe, num ofuscante e brilhoso céu, aquilo que parecia ser um aeroplano. E era. Ele trans-mitia uma repetitiva gravação que anunciava, com muita pompa, o último dia de apresentação, do famoso Circo Dallas que se encon-trava, há dias, instalado na cidade.

Estamos próximo ao início do mês de julho, período de férias escolares. Como estratégia de divulgação, o bimotor passava giran-do em círculos, o espaço aéreo de praticamente todos os bairros mais populosos da cidade, em particular, nos finais de semana. E já que estava no ar, aproveitava para arremessar também, estrate-gicamente, milhares de panfletos de divulgação próximos às esco-las e creches onde se achava seu público alvo, a criançada. Mais um trabalho extra para os já sobrecarregados agentes de limpeza do município, muito mal remunerados, apesar da profissão muito digna.

Assim anunciava a gravação:Circo Dallas! Último dia de apresentação do mais impres-

sionante circo da cidade. Venha com o vovô, a vovó, o papai e a mamãe conferir o dia final do espetáculo mais esperado do ano.

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Ingressos pela metade. Estamos do lado da praça central da cidade. Não percam essa chance. Se não assistir agora, só ano vem. Traga toda sua família! A pipoca e a alegria ficam por nossa conta. Vai lááá...

Pois bem, um dos que tomou conhecimento, de que essa era a “última oportunidade” de apreciar o espetáculo, foi o jovem Gustavo. Este, com 23 anos de idade, era um pacato universitário do quinto período do curso de Filosofia. O dia anunciado coinci-dia justamente, com a mesma data que ele e sua namorada, se encontraram pela primeira vez, num auditório da universidade, há exatos dois anos. Rafaela, o nome dela, estuda também na mesma universidade, só que do curso de Letras. Como todo universitário é “cabeça aberta”, não haveria caretice nenhuma, comemorar a importante data, se divertindo num circo, rememorando assim, o lado infantil que o apaixonado casal tinha dentro de si. Lógico que isso era somente uma prévia, um pretexto para os dois pombinhos festejarem da forma mais proveitosa mesmo, com uma bela e sa-gaz noite de amor.

Engraçado notar também, era de que desde o dia que o circo chegou na cidade, todo dia, era o último dia.

Enfim, chega o dia de mais um “esperado” espetáculo. A ideia da caixa de som acoplada às asas do planador e do derrame dos panfletos voadores deu mais do que certo. Todos os ingressos haviam sidos vendidos e a plateia estava lotada. Famílias inteiras observavam deslumbradas, mesmo na penumbra, o esplendor do picadeiro e a gigantesca tenda armada, enquanto aguardavam an-siosos, o início do show.

Depois de 14 minutos de atraso, os espectadores atentos, ouvem uma voz, com forte sotaque estrangeiro, anunciando, com bastante entusiasmo, a abertura do espetáculo. Caixas amplifica-doras, demasiadamente altas, fazem reverberar a voz do acalorado apresentador por toda a extensão do circo. Abrem-se as cortinas, rufam-se os tambores e eis que aparece, um simpático senhor de aproximadamente 60 anos, com um belo sorriso artificial no rosto. Um grande feixe de luz especial acompanha seus lentos passos até o centro do palco.

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Ele tinha a pele bem clara, olhos verdes e uma barriga enor-memente protuberante. Estava todo enfeitado de cartola, gravata borboleta e um espalhafatoso terno colorido, ricamente adornado com missangas e paetês brilhosos. De tão obeso, usava suspen-sório reforçado, para sustentar as calças e conter sua avantajada circunferência abdominal. Com mobilidade reduzida, por conta da idade e do aspecto físico, só conseguia mesmo era falar e gesticular com os braços. Aquele era o respeitado senhor... ou melhor, o Mis-ter Hermman Coperfield, como exigia ser chamado; um cidadão americano, que além de cumular a função de locutor, era também, o dono do circo.

Assim, apresentava Mr. Hermman, o espetáculo:– Reeespeitável público. Com vocês o estrondoso, o mara-

vilhoso, o magnífico espetáculo mais esperado da terra e assisti-do por mais de um milhão de pessoas planeta afora. O fantástico mundo do Circo Dallas.

Assim que se pronunciava, canhões e jogos de luzes come-çaram a iluminar o palco e a plateia freneticamente. Algumas pes-soas ficaram a ver estrelas, com a vista embaçada, por conta da forte luminosidade focalizada diretamente em seus olhos. Confetes são lançados e uma chuva de prata toma conta do chão de todo o picadeiro. O gelo seco cobre todo o ambiente com uma cortina espessa de fumaça densamente branca. Alguns, incomodados com o excesso de vapor, começam a abanar o rosto. De imprevisto, uma inesperada rajada de vento acaba levando um pouco dessa fumaça, direto para as cordas vocais do apresentador, que começa a tossir, copiosamente.

O inesperado contratempo, acabou fazendo com que Her-mman, avançasse no início da apresentação inaugural. Tossindo e já com falta de ar, é anunciada a apresentação do primeiro número da noite:

– Cof. Cof. Agora tenho a satisfação de anunciar a vocês, para dar as boas vindas, o nosso estimado trio de palhaços. Os mais queridos de todas as Américas Espirro, Pirulito e Espoleta. Cof. Cof. Cof... – anuncia, às pressas, o locutor Hermman, que já mal conseguia falar. Com o rosto avermelhado e sem condições

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nenhuma de pronunciar mais as palavras, ele se retira para os bas-tidores, logo sendo acudido pelos assistentes de palco, que já o aguardavam com uma jarra e um copo de água nas mãos.

Enquanto se recuperava, os palhaços citados entravam em cena. Nada melhor do que chamar a atenção das crianças com as peripécias de uma trupe de palhaços desastrados. Fazer a plateia rir tinha dupla finalidade: aflorar as emoções do público infantil e desarmar os adultos mais resistentes. Um palhaço é bom. Dois é muito bom. Três, então, é bom demais.

A dinâmica da apresentação, girava em torno da disputa pelo amor da graciosa palhaça Espoleta, entre os dois palhaços preten-dentes, Espirro e Pirulito. O que elaborasse melhor apresentação – que geralmente, era feita com animais - e fizesse Espoleta rir, ganharia seu coração e assim, casaria com ela.

Porém, antes disso, como abertura, que tal um chiste preli-minar para as razões de ser de qualquer circo, as crianças.

– Olá criançada? Quem quer dar boas risadas hoje? – fala um dos palhaços.

– Eeeeeu! – retribuía a meninada em uma só voz.A molecada, em maior número, respondia empolgada, com

o dedo indicador e os braços esticados para cima; como se seus gestos interferissem terminantemente, na continuação ou não, da apresentação. Uma delas, de tão empolgada, esbarrou, sem inten-ção, seu franzino bracinho, nas mãos de um coleguinha já pouco obeso, que estava do lado, e que se deliciava com um enorme e su-culento cachorro quente. Não deu outra, a guloseima se despren-deu de suas mãozinhas e melecou toda sua roupa com molho e catchup, logo depois, caindo no chão, antes mesmo dele desfechar a tão esperada segunda abocanhada. Foi perda total. O cachorro quente se estatelou na areia sem chance de recuperação. Era carne moída, ervilha, milho e salsicha pra todo lado. O menino, descon-solado, abriu o berreiro no mundo. Foi choro do início ao fim do espetáculo.

– Buááááá...A mãe, querendo amenizar a frustração do filho, tenta dis-

traí-lo:

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– Olha ali meu filho o palhacinho! Que legal!Mirando profundamente nos olhos da mãe, com os braci-

nhos cruzados, as sobrancelhas cerradas e fazendo biquinho com os beiços, o menino retruca:

– Eu lá quero ver pinoia de palhacinho. Eu quero é meu ca-chorro quente.

Depois de contestar a mãe, o menino recobra o incontrolável choro:

– Buááááá...Mas paciência, o show tinha que continuar. A revelia de toda

essa situação, retomando ao cerimonial, digo, a fala do palhaço, ele diz:

– Olha aqui criançada, antes de começar as brincadeiras, eu quero saber o seguinte. Quem faz o dever de casa sem reclamar?

– Eeeeeu! – respondia a meninada entusiasmada.Sem perder tempo, os palhaços vão engatando, de forma

acelerada, uma pergunta atrás da outra, sucessivamente; e os peti-zes, mecanicamente, logo vão respondendo, na mesma velocidade.

– E quem tira notas boas na escola?– Eeeeeu!– E quem obedece ao papai e a mamãe?– Eeeeeu!– E quem gosta de comer verdura?– Eeeeeu!– E quem escova os dentinhos antes de dormir?– Eeeeeu!– E quem faz pipi na camaaa?– Eeeeeu! Ops! As crianças, vendo que haviam caído ingenuamente no em-

buste, caem na gargalhada zombando uns aos outros.Os palhaços, claro, não perdem a deixa e começam a caçoar

a pueril plateia:– Fazem pipi na cama. Fazem pipi na cama. A criançada do

circo Dallas faz pipi na cama...As crianças iam ao delírio de tanto rirem. Umas se engas-

gavam com as próprias salivas, já outras não se continham, e se

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urinavam ali mesmo, nas calças, diante das inúmeras piadas e pe-ripécias daqueles jograis tão desenvoltos e pilhéricos.

Pois bem, feito isso, era hora de iniciar o espetáculo de ver-dade. Como dito, os dois palhaços travariam uma “luta” para con-quistar o riso e o coração da desejada e bela palhaça Espoleta.

Espirro toma a frente da apresentação e desafia seu rival Pi-rulito, dizendo-lhe que este não teria chances. Sua confiança se baseava na argumentação de que ele, além de ser o mais bonito, possuía também, um número que de tão impressionante, Espole-ta ao vê-lo, logo se apaixonaria pelo mesmo, perdidamente. – Ah é? Pois eu quero ver. Bonito todo mundo já viu que tu não és, Espirro cara de grilo!

E qual é o teu número? – reage Pirulito.– É número do coelho encantado – responde Espirro.– Coelho encantado? Óóóóóóó... – suspira a gurizada da pla-

teia, agora bem sentadinhas, comportadas e mui atentas. – É o novo! – Pirulito tenta menoscabar a apresentação. – Sim criançada, isso mesmo. Quem me falou dele foi a mi-

nha amiga Alice, aquela do País das Maravilhas. Ele veio direto de lá, e sabem o que ele faz mais? Ele some e aparece em todo lugar, com o toque desta vareta mágica aqui em minha mão e quando pronuncio a palavrinha mágica: abracadabra – explica Espirro.

– Abracadabra?! A mãe do Espirro é uma cabra – aproveita Pirulito para atrapalhar a apresentação e desconcentrar seu rival.

Espirro não dá trela ao adversário e inicia sua apresentação.– Quem quer conhecer o meu amigo coelho?– Eeeeeu! – responde a meninada. – Tá bom. Mas temos que saber onde ele se acha agora. Será

se ele está no meu sapato ou nos meus bolsos? Ou será se ele se esconde bem encima da minha cabeça dentro da minha cartola? Vamos saber? - Espirro tenta envolver toda a plateia numa atmos-fera de mistério e tensão.

Espirro retira a cartola da cabeça, vira para baixo, e dá três batidinhas no alto dela para mostrar que não havia nada grudado ali. Ainda expõe, também, o fundo para mostrar aos espectadores que também nada havia lá, visualmente.

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– Vamos ver se ele está na minha cartola meninada? Vou contar até três e assim que tocar na cartola vocês falem bem alto comigo a frase mágica que é a seguinte: Abracadabra, abracada-bra... coelhinho mostra a tua cara para a meninada do circo Dallas. Lá vai 1, 2, 3...

Com a ânsia de ver logo o tal do coelho encantado a gurizada grita bem forte:

– Abracadabra, abracadabra... coelhinho mostra a tua cara para a meninada do circo Dallas...

E então o palhaço Espirro retira o coelho da cartola. As crian-ças ficam estupefatas e os adultos aplaudem, depois de um pai-nel luminoso, sinalizar com lâmpadas coloridas o seguinte dizer: “APLAUDIR”.

Na verdade, é lógico que o pobre do coelho estava na sua cartola, numa espécie de fundo falso, desde a hora que o trio en-trou em cena, uns vinte minutos atrás. Ficou ali quieto, espremido em um curto e abafado espaço, quase sem respiração. Além do mais, estava há dias em “jejum” para que não urinasse nem evacu-asse durante a apresentação. Espirro querendo se vangloriar ainda mais do seu feito, pega bruscamente o coelho pelas orelhas e o alça bem alto, esticando todo o couro facial do bicho, transmutando sua face original, radicalmente.

Espirro, não satisfeito só em erguê-lo, passa mostrando o coelho para toda a plateia, fingindo até jogá-lo no meio do públi-co. Sem que os espectadores percebessem, sorrateiramente, Es-pirro entoca o coelho para dentro de um dos seus bolsos, lugar igualmente inadequado para um animal daquele porte estar. Uma das crianças mais atentas, vendo que parte do rabo do coelho se encontrava para o lado de fora do bolso do palhaço, grita acu-sando:

– Olha ali gente o coelho no bolso dele...Percebendo a falha e com receio de ter seu truque descober-

to por todos, o palhaço ilusionista Espirro, embravecido consigo mesmo pelo erro, diz:

– Entra aí coelho dos infernos – fala o palhaço bem baixo, com os dentes rangidos e de feição transposta, empurrando e gol-

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peando de forma violenta com as mãos o traseiro do pobre coelho, o que lhe custou um belo hematoma.

Depois de finalizar a apresentação, Espirro se dirige a Espo-leta perguntando que ela havia achado de seu número. Ela não se empolga muito, mas mostra o dedo polegar em sinal de aprovação. Pirulito, vendo que seu adversário não tinha ido muito bem, apro-veita para chamar atenção da pretensa amada Espoleta.

Antes de iniciar, ele faz um primeiro gracejo, recitando para a amada alguns versos de uma poesia de sua autoria:

– Espoleta, Espoleta, és tão bela como o mar / que se eu fos-se um passarinho te levava pra voar / mas como não tenho asas / vamos mesmo é andar.

Espoleta ri timidamente com o canto da boca.– Então vamos ao que interessa criançada. Depois de ver

essa apresentação fraquinha do meu amigo Espirro, vamos assistir, agora, um número de verdade. E molecada, já que ele diz que tem um amigo coelho lá daquele país não sei da onde, vocês sabiam que eu tenho um amigo lá da África?

– Óóóóóóó. Da África? – se admiram as crianças com os olhos arregalados.

– É verdade galerinha. Tenho um amigo que morava nas sa-vanas bem longe daqui, do outro lado do oceano, entre zebras, cro-codilos, hipopótamos, girafas, antílopes, hienas, leões... E querem saber mais? Ele é o único macaco da sua espécie que não tem rabo. Ele nasceu rabicó. É o macaco Rabicó! Palmas pra ele – entusias-ma-se Pirulito enquanto traz o animal dos bastidores ao picadeiro pela coleira.

A bem da verdade, é que a história de origem do tal macaco para chegar até o circo é bem diferente dessa contada, com tanto romantismo, pelo palhaço Pirulito. Na realidade, sua permanência no circo do macaco era resultado de um grande esquema de tráfico de animais. Era da África sim, mas hoje se encontra nas Américas, fora de habitat natural, por conta da ação de uma poderosa má-fia internacional especializada em negociar espécies raras, animais fossilizados da era cenozoica, insetos, peles de animais, aves exó-ticas, marfins, pedras preciosas, etc. Enfim, era uma organização

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especializada em fazer o mal, com ramificações em quase todos os continentes.

O referido bicho foi encomendado diretamente através de contatos escusos entre o dono do circo Mr. Hermman, feitos com o chefe maior do esquema, um ditador sanguinário africano, que há décadas dominava um pobre país, com mãos de ferro. Depois que o macaco titular do circo - um chimpanzé - morreu doente e des-nutrido, o Mr. Hermmam sentiu a necessidade de substituí-lo por outro, haja vista de que a apresentação com macacos, era sempre uma das mais apreciadas pelo público. Diferente do outro falecido, este era um macaco da espécie conhecida vulgarmente como ba-buíno, de nome científico Papio papio, e pertencente a família dos Cercopithecidae.

Foi capturado por caçadores mercenários que ganhavam gor-da comissão por cada bicho apanhado. O dia de sua apreensão foi triste e traumatizante. Ainda sendo amamentado no colo da mãe, ele presenciou toda sua família e seu bando sendo abatidos a tiros de rifle, sem piedade. Foi recolhido ainda com 4 meses de nascido e a partir dali, ficou sendo amamentado por leite de javali. Quan-do estava sendo transportado para o cais que o levaria a América, somente pelo simples fato de ter sua calda levemente encostada no cantil de água, um dos mercenários, sem nenhum tipo de com-paixão, retirou o facão “rabo de galo” da bainha e desferiu impie-dosamente, um só golpe, na frágil calda do pobre macaquinho, de-cepando-a, vindo este a berrar e chorar desesperadamente de dor.

Mutilado, tanto ele, como os outros animais encomendados, foram precariamente acondicionados em porões de navio. Dos trinta animais transportados, somente três resistiram vivos, à longa viagem de quase uma semana, bebendo e comendo muito pouco. Os outros mortos, desmaiados ou doentes, eram lançados ao mar, tal como eram feitos com os escravos negros, que foram sequestra-dos pelas nações imperialistas europeias, com destino as colônias americanas.

Enfim, exposto o necessário esclarecimento, voltemos ao conto. Quando o macaco foi finalmente apresentado ao público, invés de bater palmas, a criançada caiu foi no riso:

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– Macaco rabicó. Rárárárárárá...Não satisfeitas com a péssima receptividade ao macaco, não

perdoaram e começaram a zombar do defeito físico do pobre, re-petindo incansavelmente o vexatório apelido conferido ao mesmo, além de apontarem, sem cerimônias, seus dedinhos diretamente ao local de sua manifesta deficiência.

– Macaco rabicó, Macaco rabicó, Macaco rabicó... – diziam as crianças de forma inconsciente.

Pirulito aproveita a deixa e para engrossar ainda mais o caldo da humilhação, da hipocrisia e da insanidade, dizendo:

– Gente esse não é somente só mais um macaco, ele é o mais inteligente do mundo. Só não faz mesmo é falar, mas faz tudo o que a gente mandar. Querem ver? Macaco rabicó já sei que não andas de sapato, mas que tal pulares que nem sapo?

E logo o primata sai saltitando, ridiculamente, se esforçando para pular tal como um sapo, o que não era da sua natureza, já que sua envergadura biofísica não era adequada para realizar esse tipo de ação. No máximo, seu ânimo de ambulação consistia em se valer dos seus braços longos, bem articulados e fortes para se lo-comover nos altos das copas das árvores entre os galhos em busca de alimentos e como busca de proteção em face de seus predadores naturais.

Não satisfeito com o primeiro ultraje Pirulito sugestiona:– E não é só isso querem ver mais? Macaco rabicó sei que tu

não és peão, mas que tal mostrar pra gente como se gira no chão?E torna o pobre do macaco a dar várias voltas em torno do

próprio eixo, rodopiando num giro de 360º, intermináveis vezes, até, que finalmente, se sentiu tonto, enjoado e com ânsia de vômi-to. O limite de permanência da brincadeira consistia até o momen-to que a plateia se saciasse de tanto rir.

Espoleta gargalhava fartamente, sendo acompanhada pelas crianças e pela plateia no mesmo espírito. Ela vai ao delírio com a apresentação de Pirulito. Riu tanto que seus músculos abdominais ficaram doloridos.

Vendo que estava indo muito bem na apresentação, com seu “amigo” macaco, este ainda sem recobrar seu estado normal, ain-

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da meio tonto e vendo vertigem; é sobressaltado novamente por Pirulito, que tem outra infeliz ideia. Agora o palhaço Pirulito que-ria que ele corresse em círculos, dando cambalhotas e várias voltas naquele enorme tablado circular. Depois, sem descansar, exausto e quase desfalecendo, Pirulito traz o macaco puxando-o por uma apertada coleira atada ao seu pescoço. Pirulito presumindo que tal macaco estava fazendo “corpo mole” puxa abruptamente a coleira quase o enforcando.

– Se levanta macaco desgraçado. – pensa Pirulito consigo mesmo enquanto puxa a coleira impetuosamente.

Vendo que todos já estavam fartos do número, Pirulito deci-de partir para um ato elogioso final. Afinal sua apresentação tinha de ser bem melhor da de seu antecessor Espirro.

–Macaco rabicó, a criançada e a plateia do circo Dallas é ou não é a mais linda do mundo?

O babuíno faz o sinal com a cabeça de positivo mecanica-mente, previamente ensaiado, movendo o rosto pra cima e pra baixo, múltiplas vezes.

–Macaco rabicó, e a Espoleta? É a palhaça mais bela desse mundo ou não é? – pergunta de novo Pirulito agora com vistas a fazer um gracejo para com sua pretensa amada.

Repete o mesmo sinal o macaco, que já aquele momento, queria ver tudo aquilo acabado e voltar para sua jaula, ainda que fétida, fria e insalubre como um cárcere.

–E agora macaco rabicó, pra finalizar, que tal dá uma salva de palmas para esses espectadores maravilhosos e um belo sorriso para minha amada Espoleta?

Vendo que o macaco já estava resistente e mais lento ao res-ponder seus comandos, Pirulito, de pronto, dá-lhe um violento be-liscão nas costas, sem que ninguém percebesse. Logo depois, o símio força um sorriso com os dentes caninos ausentes e cheios de tártaros e cáries.

Findo o duelo, ficou manifesta que a apresentação do ma-caco comandada pelo palhaço Pirulito superou aquela do coelho mágico, proposta por Espirro. Espoleta já estava convencida de sua escolha. Chega o importante momento. Espoleta tinha que explici-

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tar qual tinha sido a melhor apresentação e, por conseguinte, aque-le que havia conquistado o seu amor. Reforçado pelo forte apelo da plateia, Espoleta acaba escolhendo, com convicção, o palhaço Pirulito como seu mais novo amado. Este não se contém de tanta emoção e desmaia escandalosamente depois de saber do esperado resultado. Depois de acordar já nos braços de Espoleta, perceben-do a tristeza inconsolável do rival perdedor, Pirulito se compadece, dizendo:

–Não fica triste meu amigo palhaço Espirro. Olha, eu tenho uma amiga bem bonita que está doida pra casar também.

–É mesmo Pirulito e você me apresenta a ela? – se reanima Espirro.

–Claro meu amigo, eu nunca te deixaria na mão depois de tantos anos de parceria.

–Tá bom e cadê ela? – pergunta Espirro ansioso em conhe-cê-la.

–Calma aí que eu vou já buscar. Vai demorar um pouco, pois ela sempre gosta de andar bem bonita e muito bem arrumada.

Pirulito se retira para os bastidores, levando consigo seu ma-caco.

É quando, como última cartada da noite e para encerrar o número da tríade de palhaços, foi realizado uma cena que nin-guém jamais esperaria naquele dia. Como grand finale, não satis-feitos com as presepadas orquestradas em face do pobre babuíno, ainda tiveram o disparate de fantasiá-lo de noiva. Isso mesmo. De início borraram, propositalmente, todos os seus lábios superiores e inferiores com batom humano. Depois não satisfeitos com o pri-meiro contrassenso, ainda colocaram-lhes enormes cílios postiços, um véu, grinalda, buquê de flores e uma caixinha de veludo con-tendo dentro, um par de alianças improvisado.

Ao aparecer em cena com o babuíno todo travestido de noi-va, veio o ápice da insanidade. Todo o circo veio ao delírio. Riram, mas riram muito, daquela ridícula e vexatória cena. Jamais, em ne-nhum momento da apresentação, toda a plateia tinha sido unísso-na no riso como dessa vez. As gargalhadas bem sonoras duraram por mais de 10 minutos ininterruptos. Ao final, todos ainda aplau-

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diram, veementemente, o assédio moral face ao pobre animal. Seu coração, em frangalhos, não entendia tamanha irracionalidade e seus olhos transbordavam de lágrimas, diante de tanto aviltamen-to, coisa que o fez sentir ferido em sua alma e seu brio masculino, de morte.

De um lado, o palhaço vencedor Pirulito, demasiadamente feliz por ter se sagrado campeão no duelo e conquistado o coração de sua venerada Espoleta. Do outro, Espirro, macambúzio, tendo que se contentar com o “casamento arranjado” com a “macaca” rabicó.

–Antes ter ficado pra padrinho de casamento do que ter que casar com essa macaca horrorosa – resmunga o Espirro, encerran-do assim, a última fala do trio.

Finalizada a apresentação dos palhaços. As luzes se apagam, os dois “casais” saem de cena e são aplaudidos de pé pelo públi-co. Era fim, então, da primeira parte da apresentação da noite. É dado um breve intervalo de 15 minutos para a plateia ir ao banhei-ro. Outra parte de espectadores, sem nem tempo de pensar, eram coagidos pelos seus pequenos e malcriados ditadores, digo, seus amados filhos, obrigando-os a abrir as respectivas carteiras, para comprarem refrigerante, pipocas, churros, crepes, sorvete, algodão doce e muitas outras mais guloseimas que saciasse o ávido pala-dar infantil e (des)nutritivo da plateia mirim. As arquibancadas estavam lotadas, demora-se um pouco para esvaziar todo o recin-to. Enquanto isso, funcionários do circo, preparavam o tablado, e principalmente, a instalação de gradis de proteção entre o palco e a plateia, por conta da segunda parte da apresentação, dessa vez, com a participação dos bichos maiores.

Em meio a todo aquele entrevero, de gente indo e vindo, comprando lanches, se encontrava aquele jovem casal de universi-tários, Gustavo e Rafaela, igualmente, destinados a sair em busca do sanitário para depois, quem sabe, fazer uma boquinha, porque ninguém é de ferro. Ela, lógico, foi para o lado dos sanitários fe-mininos, ele, para o masculino, bem mais afastado, já próximo as jaulas onde se confinavam os animais. Era um lugar soturno e muito mal cheiroso. Como se não bastasse o forte odor de fezes e

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urina dos banheiros humanos mal higienizados, ainda contavam com o gravame, de serem avigorados pelo fedor dos excrementos dos animais, que continham jaulas mais mal higienizadas ainda. Ambos, Gustavo e Rafaela, tinham saído da faculdade dire-tamente para o circo. Antes de se dirigirem ao espetáculo, Gustavo havia acabado de assistir a última aula da disciplina de Filosofia Moderna Alemã. Tomou grande afinidade com a matéria, tanto que trazia consigo, a monumental obra O Capital do alemão re-volucionário Karl Marx. O livro - em volume único e composto com páginas em papel “bíblia” - era uns dos poucos exemplares existentes e disponíveis na biblioteca central de sua universidade. Locou o raro livro com a intenção de colhimento de referencial teórico para embasamento na elaboração de seu primeiro artigo científico, com vistas a ser apresentado no VII Congresso Marxista Internacional, do próximo ano, que teria como sede, a cidade de Trier na Alemanha, terra onde nasceu o comunista.

Como dito, o jovem havia se apartado, momentaneamente, de sua amada com a intenção de visitar o banheiro. Ao abrir a porta, não suporta o mau cheiro e logo ocupa uma das mãos para esticar a gola da camisa em direção as suas narinas, para vedação, com vistas a simular um “filtro” atmosférico das partículas mal cheirosas. A outra mão tratava de abrir, com muita dificuldade, tanto o zíper como também, buscava viabilizar as demais ações necessárias para que o mesmo conseguisse urinar.

Apesar do paliativo com a camisa, tudo foi em vão. Bactérias passam direto de suas vias nasais indo diretamente para seus pul-mões e consequentemente, para sua corrente sanguínea. Ao sair em direção de volta ao circo e aos braços de sua namorada, de tão desorientado que ficou com o mau cheiro, nem percebeu que sua mochila - agarrada nas suas costas como um filhote de maca-co - havia ficado entreaberta. O desleixo foi suficiente para deixar cair no chão o seu livro O Capital, sem que o mesmo percebesse, enquanto fazia seu percurso de volta.

O enamorado casal, como se nada tivesse acontecido, retoma aos seus aposentos com vistas a assistirem o final do espetáculo. Gustavo não via a hora daquilo tudo acabar, pois já estava ansioso,

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em levar sua amada, direto para seu ninho e mostrar como age um animal selvagem em seu mais delicioso instinto. Na segunda parte do show, eles mais se amavam do que assistiam o espetáculo, pro-priamente dito. No calor das emoções libidinais, nada a sua volta mais importava, o circo, os lanches, o livro perdido... afinal esta-vam comemorando dois anos de namoro. Qualquer lugar para sair seria um bom pretexto para um ficar do lado do outro, estreitando essa doce relação emocional, que é amar. A sintonia era tão per-feita, que os amigos mais íntimos de ambos apostavam até, num futuro casamento.

Como os “animais menores” já estavam dispensados daquela noite, por já terem se apresentado, tal como o coelho e o macaco, era comum, antes de irem para o cárcere, ou melhor, para a jaula, eles transitarem muito próximos ao corredor de banheiros masculi-nos, separados de seus aposentos, somente por um espesso gradil. O coelho era conduzido a uma outra ala, mais distante da dos ou-tros. Enquanto isso, o macaco era arrastado pelo seu (des)tratador, que guiando-o até sua jaula pela coleira. Porém, quando mais nada se esperava naquela noite, o sempre atento macaco percebe que o mesmo havia pisado num estranho volume em meio às serragens.

O ambiente estava escuro. Até a pouca luz advinda da lua era suplantada pelas enormes estruturas do circo. O macaco só conseguiu visualizar o estranho objeto com uma capa vermelha bem chamativa. Mas, isso, foi o suficiente para chamar-lhe aten-ção e ver que aquilo não se tratava de um objeto comum. Num reflexo espantoso, em milésimos de segundo, o macaco decide, então, recolhê-lo, sem que seu condutor percebesse. Pega então o macaco, o aludido volume, escondendo-o pelas costas, mesmo sem ter noção nenhuma, de que tratava o tal elemento.

Ao chegarem defronte a porta da jaula o tratador pega um molho de chaves enferrujadas e abre-a, lançando o macaco feroz-mente no fundo dela, ainda com a tal coleira no pescoço. Com a força do empurrão, o macaco logo cai de cara no chão. O volume cai para o outro lado. O tratador fecha o cadeado. Antes mesmo que pudesse implorar para que o tratador tirasse ao menos a algema, digo, a coleira de seu pescoço, ele vira as costas e sai rapidamente,

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como se nenhum princípio humano estivesse sido suplantado. Ao ver o abrutalhado tratador saindo, o babuíno pensa consigo:

“Perdoa-lhe Senhor esse pobre coitado não sabe o que faz.” Dito isso, devidamente resguardado em sua privacidade, o

babuíno, retoma a olhar rapidamente para aquele objeto que havia apanhado e vê que se trata de um livro. Sentado, lê soletrando com demasiado esforço, cada letrinha presente no título da capa:

“O C-a-p-i-t-a-l de... de K-a-r-l M-a-r-x...”

* * *

Começa, então, a segunda parte do espetáculo. Hermman Jr., um dos herdeiros do circo, toma a frente das apresentações. A outra legatária, sua irmã, se encontrava na Europa estudando Artes Cênicas, com vistas a se formar, para poder depois, retornar ao trabalho no circo como artista, assim como o irmão. Enfim, competiu a Hermman Jr. a incumbência de surpreender a plateia, levando-a ao delírio. Ele costumava tirar o fôlego dela.

Sua função consistia na de ser o domador oficial do circo. Dominar os bichos mais ferozes e selvagens foi a prova de fogo que o Mr. Hermmam confiou ao filho, com o intuito de saber, se ele teria ou não, condições de assumir o comando do circo depois que ele falecesse. No início, cheio de dúvidas, o jovem resistiu, mas logo depois, vendo a rentabilidade sustentável do negócio, acabou achando mais prudente comprar a ideia; atendendo assim, a von-tade dos pais e perpetuando a saga circense da família Coperfield, que vem passando o domínio do circo de geração em geração.

Coragem e disposição ele tinha de sobra. Era um jovem alto, forte, destemido e espirituoso. Com o cabelo aloirado e comprido até o pescoço, alguns visitantes chegavam a compará-lo ao herói mitológico Hércules, por conta da sua peculiar valentia em afron-tar os animais mais valentes. Carregava consigo, a tira colo, um vistoso chicote de couro entrelaçado reforçado internamente com várias camadas de aço e outros espigões pontiagudos embutidos. Fora isso, por debaixo da camisa, próximo a cintura, por precau-

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ção, tinha também uma máquina de choque de 220 volts para ele-trizar os bichos mais agitados, caso fosse necessário. Cada chico-tada, dependendo da intensidade, era capaz de cortar o couro e a carne de qualquer animal, até mesmo, daqueles de carapaça mais grossa e resistente.

Os primeiros animais a entrar em cena foi um casal de tigres. Um de seus números principais, dentre outros, consistia somen-te em saltar de uma enorme banqueta para outra, repetidamente. Logo depois, após uma série de movimentos nessa mesma linha, para terminar, Hermmam Jr. ainda fez com que os dois tigres fi-cassem “sentados” e depois ajoelhados como se os mesmos esti-vessem prostrados tomando benção, tendo a sua frente, somente o seu “deus” o jovem domador, o “senhor” dos seus destinos. Com esse gesto, Hermmam Jr. queria dá a entender que tinha o controle total da situação, além da ratificação cabal de sua autoridade, pe-rante feras, outrora tão sanguinárias e dominadoras nas florestas. A plateia ficava estupefata, principalmente os adultos. Os tigres, apesar da resignação, obedeciam tudo, rigorosamente, sempre sob a supervisão ameaçadora do tal açoite encouraçado.

Saindo da seara dos felinos era a vez, agora, do elefante. Toda uma atenção especial era dada para o manuseamento de um animal daquele porte. Apesar daquele enorme corpanzil, ainda sim, seus movimentos eram lentos, bem calculados e sutis. Tão imponente, mas ao mesmo tempo, tão fácil de ser manipulado ou até mesmo, abatido. Sua compleição física avantajada não correspondia com ingenuidade estampada em seu semblante. Era daqueles que de tão meigo, dava vontade de pisar. De tão cegos e tapados, por uma espécie de psicopatia coletiva, a plateia não percebia que o elefante estava mutilado, sem suas presas. Seu número se resumiu a subir com as patas dianteiras num grotesco banquinho de madeira, além de ter de chutar também, uma de-sinteressante bola em sentido a um gol, montado especificamente para este fim.

Já quanto ao hipopótamo, este só serviu mesmo para exibi-ção. Deram-lhes um ramo de folhas para que o mesmo se alimen-tasse perante o público, e somente só. Sorte para ele, por não ter

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de passar por qualquer outro tipo de humilhação como tiveram de suportar alguns de seus colegas. Com relação à zebra, poderíamos dizer também, que ela era uma privilegiada, haja vista que sua participação era mais tranquila, se comparado com a forma trucu-lenta com que eram tratados os outros.

Cabia à zebra somente ficar cavalgando, dando voltas em círculos, no meio do picadeiro carregando nas costas, no máximo, uma jovem moça, a esposa de Hermmam Jr. A função da donze-la, consistia somente em ficar sentada sobre seu dorso, expondo sua rara beleza; além de fazer alguns malabarismos, dentre eles, a cavalgada em pé. A doce moça era uma das únicas, naquela equipe circense, que tinha uma relação humanizada em relação aos bichos. Jamais tocava ou se dirigia de forma agressiva com relação a eles, contudo, ficava reticente, em face do tratamen-to degradante ofertada aos bichos, naquele recinto. Depois, para mesclar as exposições e dá tempo para que outros bichos se pre-parassem para entrar em cena, se postaram ainda, para realizar seus shows, o mágico e os malabaristas. Nem precisa dizer que o mágico se prestou a realizar suas mágicas e os malabaristas, seus malabares.

Por fim, para finalmente encerrar o espetáculo com chave de ouro, era hora da apresentação mais aguardada naquela segunda parte, a do leão. Em qualquer circo do mundo que se preze, não poderia faltar a presença clássica do temido rei das selvas. A leoa, sua companheira desde a África, não se apresentou. Estava doente, apresentando sintomas de febre e crises constantes de falta de ar, além de uma causticante ferida numa de suas patas.

Entra em cena, então, o leão. Era um animal senil, cansado e com várias cicatrizes espalhadas pelo corpo. Conduzia, com or-gulho, uma farta juba ainda que eivada de fios brancos, na qual denunciavam sua idade pouco avançada. Além do mais, assim que fora capturado na África, havia sido castrado, ficando assim, pri-vado de concretizar um dos maiores símbolos de masculinidade de qualquer macho, que é o de gerar descendentes. Com mais essa minudência, seu brio havia sido ferido fatalmente, daquele que sempre havia se comportado como macho alfa em seu bando.

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Pois bem, o desafio proposto para sua apresentação, consis-tia em transpassar com saltos a denominada “Argola da Morte”. Um erro de cálculo qualquer poderia ser fatal. Tal apetrecho con-sistia numa pequena argola adornada pela parte de dentro com o abarrotamento de facas e estiletes oxidados, além de cacos de vidros pontiagudos. A ideia era a de que o leão transpassasse por essa argola tanto na ida como na volta.

Entretanto, não seria somente fazendo esses movimentos que ele findava seu desígnio, pois o grau de dificuldade de tal apresentação ia aumentando, gradativamente. Além do calibre da argola ser reduzida a cada salto, no final, Hermman Jr. ainda tra-taria de atear fogo na tal argola, formando um grande e perigoso círculo de fogo. O leão corajoso e sabedor da missão que lhe cabia, jamais retrocedia, fazendo tudo o que lhe era confiado de maneira satisfatória, afinal de contas, sua vida estava em risco também.

Primeiramente, incitado pelo som ameaçador advindo dos estalos do chicote de Hermman Jr., ele pula a argola em seu está-gio mais brando. Depois, a argola vai diminuindo e igualmente, ele torna a pular com sucesso. Quando, porém, do último salto, já com a argola em chamas, o leão salta novamente. Desta vez, por conta de uma leve distração, sua pata é cortada por um da-queles objetos pontiagudos e quentes. Mais uma chaga é aberta no corpo daquele pobre leão. Seu sangue escorre por entre seus pelos chegando a verter pingos rubros pelo chão. Todos fingem não ver, ao mesmo tempo em que aplaudem a última atração da noite, orquestrada pelo “bravo” domador Hermman Jr. Findo o derradeiro salto e já pelo adiantado da hora, Hermmam Jr. é informado pela produção que o mesmo deveria encerrar logo o show, sem demora.

Por fim, para repassar a ilusão de que os animais estavam sendo bem tratados, Hermman Jr. ousa em fazer um afago insince-ro no felino, e logo depois, oferece-lhe uma bela peça de carne de primeira qualidade, jogando-a bem na frente dele. Era a oportuni-dade que ele esperava. Numa espécie de orgulho saudável, o leão - demonstrando ser detentor de caráter refinado e alma superior a qualquer outro ser que respirava naquele recinto - calmamente

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se aproxima, baixa a cabeça e fareja a citada porção de carne, que exalava forte o cheiro de sangue.

Vendo que todos aguardavam para que o mesmo devorasse a peça de carne com extrema sagacidade, ele como se fosse comê-la, somente a abocanha. Com a carne entre os dentes, o leão olha para o domador, depois para plateia e imbuído de um sentimen-to elevado, balança lentamente a cabeça para os lados, enquanto toma impulso. Após isso, com a força descomunal de seu grosso pescoço, lança o referido pedaço de carne bem no meio da plateia, num espaço onde não havia ninguém. Depois, o leão vira as costas e sai como se nada tivesse acontecido. Uns se assustam, já outros, não entendem nada. Apesar do ato simples para alguns, tudo aqui-lo para o leão, havia sido simbólico. Concretizava ali, o primeiro grande ato de seu protesto. Como um rei nunca perde a majestade, através daquele gesto, o leão havia desmoralizado o tal domador.

Meio contrariado, sem graça e com um sorriso amarelo Her-mmam Jr. num sinal de reverência ao público, põe uma mão a frente da barriga e a outra nas costas se despedindo dos especta-dores. Antes de encerrar, baixa a cabeça inclinando seu tronco em direção ao chão como num cumprimento japonês. Ao retomar sua posição normal ereta, faz a promessa de que no próximo ano teria mais shows do referido circo na cidade.

Fecham-se as cortinas. Fim de mais um espetaculoso show do fantástico Circo Dallas. Já eram quase às 22:00 horas da noi-te, todo o tempo permissível já havia sido extrapolado. Algumas famílias já haviam ido embora levando consigo seus pimpolhos inebriados de sono, antes mesmo do ato final. Sai a última criatura do recinto, as cortinas se fecham, as luzes se apagam, as arquiban-cadas se esvaziam e o espetáculo, enfim, termina.

Era hora de fechar o caixa. No trailer luxuoso do Sr. Her-mmam, ele, sua esposa, seu filho e sua nora fazem a contagem do apurado da noite. Aquele dia havia sido generoso, tanto que deci-dem sair para jantar, num dos restaurantes mais caros da cidade, especializados logo em quê? Rodízio, claro. Era carne de todo tipo, até de animais com caça proibida. Levam consigo o único animal que não trabalhava naquele ambiente, um felpudo gato persa cha-

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mado Boris. Isso mesmo, era dono de um nome humano, e gozava de status de gente, ou melhor, o bichano vivia melhor que muita gente. Era o xodó da esposa de Hermmam. Ela chegava a dizer que ele era como um autêntico Coperfield, um membro da família. Era o único ser de quatro patas naquele recinto tratado a pão de ló. Passava todo o dia dormindo com toda a mordomia possível. Só acordava para comer, se alimentando sempre, com as melhores iguarias. Enfim, era o protegido dos patrões, nada lhe faltava.

A par de toda essa regalia, os outros animais haviam sido recolhidos em suas respectivas jaulas. Eram locais com gradeados enferrujados e todas muitas apertadas, sempre visitadas por artró-podes de toda sorte. As jaulas davam uns dois metros de distância umas para as outras. Eram muito mal higienizadas, e os cochos onde se punha água e alimento estavam contaminados com ovos e larvas de todos os tipos de insetos, além de uma espessa camada de lodo esverdeado. Havemos de ser justos e frisar que nem todos os circos são como esse em tela. Existem circos, onde os animais são resgatados das mãos de caçadores e traficantes sendo tratados com cuidados especiais e dentro da lei. Infelizmente, esse não era assim.

Repostos aos seus aposentos, alguns animais, como era de praxe, ensaiam alguns comentários, com vistas a pegarem no sono. Eles eram bastante unidos, havia poucas desavenças uns com os outros. Alguns não se gostavam, mas se toleravam, afinal todos estavam, nivelados por baixo, na mesma condição. Lá, não havia espaço para a arrogância, ninguém era melhor que ninguém.

– Hoje o dia foi cansativo – puxa assunto o exausto Coelho.– É verdade, mas antes de tecer qualquer comentário, gos-

taria que todos aqui, dessem uma salva de palmas para o nosso amigo Leão – intervém o Tigre macho.

– Mas por quê? O que ele fez? - pergunta a Zebra, sempre muito distraída.

– Simplesmente, no desfecho da apresentação final, ele rejei-tou a carne que o nosso adorável Hermmam Jr. lhe ofereceu. Mais que isso, jogou-a bem no meio da plateia, dando as costas para todos e saindo de cena, como se nada tivesse acontecido.

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– Foi mesmo senhor Leão? – interroga o Coelho.– Foi – responde o Leão, despretensiosamente.Nesse momento, todos os bichos começam a aplaudi-lo de

pé, calorosamente, pronunciando cada um os seus sons caracte-rísticos, com berros, uivos e relinches. Fizeram uma verdadeira algazarra por conta do ato leonino. Outros batiam seus vasilhames de alumínio de beber nas grades, com vistas a ovacionar o corajoso gesto do amigo Leão.

– Deixem de zoada bando de bicho idiota! – reclama um dos tratadores, arremessando uma enorme pedra em direção as jaulas.

O mesmo estava pegando no sono, numa rede bem próxima as jaulas, quando tomou o susto com o burburinho mais acalorado dos bichos. Por sorte, ele errou o alvo, e o pedregulho não atingiu ninguém.

– Que maravilhoso Leão! Eu não teria tanta coragem. Não é a toa que tu és tido como o rei das selvas – louvaminha o Hipopó-tamo, agora falando bem baixo, para não incitar fúria no tratador.

Surpreso com a receptividade em face do despretensioso fato, o Leão comenta:

– É meus amigos tenho milhões de defeitos, mas jamais vo-cês poderão acusar-me de ser hipócrita ou falso. Deixemos essas duas “virtudes” para os humanos, que além de serem inerentes as suas naturezas, ainda as manipulam muito bem. Já estava na hora de alguém se levantar e dá uma resposta a altura para esses infelizes. Trocaria todo o pedaço de carne do mundo, em favor de um melhor tratamento em face da minha esposa, que hoje definha naquela cela, bem longe de mim. Essa foi a modesta forma que encontrei para protestar – desabafa o Leão.

– Na verdade Leão, seu gesto foi muito nobre. Lavou a nossa alma, tanto minha, como da minha esposa, que temos que se ajo-elhar toda vez para aquele energúmeno. Lhe seremos eternamente gratos por isso. Faremos de tudo para salvar a vida de nossa amiga e sua esposa Leoa. Pode contar conosco irmão – agradece ao mes-mo tempo em que lhe presta solidariedade o Tigre.

– E jantar? Será se não vai ter jantar pra nós hoje? – resmun-ga o Elefante faminto.

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– Sonha meu filho, sonha. Esqueceu que jantar decente só pra eles, o velho Hermman e sua família – desencoraja o Coelho, a já pouca esperança do Elefante em se alimentar merecidamente naquela noite, depois de um dia duro de trabalho. - Quem sabe eles ainda tragam a sobra do restaurante e joguem para nós, como sempre fazem – arremata ele.

Percebendo que o Macaco se encontrava muito quieto, além do habitual, - sendo que este, sempre se comportava como o mais participativo e ruidoso nas conversas antes do sono, o Coelho per-gunta:

– E você Macaco? Por que estás tão quieto? O que isso em suas mãos?

– É um livro – responde o macaco, compenetrado e folhean-do, ainda sem muita intimidade, algumas páginas.

– Livro?! – retruca o Coelho admirado. – É. Achei próximo ao banheiro. Imagino que alguém da

plateia tenha deixado cair.– E qual é o título dele? – pergunta novamente o Coelho.–O Capital – responde o Macaco.A Zebra, sempre atrasada no raciocínio, se intromete.– Capital? De qual país? Minha mãe costumava dizer que eu

tinha nascido próximo da capital de Gana.Com vistas a proteger a amiga da asneira dita, o Elefante

intervém:– Cara amiga Zebra, ocupe sua preciosa boquinha comendo

o pouco do seu capim, que ainda lhe resta e depois vá descansar minha filha, pois amanhã à noite você precisa está bem forte para se apresentar. Estás com a mente cansada. O Capital aqui, é abor-dado no sentido econômico, e não urbanístico – diz o Elefante com vistas a poupar a amiga Zebra de uma resposta atravessada dos outros animais, que não toleravam as pérolas que decorriam de sua boca.

– Sério! O Capital? E quem é o autor? – se intromete o Hipo-pótamo.

– De um tal barbudo aqui chamado Karl Marx – responde o Macaco novamente.

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– O que será que quer dizer um livro que tem um título des-ses? De livro conheço muito pouco a Bíblia, principalmente aquela passagem da arca de Noé. Noé, foi um grande homem escolhi-do por Deus para resgatar os puros de coração daquela época em meio a tanta descrença, maldade e corrupção. Noé é o nosso pa-trono. Deus Jeová - vendo a desgraça que havia se tornado a terra por conta das más obras dos humanos - destruiu-a e salvou todos os nossos antepassados. Já era hora de termos um segundo Noé, pois tenho certeza, que os dias contemporâneos, são piores do que aqueles da época do dilúvio original. Louvado seja Deus pela vida de seu servo Noé. Meu maior orgulho é quando comparam Jesus Cristo a mim; Jesus, o Leão de Judá – fala o Leão de boca cheia e inflando sua autoestima.

– É, mas pelo que li aqui, esse Marx parece ser bem materia-lista e segundo me consta, também não acreditava muito em Deus não – redargui o Macaco.

– Como não? Como pode uma pessoa viver sem crenças e fé? Acho que os donos desse circo também não acreditam em Deus não. Eles são selvagens, não tem alma. Jesus tenha misericórdia da família Coperfield e desse Marx também - acresce o Hipopótamo.

– É Hipopótamo, mas por outro lado, podemos dizer que esse livro não deixa de ser uma bíblia também, mas só que contra a exploração – diz o Macaco.

Tá bom galera pra mim chega, vamos dormir, pois amanhã tem mais. Boa noite a todos – assim encerra o Coelho, a ladainha noturna.

Todos dormem, com exceção do macaco, que cada vez mais, se envolvia com a leitura daquele livro, que tinha como autor o tal cara barbudo, chamado Marx. Começa a ler, e segue assim, no decorrer dos dias, lendo página por página, com foco nas entreli-nhas e sempre meditando, até chegar à contracapa dele. Paralelo a esse fato, passam-se também, vários outros dias, naquela rotina enfadonha de apresentação do circo, e nada dele ser transferi-do para outra cidade, embora alardeasse aos quatro cantos da cidade, que a respectiva apresentação oferecida, seria a última. Faziam isso, além, claro, por conta da estratégia de marketing, e

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também pelo fato de haver sempre, ainda grande procura por par-te do público externo. Por conta disso, o Mr. Hermmam sempre decidia delongar para frente, a não saída do circo da cidade, ten-do assim, mais vários outros dias de apresentação. A reboque de tudo isso, como de costume, todos os animais se apresentavam, sistematicamente. O coelho, o macaco, o casal de tigres, o leão, o elefante, o hipopótamo e a zebra... Isso sem mencionar os cons-tantes ensaios, que mais se assemelhavam a sessões de tortura em regimes ditatoriais.

Nasce mais um novo dia, anunciado com maestria e sutileza pelo sol. Era hora de acordar. Dias antes, todos já haviam cochi-chado a respeito da mudança repentina do comportamento do Ma-caco. Conversava pouco, falava somente o básico e meditava mui-to, sempre grudado com tal livro. Nunca mais havia contado uma piada, coisa que outrora, costumava fazer com tanto entusiasmo e alegria. Preferindo não abordá-lo de supetão, com uma pergunta indelicada, o Tigre toma a inciativa, e com o fito de tentar injetar ânimo nos amigos, saúda a todos com um animado cumprimento matinal geral.

– Bom dia dona Zebra?– Bom dia seu Tigre.– Bom dia seu Hipopótamo?– Bom diaaaa – responde ele fazendo um longo e grande bo-

cejo com o bocão, enquanto volta a dormir mais um pouco.– Bom dia meu ilustre amigo Coelho? Como foi sua apresen-

tação de ontem?– Aquele infeliz do palhaço Espirro puxou minhas orelhas

novamente de forma ríspida. Mas já estou me recuperando, Jesus tenha misericórdia da alma dele.

– E o senhor Leão, como vai? – Estou meio enjoado. Ontem me deram muito sebo e pele

de boi pra comer. Estavam horríveis. Só como isso, para não mor-rer – rezinga o Leão.

– E você Macaco? Bom dia.O Macaco não responde ao cumprimento do Tigre por estar,

por demais, compenetrado em seus próprios pensamentos.

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O Coelho vendo a indiferença do Macaco em face da sauda-ção do Tigre, retoma a fala, se direcionando ao amigo símio, agora com mais veemência, para ele escutar:

– Macaco me permita. Não é da nossa conta, mas esses últi-mos dias temos notado que você está mudado. Depois que tomou contato com este livro, estás mais pensativo, absorto e calado. Pas-sa o dia riscando essas páginas com essa lasca de carvão. Você ainda não terminou de ler a tal obra, O Capital? Nosso amigo Tigre lhe ofereceu bom dia e você nem reparou. O que há de tão interes-sante nessas folhas a ponto de fazer você esquecer dos seus únicos amigos? – pergunta o Coelho, preocupado com o estado emocional e psicológico do amigo Macaco.

– Oh, desculpas meus diletos amigos! Mil perdões meu amigo Tigre. Realmente não havia escutado. Bom dia! E não ami-go Coelho, você não está exagerando. A verdade, é que mudei mesmo. Não há como ler um livro desses e não mudar. Hoje sou nova criatura, tenho outro pensamento. Este livro é uma precio-sidade, é muito esclarecedor. Na verdade, já estava era relendo. Com essa, já faço é a quarta leitura. Vocês não tem ideia de que se trata esse livro. Ele não é um livro comum, é uma cartilha, um mapa que tem o condão de conduzir quem o lê para uma vida melhor. Agora mesmo estava marcando algumas páginas e elaborando uma síntese com intuito de apresentar uma resenha dele para vocês. Por algum acaso, vocês gostariam de saber o que diz esse livro? O que posso adiantar é que a partir de conhecê-lo, vocês serão novas criaturas.

– E porque não? – provoca o Coelho.– Se puderem debater comigo, ficaria ainda bem melhor.

Mas temos que falar bem baixinho para ninguém escutar. Tudo que falarmos aqui, ficará entre a gente. Será um segredo nosso, ok? – acrescenta o Macaco.

– Assim sendo, combinado – anui o Coelho – Pode ser agora?– Sim com muito prazer.– Vocês todos se atentem para ouvir o que nosso leitor Ma-

caco tem a nos dizer a respeito do livro O Capital – convoca o Coelho.

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Todos, mais aliviados, percebendo que seu amigo Macaco encontrava-se em seu estado psicológico e emocional estabilizado; e vendo que ele, finalmente, havia regressado de sua “incursão” pessoal, se aproximam, inclinando suas orelhas em direção a sua jaula para ouvirem atentos, o que de tão impressionante abrigava naquelas páginas. Somente a Leoa não participa, pois ainda se en-contrava isolada, em grave estado de saúde.

Assim o macaco começa sua explanação:– Bem amigos, o autor do livro é Karl Marx. Ele nasceu no

século XIX que foi quando eclodiu a Revolução Industrial na Ingla-terra lembram? Ou vão me dizer que mataram essa aula? - brinca o Macaco, enquanto continua - naquela época houve a ascensão de uma nova força social, através de uma revolução, era a classe burguesa. Através de seu poderio financeiro, eles passaram a con-trolar a economia e o Estado no país inglês. Essa afirmação é tão latente, que o Estado para Marx, não passava de mero escritório da burguesia. Foi extinta a produção dos pequenos artesãos e a manufatura, passando-se a produzir as mercadorias de fabricação em série e em larga escala. Os burgueses controlavam e detinham o monopólio de todos os meios de produção, dos galpões, das má-quinas a vapor e de tear, além da mão de obra proletária. Com a produção vertiginosa de bens materiais com valores comerciais que eles mesmos impunham, obtiveram lucros voluptuosos, o que redundou na acumulação de capital. Vendo que o negócio estava muito vantajoso para o lado deles, não deu outra, esse modelo se espalhou por toda a Europa sendo também, copiado em várias par-tes do mundo. Por lado, como consequência disso tudo, a Inglater-ra começou a ter um forte crescimento demográfico desordenado, vivendo assim, seu próprio caos urbano. As chaminés das fábricas acabaram poluindo a cidade e a base de sustentação do sistema, era a exploração da mão de obra desqualificada, os operários. Com esse desequilíbrio social baseado no egoísmo crônico de um gover-no para poucos, cresceu-se os índices de violência, prostituição, sujeiras e pestes mortais. Isso tudo, senhores bichos, é somente uma face daquilo que chamamos de capitalismo. E pasmem, ainda hoje é assim. É o capital que sustenta o imperialismo e dominação

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de uns para com outros. E qual é o lado legitimador disso tudo, ou seja, a massa que sustentava tudo isso? Os proletários, os trabalha-dores explorados. Entenderam essa parte? - pergunta o Macaco se dirigindo a todos os amigos.

– Sim - todos responderam de forma uníssona, todos eles, inclusive a Zebra que não estava entendendo patativa nenhuma, mas disse sim, para não ser taxada de burra perante os demais.

– Pois bem, vamos então a segunda parte e onde realmente quero chegar, a meu ver a mais importante, que é que fala os pro-letários – o Macaco empolgado, agora se pronuncia gesticulando com os braços e sempre falando com o queixo levemente erguido para cima. Demonstrava agora seu predomínio no uso da eloquên-cia e da oratória, expondo, até então, esse lado desconhecido entre seus colegas. Sua fala agora estava embutida de um grande poder de convencimento. – Pois bem, – retoma o Macaco – percebemos que Marx se utilizou muito da dialética como estratégia didática para melhor entendimento de sua teoria. Ele pôs de um lado, os patrões, burgueses e os meios de produção, e do outro, os traba-lhadores, proletários e a força de trabalho. O conflito entre as duas forças, ou seja, das lutas de classes é que seria, na teoria marxista, o motor da história. Foi justamente nesse espírito combativo que nasceu e se desenvolveu o capital. Com base nisso, todo patrão era capaz de enriquecer a custa dos trabalhadores submetidos a um regime de horas estafantes de trabalho alienado, sendo que eles próprios, viviam retirados, afastados dos parques fabris, go-zando do frescor oferecido pelas paisagens bucólicas de ar puro. Pra vocês terem uma ideia da tamanha crueldade, até mulheres e crianças foram utilizadas como mão de obra, em regime de es-cravidão, ao passo que pagavam menos a eles, se comparado ao salário de um trabalhador adulto do sexo masculino. Devido a isso, muitos morreram de acidente de trabalho, exaustão e suicídio. En-fim, caros amigos, em face de toda essa conjuntura exploratória, Marx propôs a junção de todo o proletariado, a fim de implantar a Ditadura do Proletariado, única força capaz de virar esse jogo, para depois instalar a fase final de toda essa luta, que seria a im-plantação do comunismo. Este sistema contrapõe o capitalismo,

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e tem como principal característica o fim da propriedade privada e dos meios de produção concentrado nas mãos de particulares. Isto feito, seria distribuído toda a riqueza do estado para todos indistintamente, assim como fazem muito bem os índios. A eco-nomia passaria, então, a ser regulada pelo Estado, seria aplicada a teoria do socialismo científico. Ele fala que a mobilização entre os proletariados é a única força capaz de alterar sua história, através da mobilização, haja vista do disparate de que os proletários, são os de maior número. Visto isso, agora eu pergunto a todos? Vocês conseguem visualizar alguma relação dessa teoria com o que pas-samos aqui neste circo? Isso tudo, meus caros, é só uma pequena parcela de seu denso pensamento, pois ainda nem falei da famige-rada mais valia...

– Mais valia? – retruca o Coelho.Antes mesmo do Coelho ser sanado na sua interrogação pelo

Macaco, em meio da explicação a Zebra, disléxica, interrompe não perdendo a deixa para emendar uma das suas:

– Se tá errado fazer a mais valia, o certo é fazer a menos va-lia ou fazer com que a mais valia não valha mais nada?

– Dona zebra mais valia, é mais ou menos como a hora extra não paga ao trabalhador. Seria a sonegação de salário integral, por assim dizer. Um roubo, para ser mais claro. É como o cristão que não devolve o seu dízimo. O certo é trabalhar somente pelo o que se recebe. Nem mais, nem menos. Fui claro? – ajuda o Elefante.

– Mais ou menos – responde a Zebra que, na verdade, nova-mente, não estava compreendendo era nada.

– Isso mesmo Elefante obrigado! E ainda, segundo Marx, podemos classificar a mais valia em absoluta e relativa – reforça o Macaco - não vou entrar no mérito desses outros detalhes, pois a obra é muito densa. Mas o quero que vocês internalizem é que estamos aqui por fatores alheios a nossa vontade. Somos resulta-dos cabais de um passado de exploração. Nosso sofrimento hoje é resultado de um sistema cruel e desigual orquestrado lá atrás pelos donos desse circo. Essa opressão foi construída, ao longo de toda a história, por uma ideologia falsa, de que uns são melhores que outros, e que por isso aqueles merecem ser governados por estes.

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Cada um, cada grupo constrói sua estratégia de dominação através de suas respectivas revoluções, muitas das vezes, com muito suor e sangue derramado. Não existem sujeitos predestinados a um tipo de vida sofredora e outros a uma vida de felicidade. Só são domi-nados aqueles que aceitam essa dominação, seja por imposição, seja pelo carisma. De que adianta vivermos de cabeça baixa como os porcos só dizendo amém a tudo que proferem e decidem os humanos. Marx nos deixa claro que só nós, os explorados, somos capazes de mudar nossa realidade através da ação. E aí agora eu pergunto, vocês estariam dispostos, a lutar por um ideal? Ou fica-remos quietos e acomodados e sendo escravos, nessa prisão perpé-tua chamada Circo Dallas? Estão dispostos a fazer história e a lutar pela vida com liberdade tal como merecem todos os seres vivos?

Aquele momento, até um dos bichos que já dormia, mesmo com os olhos fechados, levantou uma das orelhas para escutar aquela teoria tão cortante e elucidativa. O debate vai ficando in-tenso.

– Me permita um aparte senhor Macaco? – interfere o Ele-fante.

– Sim. Claro! Inclusive seria bom que todos se manifestas-sem.

– Ouvi atento a referida doutrina proposta por esse senhor chamado Marx. Tenho de concordar, em gênero, número e grau com esse senhor. Mas acho um eufemismo comparar esses tra-balhadores a nós. Pelo que consta, esses trabalhadores eram só explorados e quanto a nós? Nós só não somos explorados, como também abandonados, mastigados, mutilados, humilhados e até assassinados. Se eles fazem isso com a própria espécie deles, ima-ginem com a gente? Não foram eles que nos rebaixaram, classifi-cando-nos como inferior nos livros de biologia, doutrinando suas crianças e lecionando essa falácia como se verdade fosse mundo afora. Eles usam nossas carcaças para fazer sabão. Devoram a gen-te e jogam os nossos restos mortais aos cães e lixos, como se tivés-semos nascidos para servi-los – diz o Elefante.

– É verdade! Melhor morrer em pé lutando do que viver ajo-elhado – reforça o Tigre.

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– Por isso mesmo é que digo e reafirmo que essa mensagem é direcionada aos oprimidos em situações iguais as nossas amigo Elefante – acrescenta o Macaco agora, levantado e andando para um lado e outro, enquanto olha fixamente para os olhos de cada um de seus amigos - Quantas gerações irão ter de passar por isso que nós passamos? Estamos longe das nossas casas, de tudo e de todos, privados de convivermos com nossos pais, nossas mães, es-posas e filhos, o nosso bem maior. Quem de nós não carrega uma cicatriz no corpo e na alma? – fala o Macaco levando as mãos ao peito e fazendo cara de choro em tom dramático. - Vocês acham que nasci mesmo sem calda? Meus pais e toda minha família foram assassinados e meu rabo cortado a facão quando era filhote. Hoje me chamam de Macaco rabicó. Tive de conviver com esse estigma desde minha infância e juventude. Sei que vou carregar essa defor-midade pelo resto de minha vida. Mas, em verdade vos digo, hoje o meu rabo passará a ser a minha luta! E aquelas roupa de noiva, sendo eu travestido de mulher, de noiva com aquelas maquiagens ridículas. Toda aquela gente insana rindo da minha cara noite após noite, em detrimento da minha honra de macho aviltada. Antes carregasse várias cicatrizes somente no meu corpo e na minha alma? Quantas injustiças e assassinatos de amigos nossos já não testemunhei? Não sei vocês, mas não quero passar meus últimos dias como escravo nas mãos da família Coperfield. De igual modo, não desejaria que minha descendência passasse sequer um dia do que eu - a vida toda - tive de suportar. Precisamos construir um mundo melhor para nossas futuras gerações. E sei que vocês todos têm uma história parecida. Querem ver um exemplo? Você seu Elefante como veio parar aqui? - pergunta o Macaco apontando o dedo e desafiando uma resposta do amigo Elefante.

– Não foi muito diferente da sua amigo Macaco. Estava com minha esposa e meu filho, colhendo alguns arbustos para comer, quando percebemos um barulho do céu, de um moderno helicóp-tero se aproximando. Assim que se aproximaram do solo, a poeira provocada pela hélice, fez com que ficássemos com nossas vistas comprometidas, com pouca chance de visão e reação. Depois, mais de quinze mercenários desceram atirando dardos tranquilizantes

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em nossa direção. Por terra, outros três jipes davam cobertura a aeronave. Logo percebi que tinha sido atingindo por centenas de-las, mas mesmo grogue, ainda consegui proteger minha esposa e meu filho. Graças a Deus eles conseguiram escapar. Antes mesmo de adormecer por completo, eles cerraram minhas presas arran-cando-as de modo brutal. Quando acordei, já estava sem elas e na América. Depois daquele dia, nunca mais vi minha família.

– E você Hipopótamo? Como conte-nos a sua história? – faz a mesma indagação o Macaco.

– Bem, estávamos na lagoa, quando eu, meu bando e toda minha família fomos cercados por um grupo de ambientalistas dis-farçados. Eles nos atraíram com comida, e logo depois nos levaram para um laboratório, onde extraíram amostras de nossos sangues. Após isso, alguns foram devolvidos as savanas, mas outros, como eu, fomos traficados, e assim, eis me aqui. Minha família? Oro todo dia para que não tenham ido para outros circos ou zoológicos espalhados por esse vasto mundo.

– E foi assim com a Zebra, com os Tigres, com o Leão... e milhões de outros bichos. O que nós fizemos para merecer isso? Estávamos em nosso habitat vivendo nossas vidas, quando os hu-manos se acharam no direito de invadir nossas terras e sequestrar nossas famílias. Precisamos acabar com esse sofismo dessa tal ca-deia alimentar que é absolutamente falsa. Vejam nossos rostos. As presas do Elefante extirpadas pela metade, pois foram negocia-das no mercado ilegal como marfim. Vejam a situação dos felinos com seus caninos e garras arrancadas com alicates. E o que dizer da dona Leoa agonizando ferida e privada de cuidados urgentes? Quer dizer que isso é natural? Abater nossos irmãos e tirar nossas peles e nossas cabeças para serem postas a prêmio, além de serem utilizadas também como confecção de tapetes e casacos de peles caríssimos. O que fizemos para merecer tanto sofrimento? Quantas espécies já foram extintas e que jamais nascerão? – retoma a fala o Macaco.

– Que cargas d’água ainda puxam minhas orelhas em pleno século XXI. Tão mais fácil seria trocar-me por um coelho de pelú-cia. O efeito seria do show seria o mesmo. Acho que há uma espé-

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cie de sarcasmo incrustada no âmago de cada ser humano, que tal-vez, nem eles mesmos percebam. Um sadomasoquismo embutido, pra mim eles não passam de psicopatas. Mas será que esse povo é tão burro para pensar que um bicho poderia sair de uma cartola? Haja paciência. Até quando vai persistir esse mito meu Deus? Até quando? – reforça o Coelho.

Vendo que todos já estavam mais receptivos ao doutrina-mento abalizado no tal ensinamento marxista, o Macaco começa a instigar os ânimos mais ainda.

– Imaginem agora vocês, essa exploração que vivemos aqui, sendo reproduzida pelo mundo afora nos zoológicos, nos currais, nas fazendas e nos abatedouros legalizados e clandestinos. E os cursos de veterinária, utilizando-se de nossos corpos ainda vivos para estudo? E as clínicas de cosméticos que testam seus produtos em nossas peles? E nossos irmãos camundongos utilizados como cobaias em laboratórios submetidos a todo tipo de experimentos? Até orelha humana já transplantaram nas costas de um inofensivo ratinho. E os caçadores? Dentre todos, esses são os mais pernicio-sos, pois nos matam por lazer, por esporte, somente para tirar uma foto e expor para os amigos. Esse sistema vem sendo espalhados em todos os continentes. Nós somos a maioria e mais diversifica-dos. Temos um exército e não sabemos tirar proveito dele a nosso favor. Na marinha temos os peixes, no ar as aves, na terra as tou-peiras, tatus e minhocas. Isso é tão verdade que os homens, em tudo, copiam da gente. Só há uma esperança para nós: clamar por igualdade e depois inverter o processo de dominação. Dominan-do os humanos dominaremos todos esses outros, usufruindo de toda a riqueza que todos produzirem. Pergunto novamente meus caros. Que raio de crime nós cometemos? Porque somos escravi-zados? Porque nos confinam nessas solitárias? Vejam na China, os cães são abatidos ainda filhotes somente para servir de iguarias. Baleias e tubarões capturados somente para serem extraídos suas barbatanas por sua “propriedade medicinal”. Basta ver na inter-net. Dizem que nós somos irracionais, mas quem fazem as guerras são eles e não nós. Querem exemplos? As bombas de Hiroshima e Nagasaki, o holocausto, o Agente Laranja, o acidente químico de

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Chernobyl... Até o Titanic, eles conseguiram afundar, até o Titanic meus caros. Isso é maior das provas de que o homem não passa de um animal irracional e incompetente. São autodestrutivos por natureza. Mas antes de se destruírem a si, acabarão primeiramen-te conosco, os animais e depois com a terra, caso não façamos nada. Nós vivíamos na África só matávamos para nos alimentar. Mas assim, infelizmente não pensam os homens, eles se acham as coisas mais importantes da natureza, só porque são “racionais”. Racionais ora essa, e como é que vivem matando uns aos outros? Se isso é ser racional, prefiro ficar com minha irracionalidade. Em certas épocas e ocasiões, eles chegam a devorar uns aos outros de diferentes maneiras. Isso mesmo, são canibais! Um já elimina o outro sem muito esforço, diretamente ou indiretamente. “O ho-mem é o lobo do homem.” já dizia Hobbes. Nessa máxima só há uma ressalva fazer. Eu corrigiria a frase, defendendo nosso amigo lobo, dizendo o seguinte: “O homem é o homem do homem.” Esse Hobbes, diferente dos outros da sua espécie, poderíamos dizer que era um humano mais sensato. Queria ver essa marra toda com os nossos antepassados, os dinossauros. Bastava um Tiranossauro Rex ao nosso lado para não restar nenhum desses humanoides na face da terra. Não passariam de petiscos. E aquele infeliz chamado Charles Darwin ainda vem com essa história de que eles vieram da gente, faça-me o favor. Eles vieram foi do demônio não da gente. Concluindo, o humano é desumano por natureza. Falam tanto de Direitos Humanos e os nossos direitos? Como ficam os Direitos dos Bichos dos Direitos dos Vegetais? Quem foi que incutiu na cabeça deles a falácia que nós estamos aqui para servi-los. Poderíamos discutir a criação da Declaração Universal dos Direitos dos Bichos. Com isso, em breve, todos os animais estarão frequentando as es-colas, indo aos shoppings, andando de ternos como executivos e estudando em universidades. Terão a chances de serem juristas, economistas, empresários, intelectuais, médicos, astronautas e po-líticos. Seria a implantação da igualdade entre todos. Imaginem um elefante indo ao supermercado passando suas compras no cai-xa? Uma girafa desfilando pelos shoppings com uma bolsa Carmen Steffens a tira colo e sapatos Dior nos pés. Seria a glória. O que

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alimenta esse Campo de Concentração ambulante, essa banalidade do mal itinerária chamada de circo? Essas pessoas alienadas finan-ciando a alegria de uns em detrimento da tristeza de outros.

Tentando, fundamentar sua ideia utilizando o viés religioso, o Macaco robustece seu discurso comentando:

– E já que estamos entre cristãos, quem não se lembra da história do levita Moisés, o maior profeta da terra, abaixo de Je-sus? Lembrem vocês que foi confiado a Moisés tanto a libertação do povo hebreu, como também a condução para que os mesmos fossem dirigidos a Canaã, a terra prometida. A história de Moisés, assim como a da agente, foi fruto de opressão dos faraós para com o crescimento do povo judeu. Quando o faraó ordenou que todos os filhos recém-nascidos hebreus fossem mortos, sua mãe lhe pôs numa cesta para que o mesmo se salvasse descendo por um rio. Pequeno, fora resgatado por uma princesa egípcia que o levou para o seu palácio como se seu filho fosse. Moisés viveu quarenta anos como um autêntico egípcio, até que um dia, viu um hebreu sendo injustamente açoitado por um feitor egípcio. Vendo essa cena, ele não se conteve e matou o castigador, enterrando-o na areia. Deus incumbiu a Moisés, para que o mesmo negociasse a liberação dos hebreus, das mãos do regime opressor egípcio. De-pois de muito, insistir e vendo que o faraó não cederia, Deus lança as dez pragas sobre seu reino e todo o seu povo egípcio. O rio virou sangue, pragas invadiram seu luxuoso palácio e seus corpos foram tomados por úlceras. Deferida a última e fatal praga, o faraó com seu primogênito morto nos braços, decide, enfim, libertar o povo hebreu. Arrependido, e dono de um coração duro, ainda en-gendrou a perseguição ao povo hebreu quando este se dirigia em direção à terra prometida. Foi quando, com seu cajado e anuência de Jeová, foi aberto o mar vermelho para o povo passar. Isso sem falar que foi Moisés que trouxe a tábua dos dez mandamentos lá do topo do Monte Sinai, escritos com o próprio dedo do Altíssi-mo. Deus não quer que soframos nas mãos desses faraós, digo, humanos. Assim como o povo de Moisés foi escolhido para livrar da opressão egípcia, se assim acreditarmos, acontecerá conosco também.

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– Sim seu Macaco, já entendemos tudo. Não há como não reconhecer tudo o que vemos passando. Mas o que Marx propõe para mudar isso? Ainda há esperança para nós? – pergunta o Leão.

– Sim meu amigo, ainda há chances para nós e a resposta é simples: temos de ir à luta. Nossa vida só depende da gente. É só adequar essa doutrina marxista as nossas condições e nossa reali-dade – responde o Macaco.

– Muito bem senhor Macaco apoiado. MORTE AOS HUMA-NOS! Já estou até sentido o cheiro de sangue em minhas narinas. Se preciso for, pela revolução, serei até o primeiro Tigre bomba da história – fala o Tigre, mais fanático, se prontificando para uma ação mais extrema.

– Calma Sr. Tigre tenha paciência. Nossa intenção não é ma-tar ninguém, senão deslegitimaríamos nossa luta. Só queremos direitos de igualdade e retornamos a viver em paz com nossas famílias nas florestas. Afinal, nem todos os humanos são ruins para com a gente. Lembrem dos biólogos, dos ativistas animais, dos ecologistas sinceros e dos praticantes do vegetarianismo. Eles poderão nos ser úteis, sendo nossos aliados. Na nossa possível revolução, não iremos tolerar os excessos. Não vamos matar, mas também, não seremos iguais a Gandhi, tolerando tudo de maneira pacífica, sem revanche. O uso de nossa força, será usado propor-cionalmente, como em qualquer revolução. Não deveremos, em nenhuma hipótese, agir sob a égide da emoção. Ainda não estamos a fim de construir nossos mártires amigo Tigre. Somos revolucio-nários, não terroristas. Devemos ser prudentes e justos em nossa caminhada – arrefece os ânimos do Tigre, o Macaco.

– Então, quem de nós aqui está disposto a entregar sua vida pela revolução?

Por um instante, os bichos olham uns para os outros e como numa avalanche emocional e contagiosa todos levantam as “mãos”, com grande entusiasmo e fervor, em sinal de anuência a convocação do amigo Macaco.

– Que bom, que todos estão conscientizados e irmanados em prol dessa nobre causa – suspira o Macaco.

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Os que estavam sentados se levantam, dando gritos de or-dem: “RUMO A REVOLUÇÃO!”

Quem quer lutar por uma nova era de liberdade e pelo fim da exploração? – reforça perguntando novamente o Macaco:

– Eu – responde primeiramente, o Tigre, o mais empolgado com a ideia.

– E eu – emenda o Leão. Eu também – se inclui o Elefante.– Estou dentro – respondem de forma positiva, respectiva-

mente, todos os outros bichos.Vendo que sua ideia havia sido aceita, o Macaco abre um

largo sorriso. Entretanto, apesar na anuência de todos, perceberam que a Zebra havia ficado indiferente ao chamamento.

– E você Zebra, o que acha? – pergunta o Macaco preocu-pado.

– Acha o quê?– Vai fazer parte da revolução ou não vai?– Revolução?– Sim. A REVOLUÇÃO SUA BURRA! – gritam todos em uma

só voz.A Zebra vendo que havia feito mais uma besteira se redime

assustada, dizendo:– Sim. Apoiado!–VIVA A REVOLUÇÃO. ABAIXO A EXPLORAÇÃO! ESTADO

DOS BICHOS JÁ!– gritavam todos.– Bem, já que todos aderiram, precisamos, agora, engendrar

nossa estratégia de mobilização, para depois, partirmos para a ação. Ainda sim, teremos de divulgar nossa luta, pois precisaremos muito da adesão dos outros animais. Quanto maior nosso exército, mais chances teremos de lograr êxito em nossa revolução. Pensei em dividir nosso plano em cinco fases. O sucesso final da última dependerá do nosso desempenho nas primeiras. Porém, antes de tudo, precisamos arquitetar nosso plano de estratégia e ação. Para isso, é óbvio, que devemos nos livrar dessas grades. Quem poderia fazer isso? Camarada Coelho você é o que tem menor estatura den-tre todos aqui, além disso, sua gaiola é bem mais fácil de abrir ou

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serrar. Daremos um jeito de lhe tirar daí, para depois, você tomar as chaves que está em poder do tratador. Você, dentre todos, é o mais habilitado, afinal de contas é que o mais leve e que possui a menor estatura e ainda conta com uma peculiar destreza e inteli-gência privilegiada. Amanhã, se prepare, você irá se livrar da sua gaiola, tomar as chaves do tratador e depois repassá-la pra gente, até que todos estejamos livres desses malditos grilhões que tolhem nossa felicidade. Pois bem, devidamente libertos, passaremos ao cumprimento da primeira fase, logo no domingo, da qual propo-nho o seguinte: na calada da noite, partiremos para a neutralização de todos os humanos desse circo começando pelos capatazes - ou melhor – os tratadores, depois os funcionários e, por fim, o alvo principal, a família Coperfield. Tudo deverá ser feito sem que nin-guém do lado de fora perceba. Só assim conseguiremos tomar o circo por inteiro. Depois, levaremos todos a julgamento através do nosso tribunal. Todos desse circo terão de ser julgados. Algum questionamento, complementos, dúvidas, objeções?... – interrom-pe o Macaco para se certificar se alguém gostaria de se pronunciar. De tão atentos e magnetizados, ninguém esboça reação, dando a entender a concordância unânime à ideia original do Macaco.

Depois continua: – Terminado o julgamento, incendiaremos o circo com tudo

que nele há, por volta das 4 horas do amanhecer do dia. Atearemos fogo em todas suas dependências, não restará pedra sobre pedra, nem muito mesmo lembrança desse lugar tão tenebroso para nós. Antes de dá início aos outros passos, levaremos claro, a Leoa para o melhor veterinário da cidade. Depois, em poder do caminhão Truck, nos dirigiremos ao zoológico, para libertar os cativos e au-mentar as fileiras da nossa revolução com outros bichos, nas quais carregam consigo muitas habilidades diferentes as nossas. Essa será a nossa segunda fase. Logo após, na próxima fase, a terceira, devidamente ladeados com os outros companheiros recém-arre-gimentados, iremos tomar de assalto, o Comando Geral Militar, pois lá será onde todos nós iremos nos armar, formando assim, nosso verdadeiro exército. Passaremos de um pequeno grupo de guerrilheiros rebeldes a um forte exército devidamente organiza-

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do. Faremos isso sob a orientação do nosso camarada Leão, que se todos aceitarem, será o subcomandante das nossas forças ar-madas. Afinal, vamos enfrentar uma guerra, tomaremos muitas balas e revidaremos com as mesmas. Já a nossa quarta fase, terá viés ideológico, pois querendo ou não, teremos de tomar a gran-de mídia justamente no telejornal mais visto da cidade da maior cadeia de televisão daqui. Assim, divulgaremos nossa revolução, para os demais bichos de onde até as ondas eletromagnéticas da mídia chegarem. Quando estivermos com a massa animal toda ao nosso lado, na quinta e última fase, devidamente armados, toma-remos o palácio e controlaremos o Estado. Iremos depor o chefe humano do executivo e assumiremos o trono, ou melhor, o Palácio do Governo. Esse será o estágio final de nossa revolução. Tomar o poder político, instalar o nosso Governo politicamente. O primeiro governo animal, instalando e fazendo valer os direitos iguais entre homens e animais. Será o fim do Apartheid entre racionais e irra-cionais, o primeiro Estado dos Bichos legitimamente implantado. Essa é a ideia. Todos estão de acordo com os parâmetros dessa estratégia proposta? Em discussão, em votação. Todos que concor-dam com o plano permaneçam como estão.

Vendo que ninguém se pronunciara, o Macaco proclama:– Não havendo quem queira discutir, declaro o plano de es-

tratégia aprovado! Antes de tudo, é bom termos a consciência que vamos começar nossa primeira batalha em desvantagem. Nessa fase inicial, não temos armas e estamos muito mal nutridos. Não sabemos a reação dos tratadores e da família Coperfield. Entre-tanto, devemos firmar nossa unidade, pois assim, juntos, seremos mais fortes. Para isso proponho formamos só um corpo organizado irmanados em caráter paramilitar.

– Paramilitar? – pergunta Zebra com ar pasmo.– Isso amiga Zebra, paramilitar quer dizer armados e farda-

dos igual a um exército. A partir de agora, deixaremos de ser um chulo grupelho de animais submissos de um circo e passaremos a nos chamar de o Grupo Revolucionário Armado dos Bichos, o GRAB-9. Nove, pois esse é número em referência a célula dos guer-rilheiros fundadores – acrescenta o Macaco.

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– Formação do grupo apoiado! – falaram os bichos. – Fora isso, faz necessário ressaltar, que iremos prezar pelas

ações em conjunto. Para todas as decisões mais importantes for-maremos assembleias, e tudo irá a votação, sendo decido segundo a vontade pelo o que chancelou a maioria. Todos teremos direito a voz e voto, e ambos terão o mesmo peso. Nossa bandeira terá como emblema um círculo com um mapa da África dentro, ca-prichosamente adornado com sol tendo ao fundo atrás das cores verdes representando as cores das nossas queridas savanas. Logo abaixo terá como lema em latim: “Luta ou Morte. Tudo pela liber-dade, igualdade e poder para os bichos.” E já que nos autodeno-minamos de grupo paramilitar, deveremos saber qual a hierarquia do nosso grupo.

Ouvido isso, o Coelho logo se adianta: – Macaco você será o nosso Comandante, afinal você é o

que tem melhor suporte teórico e senso de liderança para conduzir essa revolução. Foi você o maior responsável por ter desvendados nossos olhos e ter incitado essa chama em nossos corações. Além disso, fostes e ainda és o mais “humilhado” dentre os humilhados. Sua dor é a nossa dor. Nada mais justo, que nos conduza nessa longa jornada, que é essa revolução.

– Fico deveras agradecido amigo Coelho. Não sei se mereço tanto. Mas temos de saber a decisão dos nossos outros camaradas. Poderíamos até fazer um sorteio.

– Todos concordam que o camarada Macaco lidere nossa re-volução? – indaga o Coelho.

– Sim – responderam todos.– Obrigado, agradeço a lembrança então. Assim sendo, cabe-

rá a mim a distribuição das demais patentes, além de arrematar os últimos acertos do nosso plano de ação. Leão você será meu braço direito, meu General de quatro estrelas e futuro subcomandante das nossas forças armadas. Você fará a ponte entre mim, o alto comando e os demais liderados. Vocês dois, do o casal de Tigres serão Coronéis. - Recebida sua patente, logo o Tigre se empolga dizendo “sim senhor”, ficando em sinal de sentido e batendo con-tinência. - Seu Coelho o senhor será Major; Hipopótamo, Capitão

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e o Elefante Tenente. Já a Zebra deixe-me ver... Serás a taifeira e enfermeira, responsável pela nossa alimentação e pelo nosso so-corro. A partir de agora não seremos somente amigos e colegas de trabalho uns dos outros. Seremos camaradas um dos outros. Vamos nos tratar de camaradas, a partir desse momento. Todavia, é bom que fique bem claro, que essa hierarquia é meramente ilus-trativa. Nossa revolução não poderá se concentrar somente numa figura. Caso eu morra em combate outro deverá assumir imediata-mente o posto. Só assim conseguiremos perpetuar nosso governo por mais tempo. A partir de agora, devemos agir como soldados e comandantes ao mesmo tempo. A revolução deve transcender nossa existência física ou qualquer outro tipo de vaidade individu-al, pois iremos arriscar nossas vidas em hostis campos de batalha. Não esperem que os humanos venham consentir nossa luta. Eles virão com força total e com os corações cheios de amargura e ódio.

– Todos de acordo com o plano e a distribuição de patentes? - pergunta o agora Comandante Macaco.

– Sim – respondem todos em vozes uníssonas.– Amigo, digo camarada e Comandante Macaco é que é tai-

feira? Qual é mesmo a minha função? – pergunta a Zebra meio desinformada.

– Camarada Zebra terás umas das funções mais nobres que é a de guarnecer a tropa com mantimentos, água e medicamentos. Andarás com uma cruz vermelha em seu chapéu e nos socorrerá nos momentos mais atribulados.

– Certo, esclarecidos os pontos obscuros, alguma objeção quanto às outras patentes?

–Não – respondem os outros.Devidamente repassado o plano e distribuída as respectivas

patentes, o Macaco retoma seu pensamento:–Então, agora, camaradas é só esperar o grande dia. O início

de uma nova era. Finalmente iremos à luta, buscar o que é nosso por direito. Deus não criou nenhuma criatura para habitar nesse mundo com sofrimento. Não temos mais tempo a perder.

–Amigo Macaco, ou melhor, Comandante Macaco, por obsé-quio, antes de encerrar essa reunião, que tal a gente propor o lan-

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çamento da Tábua dos Sete Mandamentos dos bichos? – interfere o Hipopótamo.

–Sete mandamentos, como assim? – se assusta o Elefante.–Isso mesmo, seria como o nosso código de honra e de con-

duta.–Camarada Hipopótamo estamos fundando uma revolução e

não uma religião – contesta o Leão.O Coelho, intelectual e solidário, decide comprar a ideia do

amigo:– No todo, não acho que a ideia do camarada Hipopótamo

seria ruim. Seria bom ter uma direção espiritual na nossa jornada, uma força extra. E já que vamos fazer uma revolução por comple-to, porque não fazer uma revolução no nosso interior e espiritual-mente. Seria como criarmos nosso próprio mito fundador. Chega de adorar deuses com formas humanas.

– E quais seriam esses mandamentos camarada Hipopóta-mo? Estou curioso – indaga o Comandante Macaco.

– Pois bem, eu sugiro:

1. Não aceitarás viver submisso a qualquer espécie, sobre-tudo a humana.

2. Não matarás outros animais; a não ser por traição. 3. Não roubarás; a não ser para financiar a revolução.4. Não trairás, nem desertarás da Revolução, sob pena de

deserção e morte.5. Amarás a todas as espécies, inclusive as do reino o vege-

tal, mineral e tudo que há na natureza, como a ti mesmo.6. Repassarás a sua descendência a permeância da revolu-

ção ad aeternum. 7. Jamais negarás a soberania de Deus.

– Ouvida sua proposição, agora vi que essa ideia da Tábua dos Sete Mandamentos não deixa de ser muito pertinente – elogia o Comandante, ao mesmo tempo em que faz a pergunta. - E então, todos concordam com os sete mandamentos aqui expostos pelo camarada Hipopótamo?

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– Pra mim tanto faz, contando que não atrapalhe a revolu-ção. Eu quero ver é sangue – comenta o Tigre, o único incrédulo do grupo.

– Sim – dizem todos os outros com relação à aprovação dos tais mandamentos.

– Tábua dos sete mandamentos aprovado então – encerra o Comandante Macaco – durmamos, pois amanhã será um gran-de dia. Adormeceremos presos hoje e amanhã, acordaremos livres como os pássaros que vagueiam pelo ar. O choro pode durar uma noite inteira, mas a alegria virá pela manhã, junto com os raios do sol.

* * *

Chega o grande dia, o momento de por em ação, tudo aquilo que haviam, meticulosamente, planejado. Era domingo, à noite, o caixa do circo estava cheio. Afinal, havia sido feita a última apre-sentação da semana, os lucros de quarta, quinta, sexta, sábado e domingo haviam acumulado. Tudo transcorreu na maior naturali-dade. Todos os animais se apresentaram de forma magistral, bem mais caprichosa do que das últimas vezes, justamente para não correrem o risco de levantar algum tipo de suspeita. Ao fim do espetáculo, a família Coperfield e todos os funcionários do circo, adormeceram, com exceção claro, dos bichos, que aquele instante, estavam ansiosos, para por em prática, seus objetivos que os con-duziriam a tão peticionada liberdade. Ficaram bem acordados, ou melhor, estrategicamente quietos e deitados, fingindo que estavam dormindo.

Depois de alguns minutos, vendo que todos os humanos imergiam em sono profundo, o Coelho - o responsável para obter o molho e chaves que estava em poder de um dos tratadores – se esforçava com um espesso pedaço de presilha com vistas a destra-var o trinco da sua gaiola. Depois de muito insistir, ele consegue. Todos os outros bichos percebem que ele havia conseguido tal pro-eza. Depois do sinal de aprovação do Macaco em gestos, o Coelho

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sai em direção para cumprir o ato mais importante de toda a sua missão: resgatar o molho de chaves que estava em poder de um dos violentos tratadores. O Coelho trêmulo suava frio denotando assim, seu estado emocional um tanto quanto nervoso. Não obs-tante, todos estavam, pois caso o tratador percebesse a tentativa de furto das chaves, todo o plano viria por água abaixo. O nascedouro e o destino da revolução se encontrava nas mãos, ou melhor, nas patas daquele ser de feição tão indefesa, o Coelho.

Entretanto, devidamente mais calmo, sem se intimidar, o Coelho se aproxima do tratador, que estava em sono profundo e roncava escandalosamente, alto como um porco. As chaves se encontraram na sua cintura, presas a um chaveiro no estilo grampo devidamente grudada ao local da calça por onde passava seu cinto. Com muita suavidade, que lhe era peculiar, o Coelho se posiciona estrategicamente próximo ao tratador. Lentamente, faz a primeira tentativa de retirar as chaves, sempre de olho nos possíveis movimentos do sonolento tratador. Por um instante, ele se movimenta bruscamente quase se encobrindo em cima do Co-elho. Este, astuto e com os reflexos em dias, se desvencilha, en-quanto espera o tratador se reacomodar novamente. O momento era de apreensão. Fora só um susto! Por sorte, o tratador, apenas havia mudado de posição, seu sono continuava profundo como a de uma pedra.

A nova posição dificultou um pouco mais a retirada das cha-ves, mas não o suficiente para entulhar as expectativas do Coelho. Finalmente, depois de muito insistir, ele consegue retirar as cha-ves. “Glória a Deus!” Comemora um dos bichos, silenciosamente. Uns ficam de joelhos, outros lançam as patas aos céus em sinal de agradecimento. Os olhos do Macaco brilham, o primeiro im-portante passo rumo à revolução havia sido dado com sucesso. O tratador permanece dormindo. Sorrateiramente, o Coelho segue em direção ao Macaco com as chaves na boca, repassando-as para ele. Primeiro, o Macaco se liberta. Liberto, logo em seguida, dá um forte abraço no Coelho, coisa que há tempos não faziam uns com os outros, falando próximo as suas enormes orelhas: “Muito obrigado meu amigo!”

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Naquele momento, todos os bichos aguardavam, com ansie-dade, para se livrarem logo daquelas celas. E segue assim, o Maca-co vai abrindo jaula por jaula de todos os outros, sucessivamente, do Leão, dos Tigres, do Elefante, do Hipopótamo e da Zebra. Po-rém, já devidamente “alforriados”, antes de qualquer ato, o Leão convoca todos os animais, para partirem em direção a cela onde se encontrava sua esposa Leoa, para libertá-la. Chegando lá todos se deparam com uma cena deprimente. A Leoa - outrora sempre muito bela e reluzente - é encontra debilitada agonizando em meio a dejetos, excrementos e moscas. Em seguida, abrem a sua jaula para libertá-la.

O Leão não se contém ao ver aquela cena deprimente e vai as lágrimas. Afinal, o estado de sua eterna amada havia piorado desde a última vez que tinham se visto. Em questão de segundos, o pranto do Leão se transforma em ação e revolta. A suspeita era a de que ela estava com pneumonia. Seu estado era gravíssimo, quase não falava, nem respondia as perguntas do Leão e aos es-tímulos externos. Seu olhar estava sem brilho algum, tornando-se vazio e seco como de um peixe morto. O Leão pede ajuda e todos se mobilizam para levá-la para um lugar mais arejado, confortável e salubre. Ao sentir a presença do esposo, ela reúne as poucas for-ças para lhe dizer algumas palavras, além de lhe ofertar um breve sorriso, ainda que sofrido.

Percebendo que a Leoa havia sentido a presença deles no ambiente, o Leão ensaia um comentário:

– Meu amor, agora estamos livres. Viemos aqui para lhe sal-var. Segure firme que, em instantes, iremos levar você ao melhor veterinário da cidade. Você precisa viver para ver nossa volta à África. Não nos abandone agora. Eu te amo! – comenta o Leão.

– Tá bem meu amor, faço tudo que você mandar – diz a Leoa, com muita dificuldade.

– Pode deixar camarada Leão que eu fico aqui cuidando da minha amiga. - se prontifica a Tigresa.

– Eu vou buscar água limpa – diz o Tigre.– Sim, obrigado vocês dois – agradece o Leão enquanto volta

a se dirigir a sua amada. - Que bom que está animada. Precisamos,

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agora, tomar o circo fique aqui com a Tigresa e depois voltaremos para apanhá-las. Minha atuação é imprescindível. Irei, mas logo retornarei para resgatar-te de vez – diz o Leão enquanto se dirige com os outros animais para tomar o circo.

Pois bem, vendo que todos estavam devidamente libertos de todas aquelas amarras que os haviam privado de liberdade por toda a vida, e que, ainda havia esperança na recuperação total da Leoa; os sentimentos de esperança, alívio, revolta e vingança se misturavam no âmago de todos os bichos igualmente, enleando um turbilhão de sensações. Por um instante, eles se distanciam e se reúnem com a intenção de fazerem os últimos ajustes para por em prática as ações que os levariam a conclusão, com louvor, da primeira fase.

Não tinha mais como voltar atrás. Era tudo ou nada. Ne-nhum dali tinha nada a perder. Imbuídos, então, desse forte sen-timento coletivo, seguem em direção a neutralização dos seus primeiros alvos, o braço armado do circo: os tratadores. Eram dois. Primeiro, eles seguem em direção ao tratador alfa, aquele mesmo que possuía as chaves tais quais o Coelho furtou. A lógica da neutralização foi a mesma para ambos. Sabiam que com eles não podiam aliviar. Munidos de um pedaço de madeira, neutrali-zaram os dois tratadores com uma bela bordoada na cabeça, na intensidade suficiente, para deixá-los desacordados. Logo depois, amarram-lhes os pés e as mãos, vedando também, suas respec-tivas bocas. Pronto, os dois devidamente ali, amarrados um de costas para o outro, desacordados. A primeira neutralização não poderia ter sido melhor.

Feito isso, era o momento de se dirigem, agora, ao trailer dos funcionários, onde se encontravam o mágico e os malabaristas, além dos palhaços Espirro, Pirulito e Espoleta, para surpreender-lhes de preferência, ainda dormindo. O Coelho novamente põe em prática sua habilidade de destravar as portas, com a mesma pre-silha com que havia destravado sua gaiola. Era um trailer só, que comportava apertadamente, todos eles, de forma bem inumana. As condições físicas do trailer eram precárias se comparado ao da família Coperfield. Devidamente aberto, são escolhidos para entrar

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no trailer somente os animais menores o Coelho, o Macaco, e Leão e o Tigre macho. Os maiores ficariam do lado de fora dando cober-tura. Finalmente, eles entram no recinto e logo vão acendendo as luzes. O mágico percebendo o movimento, acorda sobressaltado, quase ensejando um grito de socorro:

– O que é isso?! – diz o Mágico assustado, enquanto todos os outros funcionários vão acordando concomitantemente, os mala-baristas mais os palhaços Espirro, Pirulito e Espoleta.

– Fiquem todos quietos – dizem os bichos cada um com um pedaço de madeira nas mãos – Se vocês cooperarem conosco não iremos agredir vocês tal como fizemos com os tratadores. Co-laborem com a nossa revolução – dizem os bichos dominando a situação - Afinal quem em sã consciência, de mãos limpas e recém acordado do sono, teria coragem de enfrentar um Leão ou um Ti-gre, além de vários outros animais munidos maciços porretes nas mãos, ou melhor, nas patas.

– Revolução? – se espanta o malabarista, já se conformando de sua forçada rendição.

– Isso mesmo. Revolução. Agora calem a boca e façam so-mente o que mandarmos – diz o Macaco, enquanto vão amarrando as mãos e vedando as bocas, respectivamente, do mágico, mala-baristas e dos palhaços Espirro, Pirulito e Espoleta – camaradas Hipopótamo, Elefante e Zebra levem todos eles para o centro do picadeiro, onde se encontram os tratadores desacordados. Colo-quem todos perfilados um ao lado do outro e esperem até o início do julgamento – determina o Macaco.

Mais um ato de neutralização havia sido concebido com lou-vor. Agora dois importantes grupos haviam sido desarticulados e dominados, tratadores e funcionários. Enquanto os funcionários eram conduzidos até o centro do picadeiro, um dos palhaços, mais precisamente o Espirro, se desfaz de sua mordaça, que não estava tão bem amarrada. Insubmisso, com a boca livre e expondo seu verdadeiro caráter de soberba, tenta em vão ameaçar:

– Julgamento? Quem vocês pensam que são seus bichos in-solentes. Desamarrem-me imediatamente dessas cordas seus ani-mais idiotas. Eu exijo! Ou senão...

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Essa era a oportunidade que o Coelho esperava. Sem dizer uma palavra, e antes mesmo de Espirro terminar de pronunciar sua advertência, o Coelho toma o porrete das mãos do camarada Macaco e dá uma senhora cacetada bem no meio da testa do pa-lhaço resmungão. Foi o suficiente para abrir-lhe um belo corte e sangrou escorrendo pela face. Espirro desfalece como um anjinho em sua soneca em meio às nuvens do céu. Foi um dos maiores prazeres que o Coelho havia sentido nesses últimos dias. Afinal, quantas vezes o palhaço Espirro havia agredido e torturado o po-bre do coelho nas suas apresentações. Os funcionários, vendo o palhaço Espirro desmaiado e ensanguentado, se deram conta de que a coisa era séria, muito séria. E seguiram todos obedecen-do às instruções ordenadas pelos bichos, fazendo tudo o que eles mandavam. Todos amarrados, em fila indiana, seguem em direção ao centro do circo, onde já se faziam presentes os tratadores, tal como havia ordenado o Comandante Macaco, sempre escoltados pelo olhar vigilante dos camaradas Hipopótamo, Elefante e Zebra.

Depois da neutralização e dominação dos tratadores e dos funcionários, era hora, agora de partir para o desbaratamento do núcleo central. Talvez o mais simbólico e importante de ser toma-do, o trailer do Mr. Hermmam e de sua família. Ao todo, naquele ambiente, somavam 4 pessoas, composto especificamente pelo Mr. Hermmam Coperfiled, sua esposa, seu filho Hermmam Jr. e sua nora. Estavam de frente para o gol. Só faltavam a neutralização dos “cabeças” para todo o circo estar devidamente dominado tal como haviam planejado. Enquanto os funcionários eram levados pelo Hipopótamo, Elefante e Zebra ao picadeiro para esperar o julgamento; os outros como o Macaco, Coelho, o Leão e o Tigre se dirigiam ao trailer principal, dessa vez bem maior, novo e luxuoso.

O motor home era equipado com modernas instalações de ar refrigerado, frigobar, TV a cabo e internet. Requintes de madeira de lei e estofados revestidos de couro, lógico de animais selvagens caçados pelo próprio Mr. Hermmam. Fotos espalhadas por todo o trailer os animais abatidos por Hermmam em suas caçadas. Cabe-ças de alces, também, ornamentavam o ambiente. Com relação ao modus operandi não tinha muito o que acrescentar. O Coelho, já

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habilidoso na arte de destrancar portas, torna a abrir o trinco de mais este outro trailer.

Quando percebem que teriam acesso ao interior do recinto, o Comandante Macaco dá a ordem para que todos fossem acor-dados juntos, pois assim, poderiam dominá-los todos de uma só vez. Porém, antes, passam num armário onde se encontravam o armamento do caçador Hermmam. Ao abrir a estante a surpresa: haviam três carabinas, uma espingarda calibre 12, um revólver, além de várias munições. Além do arsenal, tinha também o chicote e a arma de choque utilizada por Hermmam Jr. nos treinamentos e nas suas apresentações para “contensão” os animais maiores, caso fosse necessário.

Finalmente estavam armados, fazendo jus ao nome do grupo por eles mesmos batizados de “Grupo Armado”. Agora sim, faziam jus a pecha de guerrilheiros. O Comandante Macaco, então, decide distribuir as armas para cada um dos bichos ainda dentro do trai-ler, sempre com muito silêncio para que ninguém acordasse antes da hora. O Comandante fica com a espingarda 12, o revólver mais o chicote. Ao Coelho é dado uma das carabinas. Ao Leão, a segun-da carabina. Por fim, ao Tigre foi creditada a terceira carabina mais a arma de choque.

Distribuída respectivas armas, agora era hora de saber quem iria se posicionar próximo a cada alvo, ou seja, a cada membro da família Coperfileld. Antes disso, é dado o sinal para cada um se certificar se suas armas estavam municiadas, para que fossem colocadas engatilhadas em posição de disparo. O Macaco se po-siciona próximo ao senhor Hermmam, o alvo maior do esquema. O Coelho da sua esposa. O Tigre ao lado de Hermmam Jr., aquele que o fazia ajoelhar-se diante de si, e o Leão ao lado de esposa de Hermmam Jr. Quanto ao gato Boris, ninguém se incomodava, pois, de tão covarde, obeso, preguiçoso e medroso, todos sabiam que ele seria incapaz de reagir ou dar sequer um passo para fugir.

Vendo que todos estavam devidamente posicionados em seus “alvos”, o Macaco diz:

– Olá senhor Hermmam. Está na hora de acordar, pois seu pesadelo já vai começar – Hermmam acorda com o Macaco sen-

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tado em cima de sua enorme pança, devidamente munido com a arma calibre 12, apontada diretamente as fuças do dono do circo. Muito espantado, ele levanta uma parte de seus tapa-olhos e dá de cara o Macaco bem acomodado em cima de sua enorme barriga, dizendo bem alto:

–Oh, my God! – de tanto desespero, Mr. Hermmam esqueceu até de se comunicar através de sua segunda língua.

Nesse momento, aproveitando que todas as atenções se concentrariam na contensão do Mr. Hermmam, seu filho Her-mmam Jr., que havia acordado simultaneamente junto com o pai; forte como um touro, tenta reagir, mas logo é contido com uma bela descarga elétrica, desferida pelo Tigre. Com o corpo eletrizado, Hermmam Jr. torna a ficar deitado na cama, meio atordoado.

– Vocês falam? Como assim? Que diabos é isso? Saia de cima de mim seu macaco nojento!!! – torna a resmungar o dono do cir-co, o Mr. Hermmam.

A senhora Coperfield e a esposa de Hermmam Jr. – vendo a impotência dos dois homens do trailer - nada dizem, para não agravar ainda mais, a situação.

– Nojento? Recolha-se a sua insignificância Mr. Hermmam. Acho que o senhor não percebeu que nós invertemos a situação. Não só falamos como pensamos e agimos também. Somos agora do Grupo Revolucionário Armado dos Bichos, o GRAB-9. A partir de hoje iremos derrubar seu regime explorador e implantar nossa revolução.

– Sua revolução?! Rárárárá. Não me faça rir. Vocês não são capazes disso – zomba o Mr. Hermmam.

– Isso é o que veremos - contrapôs o Macaco. – Larguem já as minhas armas. Eu vou chamar um de meus

tratadores – grita o senhor Hermmam avocando um de seus tra-tadores. Lógico que chamou em vão, pois àquela hora, todos já estavam imobilizados, aguardando julgamento.

– Sr. Hermmam o jogo acabou. Todo o seu circo está toma-do. Pode gritar a vontade, pois ninguém vai lhe escutar. Todos os prisioneiros como os tratadores e funcionários estão no centro do

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picadeiro para serem julgados, igual como vai ocorrer com você e sua ilustre famiglia.

– Julgamento? Quem vocês pesam que são? O que é que vocês querem? É dinheiro? Podem levar o que quiserem? Joias, dólares, o valor do caixa...

– Pobre Hermmam, como todo bom burguês, tudo para ele se resume a capital. Senhor Hermmam o que nós queríamos na ver-dade era voltar ao passado para rever novamente a nossa família e nosso lar. Gostaríamos, também, senhor Hermmam a dignidade, a liberdade, apagar as humilhações sofridas e curar as cicatrizes profundas da nossa alma que jamais sanarão. Você tem o remé-dio de cura para todos esses males que você mesmo provocou, sr. Hermmam? Creio que não. Enfim, vendo tratar-se de uma utopia e sabendo que isso tudo não será mais possível, só nos resta ago-ra aderir a luta e fazer valer a justiça, além também, de darmos início irreversível a implantação da nossa revolução. A justiça do homem é falha, senhor Hermmam, mas a de Deus e a dos bichos não falharão nunca.

Dito isso, assim se repete o ritual. Em todos são postos as vendas nos olhos, suas bocas tapadas e mãos bem amarradas, in-clusive as do gato Boris. A única diferença era que agora os prisio-neiros estavam sendo escoltados sob a tutela de potentes armas. Sob a mira, de todo aquele arsenal, seguem todos em direção ao centro do circo, sem esboço aparente de nenhum tipo de resistên-cia, aliás, nem poderiam.

Agora, todos estão concentrados juntos, postos um ao lado do outro, os tratadores, os funcionários e a família Coperfield. Fi-nalmente, não havia mais hierarquia naquele lugar. Todos esta-vam em pé de igualdade, iguais na mesma situação, proletários e patrões. É posto um banco, onde cada um dos réus seria julgado. Bem na parte de trás do picadeiro um pouco a frente das corti-nas, o Elefante, o Hipopótamo e a Zebra já haviam montado um enorme tablado, bem acima do nível do solo na qual se percebia algumas cordas em forma de forca, onde seria feita as possíveis execuções por enforcamento ou fuzilamento, dependendo da pena de cada um.

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Todo o circo neutralizado, era preciso agora, instalar um tri-bunal especial para julgamento daqueles indivíduos abismados e alheios ao desenrolar de seus destinos. Numa rápida deliberação entres os guerrilheiros, todos consentiram e aprovaram sua insta-lação de imediato. Afinal, tinham de julgar aqueles malfeitores a quem pesavam o cometimento contumaz de vários crimes hedion-dos. Tribunal devidamente aprovado, era agora a hora de discutir a dinâmica e distribuição das funções desse tribunal.

Depois de muito debaterem, decidiram em comum acordo, que a distribuição dos “cargos judiciais” se daria da seguinte for-ma: o juiz-presidente seria o Comandante Macaco, a quem cabe-ria a função principal de manter a ordem, presidir o julgamento e prolatar as devidas sentenças, pela condenação ou absolvição, atendendo a soberania e irrevogabilidade da decisão proferida pelo corpo de jurados. O promotor de acusação, devido sua peculiar sapiência e reconhecimento pela sua bravura, seria o Coelho. Os jurados seriam os outros bichos restantes: o Leão, o casal de Ti-gres, a Zebra, Hipopótamo e o Elefante. A Leoa, embora tivesse legitimidade, é lógico que seria poupada dessa fase, pois não tinha condições psíquicas nem físicas para deliberar nesse tão impor-tante julgamento. Sua função era só acompanhar as decisões do grupo, pois ainda tentava se recompor, devidamente enrolada num cobertor, dos reiterados calafrios que lhe afligiam.

Aquele julgamento estava longe de ser típico de um tribunal kafkiano. Com vistas a não correrem o risco de incorrerem na fei-tura de um “julgamento injusto”, a cada réu, seriam resguardados seus direitos ao contraditório e a ampla defesa. Aos acusados, se-riam oferecidos totais usos de seus direitos, notadamente ao feste-jado jus postulandi, sendo cada um assim, seu próprio advogado. Teriam acesso ao amplo direito de formularem suas defesas em tempo hábil concedido pelo tribunal, convencendo aos jurados, de que são inocentes e que por esse motivo, teriam direito a ma-nutenção de suas vidas e, por conseguinte direito a liberdade. Os que estavam desacordados com as pancadas, como os tratadores e o palhaço Espirro, aquela altura, já haviam recobrado seus senti-dos, embora ainda estivessem amarrados e amordaçados. Espirro

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mal podia limpar o sangue coalhado na sua testa. O cheiro forte das hemácias mortas incomodava seu olfato. Nenhum dali poderia imaginar uma situação dessas. Em poucos segundos, suas rotinas haviam sido viradas de ponta cabeça.

Já era de madrugada, quando é feita então, a abertura do histórico julgamento.

– Boa noite a todos e todas, estamos instalando este tribunal com o fim específico para apuração e penalização de crimes contra a humanidade, ou melhor, animalidade. Visto isso, iniciemos neste momento, a nossa audiência de instrução e julgamento, atenden-do deliberação do GRAB-9, o Grupo Revolucionário Armado dos Bichos. Esse é um momento crucial para firmarmos a reparação dessa dívida histórica dos humanos para conosco, os bichos, bem como também, será consolidado o primeiro passo fundamental para desenrolarmos de vez, a nossa querida revolução, que ora se avizinha - fala o juiz Macaco.

Todos os réus ouvem atentos, já se dando conta do que iriam ter de enfrentar. “Como pode isso estar acontecendo?”, pensavam eles. Afinal estavam presos, privados de liberdade e prestando obediência a um monte de bichos, que até então, eram julgados inofensivos. Da noite para o dia e sem desconfiarem de nada, haviam passados de dominadores a dominados por animálias, que dantes eram rotulados como submissos e domáveis. Como um simples livro escrito nos século retrasado teria a tamanha capacidade de perpetrar todo aquele rebu? Como aqueles animais falantes tidos como “selvagens”, “incapazes” e “adestrados”, ti-nham mudado a situação em tão pouco tempo? Todos estavam quietos ladeados uns aos outros ficaram ali, inertes, aguardando somente as próximas instruções dos novos protagonistas daquele circo, os bichos.

Voltando ao tribunal, assim se manifesta o juiz Macaco:– O Excelentíssimo senhor Promotor Coelho e todos os bi-

chos jurados já se encontram preparados para começar o julga-mento? – pergunta o magistrado Macaco, ansioso para começar logo a tal apreciação.

– Sim – respondem eles.

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– Comecemos, então, nossa audiência una de instrução, jul-gamento e sentença, com a apresentação da acusação, primeira-mente, aquela referente aos tratadores. Como manda o regimento, o Promotor de acusação Coelho se pronunciará fazendo a leitura da denúncia. Preparado senhor promotor?– pergunta o Macaco magistrado.

– Sim excelência. Estou pronto e ansioso para começar.– Então fique a vontade.Sem mais delongas, assim o promotor inicia, com a voz bem

empostada para que todos pudessem ouvir:– A vocês tratadores pesam as seguintes acusações. Vocês

dois foram os capatazes, os braços armados, a guarda pessoal e executores das ações criminosas comandadas pelo Mr. Hermmam, dentro desse regime explorador que hoje se encontra em via de esfacelamento. Vocês colocaram, em prática, todo o ódio gratuito que os donos desse circo sempre nutriram pela gente. Poderiam hesitar, mas preferiram se esconder atrás do manto da covardia, e assim, rigidamente omissos, nada fizeram. Pensaram só em si e nos salários e nas vantagens que iriam auferir com a nossa desdita. Por esse motivo, foram coniventes com o regime, não passando vo-cês dois, de mera personificação do mal. Atendiam e faziam tudo que o Mr. Hermmam ordenava, sem contestar, mesmo estando flagrantemente errados. A etimologia da palavra tratar, senhores jurados, significa segundo o dicionário Aurélio: “fazer diligência por”. Na verdade Meritíssimo Juiz, é que não éramos tratados, mas sim destratados, de maneira copiosa e torturante. Não há dúvidas senhores jurados, que esses dois homens foram muito perversos para com a gente. Eles não nos toleravam e alimentaram o mesmo ódio que a família Coperfield acalentou por nós, demonstrando assim que o mal nesse ambiente hostil, de tão profuso, criou asas, se tornando contagioso passando para os outros funcionários por uma espécie de osmose transversa. Lembrem vocês, senhores jura-dos, que cabiam a eles o decepamento de nossas garras e dentes, além do vazamento de nossos olhos com furos, bem como a mu-tilação de nossos membros – nesse momento o promotor Coelho, emocionado, faz uma pequena pausa, contém as emoções, respira

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fundo e continua a leitura das acusações – em âmbito psíquico e emocional, zombavam da nossa condição precária, fazendo pia-das e assediando-nos moralmente em frequência diuturna. E o que dizer da violência psicológica? Sempre se valendo do terrorismo velado, da ameaça e da agressão com cassetetes, açoites e arma de choques, o que implantava na gente doenças psicossomáticas, como o quadro crônico de ansiedade, depressão, síndrome do pâ-nico e outras. E mesmo nós, submetidos a estafantes carga horária de trabalho, ainda sim, eram desidiosos nas funções que lhe ca-biam. Não limpavam nossas celas a contento. Não nos banhavam de maneira satisfatória e quando os faziam, eram sempre, de ma-neira grosseira e a base de agressões. Forneciam-nos água suja e comidas estragadas, o que afetava toda nossa saúde. Lembra você tratador – fala o promotor Coelho apontando especificamente para um deles, – que você bêbado, um dia ousou urinar na minha cara enquanto eu estava dormindo, por puro sarcasmo e diversão? E ainda ria enquanto eu tentava correr dentro daquela minúscula gaiola para não ser molhado. Pronto senhor Juiz, eram essas as minhas considerações – encerra o Promotor Coelho.

– Já expôs tudo Excelentíssimo Promotor Coelho? Você ainda dispõe de mais tempo.

– Sim Excelência Macaco, não necessito, já disse tudo que os jurados precisavam saber.

– Pois bem, devidamente expostas as assisadas acusações pelo Excelentíssimo promotor, agora ouviremos o que vocês tra-tadores, têm a dizer em relação as suas defesas. Apresentem suas contestações se dirigindo exclusivamente aos jurados. Podem tirar-lhes as mordaças. Vocês têm 10 minutos – diz o Macaco.

Ambos de cabeça baixa, um deles, vendo a inércia crônica do outro, toma coragem e a frente da defesa respondendo:

– Senhores jurados não tenho muito a dizer, mas se ainda for útil, gostaria de ressaltar que assim como vocês, também nós nos consideramos vítimas nessa história. Reparem nossa situação. Somos pobres. Dormimos em redes improvisadas ao relento e mal temos alojamento decente, condigno a qualquer trabalhador. Não tivemos estudos e vivemos longe de nossas famílias iguais a vo-

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cês, pois estamos sempre migrando de cidade em cidade. Nossa vida também é muito estressante e somos humilhados assim como vocês, pois consideramos que vivemos no mesmo regime de escra-vidão. Nossa alimentação é precária em demasia e nosso salário, igualmente parco, além de viver sempre atrasando. Reparem vo-cês, que os homens não são ruins somente com vocês bichos, mas com outros homens também. Não temos condições de arranjar me-lhor emprego nesse país, por isso, nos sujeitamos a esse trabalho. Não temos felicidade aqui, pois somos tidos como a última escala da sociedade, ninguém nos repara. Talvez por conta dessa soma de fatores degradantes, tenhamos sido tão rudes com vocês. Nada justifica a maneira com que tratamos vocês, mas pedimos clemên-cia pelos nossos filhos e esposas, senhor Juiz. No nosso julgamen-to, pedimos que levem em consideração esses pormenores. Quem sustentará nossos filhos pequenos e esposas desamparadas caso morramos? Quem? A família Coperfield? Creio que não – responde um deles, agora, muito humilde.

– As suas absolvições ou condenações não dependem de mim senhores tratadores, mas sim dos jurados. Vamos a julga-mento. Como vota o júri? Lembrando que o voto dos senhores é individual, irrevogável e soberano. Como os tratadores exerciam as mesmas funções dentro do regime, julgaremos os dois juntos – conclui o juiz Macaco, que aquela altura conduzia a inquirição sem grandes percalços.

– Era só isso que tinham a dizer com relação as suas defesas? – indaga a última vez o Comandante Macaco, que naquele mo-mento, cumulava também, a função de magistrado. Dizia friamen-te este, que em nada, havia se comovido com a “sofrida” história de vida dos tratadores.

– Sim – respondem contritos, os tratadores, sem muitas espe-ranças de se safarem dessa.

– Pois bem, vamos ao julgamento. Hipopótamo qual o seu voto? Condenação com execução ou absolvição dos tratadores? – pergunta o Juiz Macaco.

– Absolvição.– E você Leão?

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– Execução.– Tigre?– Execução.– Tigresa?– Execução.– Elefante?– Absolvição.– Zebra?– Absolvição.– Não acredito que vocês estão com pena desses monstros,

por tudo que eles fizeram com a gente – contesta o Tigre, com os outros camaradas que votaram pela absolvição.

– Não se trata de pena camarada Tigre. Repare, eles são ví-timas iguais à gente. São explorados, e ainda nos pediram perdão. Não devemos guardar mágoas nem rancores, pois eles são como flamas que consomem o lado bom de nossa alma. É sempre bom sabermos sopesarmos bem as coisas, tomando toda nossas deci-sões com benevolência e sabedoria. Tigre você, como potencial bom cristão, precisa trabalhar isso dentro de você. Além disso, não devemos ser injustos e manchar com sangues inocentes, a nossa tão bela revolução em estágio avançado de progressão – não pre-cisava, mas assim justifica o Elefante, o seu voto de absolvição.

– Bem, temos então um empate, três votos a favor da con-denação e três a favor da absolvição. Por esse motivo, a situação dos tratadores ainda se encontra indefinida – comenta o Macaco magistrado.

Diante do inesperado imbróglio, uma pergunta pairou no ar. Como resolver esse impasse? Quem poderia desempatar? A quem seria creditado a votação de desempate, o chamado voto de mi-nerva? Todos teriam de ser julgados naquela noite, sem chance alguma de postergação. O empecilho era urgente e teria de ser sanado logo. O Coelho não poderia ser, pois se assim fosse, votaria logicamente - na condição de acusador – pela condenação sumária dos réus. O Juiz Macaco tão pouco, pois estaria usurpando um dos princípios fundamentais de sua função, que é o de ser do juiz im-parcial. Todos os outros animais já haviam votado. Só restava en-

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tão, a Leoa, dá esse voto, a única que não havia votado por conta de sua condição enferma. O Leão com imenso carinho se dirige a amada e pede para que ela votasse pela condenação ou absolvição dos tratadores, dizendo:

– Meu amor estamos com um problema. Você é a única que poderá sinalizar para desempatar a votação, absolvendo ou conde-nando os tratadores. Faça um pouco de esforço e vote. Tudo pela revolução! – tenta convencê-la o Leão.

Com grande esforço, meio contrariada, mas atendendo ao pedido do cuidadoso marido, a Leoa decide votar pela absolvição.

Quando ouviram o pronunciamento da Leoa expondo seu voto a favor da absolvição, os tratadores caíram no choro de tanto alívio. Agradeceram aos céus imensamente por estarem salvos. Se jogam aos pés dos bichos fazendo até promessas de que nunca mais colocariam carne alguma de bicho nenhum em suas bocas. Graças à benevolência da Leoa, - a que mais sofrera nesse recinto -, os tratadores haviam sidos remitidos de seus crimes. Ao Macaco Juiz, só restou então, chancelar a decisão da Leoa e dos outros ju-rados que votaram pela absolvição dos referidos tratadores.

Resolvido o impasse, agora era a vez do pronunciamento da denúncia e julgamento dos funcionários do circo: o mágico, mala-baristas e dos palhaços Espirro, Pirulito e Espoleta. A dinâmica e o rito de acusação foram as mesmas feitas para com os tratadores. O promotor Coelho, sem embargo, apresenta a denúncia que lhe pesam, sob o olhar atento do Juiz Macaco, dos seus Jurados e dos outros acusados:

– Vocês funcionários, mágico e malabaristas, embora não te-nham agido diretamente para o nosso infortúnio, ainda sim, foram cúmplices com o regime explorador, contribuindo, desse modo, para nossa desgraça pessoal, digo, animal. Aceitaram configurar como mais uma dessas peças dessa bem articulada engrenagem aniquiladora de sonhos, alcunhada de Circo Dallas. Cooperaram para a manutenção desse sistema sustentável de desmantelamento de vidas. Foram extremamente omissos com a perversidade comer-cializada pela família Coperfiled, pensando só em si. Encastela-ram-se em seus individualismos, minando qualquer chance de em-

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patia com os outros seres as suas voltas. Trabalhavam, recebiam e não faziam nada para intervir na mitigação ou cessação de nossa condição de vida extremamente vexatória. Tornaram-se cegos para visualizar o bem. Agora, quanto a vocês palhaços Espirro, Pirulito e Espoleta, todos se valeram da sua condição de animados bufões para esconder a face verdadeira perversa incrustada em seus ca-ráteres. Encobriram-se de fantasias coloridas e alegres para disfar-çar o sentimento escuro que sempre habitou dentro de vocês. Os seus risos e a diversão do público que vocês alegravam pela noite, servia para fomentar nosso choro por toda a madrugada. As suas alegrias tinham como base o nosso sofrimento e pranto. Suas ri-quezas eram sustentadas pelas nossas pobrezas. Quanto a mim, a título de testemunho pessoal, por vezes, fui obrigado a ficar con-finado dentro daquela cartola, espremido e faminto, noites a fio. Minhas orelhas eram esgarçadas, sem nenhum tipo de compaixão, em praticamente todas as apresentações. Imagine o senhor Espirro ter seu corpo alçado pelas orelhas por várias horas. Notadamente, você não suportaria. O que lhe fez imaginar, então, que comigo seria diferente? Essa é só mais uma pergunta, senhores jurados, para constar nesse intricado mundo subterrâneo e pervertido que é a mente de um ser humano e que conhecemos tão bem. E quanto às investidas covardes que vocês palhaços orquestraram em face do nosso comandante Macaco? Mesmo estando em idade adulta, ainda teve de se prestar a fazer peraltices, cenas pueris e ridículas para alegrar uma plateia boçal e um amontoado de crianças mal criadas em troca de quê? Míseros trocados. Quanto valia a moral daquele Macaco naquela hora? Quanto valia a honra do coman-dante Macaco quando este era vestido de noiva e fantasiado de mulher? Quanto senhores jurados? Quanto? – finaliza o Coelho.

Proferida a denúncia, o juiz Macaco torna a realizar o mesmo procedimento: ordena que fossem tiradas as mordaças dos funcio-nários, para que os mesmos pudessem se defender. A estratégia de defesa do mágico, dos malabaristas e dos palhaços se baseou, mais ou menos, na mesma fundamentação dos tratadores, na qual tinha como tese principal, o fator de que todos ali, eram igualmente vítimas e explorados pelo regime imposto pelo linha-dura Mr. Her-

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mmam. Ouvida a devida defesa o juiz Macaco perguntou a todos do júri qual seria a pena de cada um deles. No final, de acordo com a decisão dos jurados, todos os réus - apesar da fraca contestação - acabaram sendo absolvidos. Um ou outro voto foi dado a favor da condenação dos palhaços Espirro e Pirulito, advindo lógico, dos Tigres, que eram os mais intransigentes na aplicação da pena.

Enfim, mas como em toda boa democracia, é sempre a de-cisão da maioria que prevalece. A decisão do júri era soberana. A maioria votou pela absolvição e todos foram inocentados. Ficaram livres da condenação com a morte. Quem imaginaria que depois daqueles animais ainda terem sofrido tanto, ainda sim, tiveram a grandeza de saber perdoar aqueles que lhes aviltaram. Devida-mente julgados e absolvidos os tratadores e os funcionários, era hora agora de partir para o julgamento mais importante da noite, o da família Coperfield. Nessa hora, até o promotor Coelho se le-vanta para ler a referida denúncia, a mais longa, melhor, mais bem fundamentada e mais difícil de ser contestada de todas.

Assim dizia a denúncia que pesava sobre a família Coper-field:

– Vamos agora ouvir a denúncia que incide sobre o réu Mr. Hermmam Coperfield e sua família incluindo o gato Boris, pro-prietários do doravante denominado Circo Dallas. Antes de tudo, senhores jurados, gostaria de ressaltar os atos pregressos e remo-tos do passado desse referido circo. Relatórios dão conta de que historicamente, a família Coperfield vem impondo seu regime de dominação dos humanos para com os bichos por gerações e gera-ções, sempre com muita dureza, rudeza e crueldade. Há décadas, vem sendo implantado um ciclo vicioso de dominação sistemático, transpassado de pai para filho, baseados nos pilares da exploração e aniquilamento dos bichos. Seus descendentes vêm enriquecendo as nossas custas, em detrimento do nosso servilismo alienado e da nossa força estafante de trabalho. Por isso, devemos levar em consideração, também, senhores do júri, o que sofreram nossos ascendentes e irmãos do passado, para que seus nomes sejam lem-brados como mártires, bem como também, para que os culpados não fiquem impunes dos crimes precedentes, contribuindo para

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que esse passado de terror fique impune e esquecido na espes-sa névoa do olvido. Isto posto, passemos agora, especificamente, ao que pesa somente contra você senhor Hermmam. Percebemos aqui, que cometeu vários crimes e que sua ficha é bem corrida. A você acusado Hermmam pesam os seguintes crimes. Fora chefe dessa enorme quadrilha e cabeça desse regime explorador e san-guinário que vitimou milhares de bichos somente nesses anos de sua gestão a frente do Circo Dallas. Esteve intimamente ligado a máfia internacional de tráfico de animais, sendo um dos seus prin-cipais financiadores, inclusive fazendo alianças espúrias com di-tadores carniceiros. Não bastasse os malfeitos em época de ano regular, fazia parte da sua cultura Mr. Hermmam, nas suas épo-cas de férias, o senhor promover cinematográficos safáris e caças predatórias, assassinando várias espécies de animais africanos, a sangue frio, somente para arrancarem seus coros, deceparem suas cabeças e empalharem seu corpo como forma de troféu. Era peça de uma quadrilha movimentava todo um esquema ilegal, para aba-ter sem dó nem piedade, animais indefesos se utilizando de armas de grosso calibre e até de granadas. Eis as fotos e armas utiliza-das nestas investidas senhores jurados. – diz o promotor Coelho expondo fotos de caça e as armas, que agora, estavam em poder dos bichos. - Isso sem falar da sua glutonaria inveterada, com ali-mentação carnes de animais em extinção como faisões, cervos e corsas; enquanto nós bichos, padecíamos com alimentação de bai-xo valor nutricional, bem aquém da nossa necessidade alimentar, o que acarretava em todos, quadros constantes quadros de anemia profunda, avitaminoses e desnutrição. Tanto o senhor como sua esposa, filho e nora vêm vivendo nababescamente a nossas cus-tas. Criaram um mundo de ilusão para os espectadores, sempre demonstrando nos shows a falsa alegria, que nunca fez jus a este lugar, eivado de barbaridades. Se não fosse, o Mr. Hermmam, se-nhores do júri, não haveria sua frívola esposa. Não havendo sua esposa, não haveria seu filho Hermmam Jr. Não havendo seu filho, não haveria sua nora. Não havendo a nora não haveria a expec-tativa de nascimento e um novo Coperfield para continuar a saga de terror desse circo que tanto nos apavora. Não havendo o Sr.

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Hermmam, igualmente, não haveria essa cadeia cíclica de sofri-mento com a contratação desses tratadores e funcionários vis. O que quero dizer com isso senhores jurados, é que o núcleo de todo nosso mal, se atentem bem, está claramente personificado nesse senhor. – diz o promotor Coelho enquanto aponta com o dedo em riste para o rosto do Mr. Hermmam. - Olhem bem para o olhar inumano e a face cruel deste homem. Este rosto carrega várias mortes, e caso não seja condenado hoje - e isso não é um palpite – seremos e teremos nossos filhos manipulados e assassinados por gente como ele, sempre gananciosos pelo capital e pelo poder, por gerações e gerações. Querem outra prova da sua maldade? Vejam a situação da Leoa. Hoje seu estado enfermo simboliza a todos nós. Por misericórdia do Senhor Deus e pela sua força de viver, ela será salva pela revolução, pois se dependesse de seu responsável, ela definharia até a morte. E o que dizer de tantos os outros bichos que não tiveram a mesma sorte nossa, de ser doutrinado pelo livro O Capital e que foram abandonados ou já morreram nesse circo, sen-do que nenhum, de causas naturais. Quanto à senhora Coperfield, além de ter sido conivente e de não fazer absolutamente nada, fora fútil e insensível para com nossa situação. Mesmo nós padecendo de condições degradantes naquelas celas fétidas, ela ainda sim, se prestava a passear em shoppings gastando fortunas com tratamen-tos de estéticas, joias e outras futilidades, sempre pressionando o marido para que o mesmo fizesse várias apresentações extras, ex-trapolando nossa condição laboral, para aumentar o lucro do circo e assim fomentar o seu prezado luxo. Quanto ao Hermmam Jr., este sujeito incorpora, a meu ver, a mesma insensibilidade do pai. Lembrem-se senhores jurados das chicotadas e choques que vocês animais maiores como os Tigres, Leão, Hipopótamo e Elefante le-vavam – diz o Coelho demonstrando bem no alto cada apetrecho de tortura, como o chicote, arma de choque, esporas, açoites, todos utilizados por Hermmam Jr. em suas apresentações e treinamen-tos. - Além do mais, caso seja esse réu seja absolvido, ele irá impor em prática essa nefasta exploração iniciada por seu pai, por vários e vários anos, sabendo-se lá quando essa opressão redundará num fim. Quanto ao felpudo gato Boris, igualmente conivente, tem um

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fator que pesa de forma fulcral no agravamento de sua situação, fazendo com que ela fique irreversível: a traição. Mesmo sendo iguais a nós, digo, bicho, ainda sim, preferiu ficar do lado déspota desertando de sua condição. Esse, senhores jurados, é o pior crime que um animal pode cometer. Por fim, quanto à nora, não tenho maiores acusações, a não ser as de colaboração e cumplicidade em favor do regime. Enfim para concluir, gostaria que ressaltar a injustiça flagrante, pois eles enriqueciam com nosso show. Nós é que éramos para estarmos gozando das mesmas benesses da família Coperfield. Nós somos os verdadeiros artistas. Os aplausos eram nossos e não deles. Mesmo com os bolsos cheios, em nada investiam, para o melhoramento do circo. Estávamos entregues a precariedade, pondo até em risco, as nossas vidas, bem como a do público inocente. Por vezes, ainda zombavam da nossa condição. Não pagavam os funcionários e tratadores a contento, o que dirá a nós, considerados inferiores e reles coadjuvantes. Diante desse discorrimento, dos fatos e da materialidade dos crimes aqui apre-sentadas, é que recomendo a todos os respeitados jurados, pela condenação sumária de todos por execução.

– É senhor promotor Coelho, tenho de admitir que sua de-núncia foi muito bem formulada. Parabéns! Abriremos, agora, es-paço para o contraditório e a ampla defesa dos réus. Com vocês, a palavra agora, será dada a família Coperfield. Tirem-lhes as mor-daças para que possam melhor se defender. Vocês dispõem de 10 minutos para apresentarem suas contestações.

São tiradas as mordaças do Mr. Hermmam, de sua esposa, de Hermmam Jr. e da sua nora. O senhor Hermmam toma a frente na defesa. Assim que começa a falar, surpreende a todos, expondo uma defesa que ninguém esperava. Aquele homem, por vezes de-masiadamente rude e autoritário, em poucas horas, havia se trans-formado num “cordeirinho”.

– Bem. Na verdade, não tenho nem como me defender de nenhuma dessas acusações, nessa hora sua mulher se assusta, ob-servando seu depoimento com os olhos bem esbugalhados - todas elas são verdadeiras. Como você disse Excelentíssimo senhor Co-elho, já nasci no circo e essas práticas vêm sendo passadas de pai

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para filho. Não tínhamos como ter outra escolha, era natural. Eu e meus irmãos estávamos inseridos nesse mundo desde pequeno, não tinha como ser diferente. Admito todos os crimes a mim im-putados, absolutamente todos. Negar que não caçava, seria uma asneira. Negar que não trafiquei animais, igualmente. Aliás, todos vocês aqui foram traficados. Negar que não fazia apresentações extras para aumentar o nosso lucro, idem. Negar, que não auto-rizei as torturas, as mutilações e maus tratos, seria a maior das falácias. Fazia isso, com receio de que as apresentações não fossem expostas a contento e que o público, talvez, pudesse não gostar. Não vou me delongar muito, pouparei vocês de mais essa injusti-ça. Fingir que nada aconteceu e não assumir meus crimes seria a pior das ações neste momento. Entretanto, gostaria de fazer meu último pedido. Gostaria que fosse concedida clemência a minha família: minha esposa, filho e nora. Eles são vítimas da minha ignorância, iguais a vocês. Por favor, seus jurados, peço-lhes que absolvam todos eles com a liberdade. Condenem-me, fuzilem-me, enforquem-me, mas poupem minha família. É isso que suplico, encarecidamente. Já quanto a esse gato ridículo podem fazer o que quiserem com ele, pra mim ele não passa de um acessório incon-veniente, peludo e guloso, nada mais.

Mr. Hermmam, cercado por todos os lados, diante da contun-dência da acusação e da robustez das provas, decide se sacrificar. Era o mínimo que poderia fazer. Com esse imprevisto gesto, Her-mmam evidenciava, para todos, o seu lado “humano”, demonstra-do ser, ao menos, um bom chefe de família. Mesmo em iminente perigo de vida, ainda tentava cumprir, com rigor, seu dever de pai. Todos ficam abismados. Nunca imaginariam que Hermmam ja-mais desceria do pedestal, reconhecendo seus erros e que, talvez, até esbravejasse ou esperneasse, elaborando uma série de defesas estapafúrdias ou protelatórias. Nada disso aconteceu, e para o bem da revolução, o julgamento da família Coperfield foi simplificado.

O Macaco-juiz, então se pronuncia:– Ok, senhor Hermmam. Ouvidas a acusação, a defesa e a

confissão do réu Hermmam, sem mais delongas, vamos ao julga-mento. O sol já se irradia e no dia de amanhã, teremos muito a

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fazer. Temos uma cidade a tomar e uma revolução com um novo governo a implantar. Os raios solares já anunciam o arvorecer de uma nova vida para nós, sem amarras nem grilhões de qualquer natureza. Votemos. Pela absolvição ou condenação do Mr. Her-mmam e da família Coperfield, mais seu gato de estimação, Boris.

– Senhor Hipopótamo como vota?– Execução, claro.– Leão?– Execução.– Tigre?– Execução e viva a revolução! – Tigresa?– Execução.– Elefante?– Execução. – Zebra?– Execução. – Até que fim! – exclama o Tigre aliviado, pois imaginava,

que talvez, seus amigos absolvessem, igualmente, a família Coper-field como fizeram com os tratadores e funcionários.

A senhora Coperfield vendo que a situação se encaminhava para a irreversibilidade, tenta contestar, importunando o marido:

– Como assim? Eles vão nos matar Hermmam? Faça alguma coisa homem!

O filho, Hermmam Jr., nada fala, aliás, por qual motivo tentaria? O que poderia falar naquela hora? Na sua situação, pre-senciando a confissão explícita do pai, nada poderia acrescentar. A confissão do velho Hermmam minou qualquer tipo de reação defensória por parte dos outros membros da família. Outro agra-vante que incorria ao jovem era de que, querendo ou não, ele per-sonificava a possível continuação daquelas práticas orquestradas por sua família décadas e décadas a fio, sem interrupção. Já com relação à situação de sua esposa, a nora do Mr. Hermmam, talvez fosse a mais delicada dos cinco, mas pelo estado de choque que se encontrava, em nada se manifestava. Talvez ela, somente ela, fosse inocente naquela história. O gato Boris, fútil, não passava de

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um estorvo para todos, tanto que não era lhe dado nem o direito a palavra.

Assim é prolatada a sentença pelo magistrado Macaco:– Pois bem, vamos ao veredicto final. Os jurados, imbuídos

das autoridades que lhes cabem, decidiram votar pela condenação de todos os membros família Coperfield, por unanimidade, com o placar de votação de 6 x 0 a favor da condenação com a forca. O júri assim decidiu, cabe agora a esse magistrado que vos fala, ordenar e garantir a devida execução da pena. A decisão do júri é soberana, clara e irrevogável. Não só você senhor Hermmam será executado, assim como toda sua família, inclusive o gato Boris. A pena da fa-mília Coperfield será executada por enforcamento pelo conjunto de todos os seus crimes. Sua esposa, filho e nora não são tão santos como você quis nos repassar senhor Hermmam. Quanto ao perdão em face da esposa, filho e nora não vejo fundamentos plausíveis para oferecimento de tal clemência. Eles são tão culpados como você e serão devidamente incursos dos crimes de tráfico de ani-mais, maus tratos, assassinato, extermínio, genocídio, conivência e colaboração com o regime. De tanto conviverem com o senhor, acabaram reproduzindo o seu mesmo caráter. Eles têm embutidos em suas almas, o seu mesmo atributo funesto de malignidade. Com a eliminação de todos vocês, extinguiremos qualquer chance de nascer qualquer outro membro dessa família, que possa um dia, cogitar a infeliz ideia de fazer esse circo voltar a funcionar. O ciclo de vida da sua raça Coperfield se encerra por aqui. Afirmo que nada restará de vocês, memória, objetos, nem mesmo seus DNAs, pois todos serão consumidos pelo fogo. Isto mesmo, vocês ouviram bem, a última ação dessa fase será destruir esse famigerado circo ateando-lhe fogo. Morram todos e levem juntos com vocês suas histórias de sangue, sofrimento e destruição. Preparem as cordas para enforcamento – ordena o Macaco aos outros bichos, já se des-fazendo da condição de juiz e retomando sua condição principal de comandante da revolução. - O primeiro a ser executado será o gato Boris pelo crime de traição, o crime mais inadmitido entre os bi-chos, pois feriu ferozmente, o nosso mandamento número quatro. Quanto a este réu não caberá nem direito a recurso. Assim sendo,

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todos devidamente cientes de suas sentenças, desfaz-se a instala-ção desse provisório tribunal e passemos a execução da pena que cabem a todos, tanto para os condenados, como para os absolvidos.

Enquanto se preparavam todos para cumprimento da pena, o senhor Juiz, promotor e demais membros do júri, inesperadamen-te, são surpreendido pela intromissão da Zebra.

– Questão de ordem senhor meritíssimo – intervém ela.– Lá vem – diz o Hipopótamo, achando que ela fosse proferir

uma de suas pérolas. – Gostaria que fosse revista somente a situação da nora do

senhor Hermmam.– Creio que não há mais tempo camarada para retroceder-

mos. A sentença já foi proferida e é irrevogável – diz o Macaco. – Mas se o crime da moça foi a de ser conivente, e todos

os funcionários e tratadores, sendo também, somente coniventes foram devidamente poupados, porque que com ela seria diferente? Se for para executá-la, então deveríamos condenar todos os outros, pois se assim não fizermos, estaríamos julgando nos moldes de um típico tribunal de exceção, onde a lei vale para uns e não para os outros. E isso caso ocorra, fulminaríamos de morte, o princí-pio da igualdade, - nessa hora, o Tigre dá logo seu aval de con-cordância para execução de todos, claro e não pela absolvição da nora do senhor Hermmam. – Além disso, ela não carrega em suas veias o sangue dos Coperfield nem muito menos carrega no ventre um descendente deles. Peço meus amigos que revejam a pena da moça. Ademais, insta ponderar, que nas nossas apresentações, na qual eu a carregava nas minhas costas, ela sempre me tratou muito bem, com o devido respeito e até carinho. Acho que incorreremos numa injustiça tamanha caso executemos ela. Comparados com os outros, na medida do possível, ela sempre me tratou muito bem – finaliza a Zebra dando uma de advogada da pobre moça prestes a ser executada com a forca.

– O que vocês todos acham da proposta da camarada Zebra? – pergunta o comandante Macaco.

– Acho que ela tem razão. Vamos poupar a moça, somente ela – diz o Elefante.

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– Todos concordam em absolver a moça?– Sim – todos responderam positivamente, com exceção do

Tigre, que se fosse por sua vontade, executaria a todos.– A moça está absolvida então – bate o martelo o Macaco –

desamarrem-na e levem-na, então, junto aos outros anistiados, pois logo serão soltos e terão suas plenas liberdades, conforme decidiu este tribunal. Diante do inesperado a moça não sabia se ria ou se chorava. Por fim, somente agradeceu a Zebra, seu anjo da guarda.

Primeiramente, vamos ao cumprimento da sentença com a execução do gato Boris por fuzilamento. Esta, será a execução que cabe a esse tipo de pena, bem como figurará como o ato inaugural da nossa revolução.

– Quem se habilita para ser o executor? – pergunta o Coman-dante Macaco.

Antes que outra qualquer resposta possível adviesse de outro bicho, o Tigre, esperto, se adianta:

– Eu. Por favor, Comandante me dê esse gostinho, que há tempos tenho acalentado a vontade de sentir.

Escolhido o Tigre como carrasco, como última tentativa de salvar sua vida, o gato Boris se prostra aos pés do Comandante Macaco, implorando:

– Me perdoem meus irmãos, eu sou animal igual a vocês – fala o gato Boris ajoelhado, com as patas em sinal de oração e com os olhos vertidos em lágrimas – eu sou muito jovem, tenho muito a viver ainda. Eu imploro clemência, me perdoem, por favor. Além do mais, eu nem gostava desses infelizes – diz ele se referindo aos seus donos.

Mas, o apelo sôfrego do gato é em vão. – Morra com dignidade seu infeliz – diz o Tigre, já engati-

lhando e regulando a mira da arma com que faria a execução, uma espingarda calibre 12.

Naquele recinto não havia mais espaço para compaixão. – Amarrem-no! – ordena o Macaco, sem levar em considera-

ção o que dizia o tal felino.Todos de pé são obrigados a assistirem a execução, inclusive

os absolvidos, que àquela hora, já estavam desvendados e sem

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mordaça. O momento era tenso. Ao final da contagem de um a três, mais o devido sinal do Comandante Macaco, o Tigre deferiria o tiro, um único e fatal disparo, em desfavor do pobre gato.

Levantando um dos braços, o Comandante Macaco dá o si-nal, dizendo:

– 1..2..3... e... FOGO! – ordena o Comandante, descendo o braço erguido.

Antes de receber os cortantes orifícios de chumbos em toda a extensão de seu miúdo corpo, gato Boris, de tanto desespero, tremia tal como vara de bambu verde e se urinava todo.

– Covarde até a hora da morte. Ele me dá nojo – comenta o Tigre enquanto se posiciona procurando a melhor mira para atirar no bichano.

Dono de uma frieza estarrecedora, o Tigre aperta o gatilho, enquanto ri maquiavelicamente. Estava acabado o sofrimento do gato Boris, com um único e desarrazoado disparo, quase a queima roupa.

– Morra seu desgraçado. Mande minhas lembranças para o inferno – grita o carrasco e ensandecido Tigre.

POW!O gato Boris é atingindo, bem no meio do tórax. O tiro de

doze naquele pequeno corpo foi desproporcional. Pedaços dele se espatifam para todos os lados. Chumaços de seus pelos brancos voam pelo ar. Os membros superiores e inferiores se apartam da cabeça. Uma das patas superiores foi para um lado, o rabo para o outro. Seu tecido adiposo, sangue e vísceras são espalhados nas vestes de todos os que assistiam. A cena deixou todos estarrecidos, com exceção do Tigre, se deleitava com a carnificina, enquanto gritava de forma ensandecida: “VIVA A REVOLUÇÃO!”

Vendo que uma parte do tronco ainda estava contíguo a da cabeça, e que ainda se mostrava quase “intacta”, diferentemente do resto de seu corpo, o Tigre se dirige até e ele e desfere outro tiro, o de “misericórdia”. Olhando bem nos olhos mortos do gato dizendo:

– Essa é a lição que daremos a todos os traidores como você gato Boris que deram as costas a revolução, esqueceram-se de suas

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raízes, negaram sua condição de animal preferindo ficar do lado dos exploradores humanos.

Feita a primeira execução em nome da revolução, era hora de por em andamento, a execução agora, da família Corpefield. O primeiro a ir a forca seria o pai, depois a esposa e o filho, sucessiva-mente nessa ordem. Cada um foi conduzido por um algoz diferente, pelos camaradas Elefante, Hipopótamo e Zebra, respectivamente. Havia três cordas. Poderiam ser enforcados todos juntos, mas os bichos decidiram que cada um veria a morte do outro, como forma de sentirem aquela mesma aflição que os bichos experimentaram, quando viram seus parentes e amigos sendo assassinados.

Por conta disso, toda a família é conduzida ao alto tablado, sendo que cada um é forçado a se posicionar em cima de uma banqueta, na presença de todos os outros réus absolvidos. O circo que outrora só demonstrava aparente alegria, agora dava espaço a um espetáculo tenebroso de execuções frias e sanguinolentas. São colocadas as cordas em cada um de seus pescoços, do Mr. Hermmam, de sua esposa e filho. A primeira corda, então, é posta naquele pescoço curto e grosso, encoberto por uma enorme papa-da, peculiar ao aspecto físico do patriarca Hermmam.

Assim que perceberam que estava tudo pronto para a execu-ção, o comandante Macaco dá o sinal para que o Elefante derru-basse a banqueta. E assim foi feito, depois do aval dele, e antes de empurrar a banqueta, o Elefante brada em plenos pulmões: “TUDO PELA REVOLUÇÃO!”. Depois disso, dá um leve toque na banqueta, com uma das patas e seu Hermmam fica ali pendurado, somente pela corda amarrada a seu pescoço. De tão obeso e pesado, a corda de pronto, vai apertando gradualmente, esfacelando assim as argo-las de sua garganta, bem como, travando sua jugular, impedindo rapidamente, o fluído de sangue que irrigava seu tecido neural.

Seu rosto incha, e ele começa a rosnar, repetidamente. Sente falta de ar e um leve formigamento na cabeça, fator esse que pro-clamava seu desmaio. Estrebuchando, com os olhos arregalados como nunca dantes visto, tenta pronunciar algumas palavras, mas em vão. Seu corpo gira em movimento de rotação por conta dos movimentos desesperados de seu Hermmam em querer se “sal-

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var”. Talvez, somente quisesse pedir perdão aos bichos, firmando a promessa de que não faria mais mal a ninguém a partir dali. Ou talvez, só quisesse pedir a Deus a salvação de sua alma. Enfim...

Sua esposa, vendo seu companheiro outrora tão majestoso, naquela situação, começa a chorar fartamente, pedindo que Deus resgatasse a alma do marido do inferno. O filho, decide não olhar a cena, fechando os olhos e rezando copiosamente para que o pai tivesse uma morte menos dolorida. Ambos começavam a sentir o gosto amargo e humilhante dos momentos finais de suas vidas, logo de maneira tão imprevisível e dramática. Quando Hermmam terminou de lutar pela vida, desistindo de impedir seu desígnio cabal de morte, ao final, havia até babado todo seu hobby de seda. Os bichos davam urros de vitória, já quanto aos funcionários e tratadores absolvidos, eram possuídos por sentimentos contraditó-rios. Uns se chocavam, outros se regozijavam por dentro.

Cumprida a segunda execução da revolução, agora era a vez da execução da esposa de Hermmam. Seu pescoço, por vezes -, adornados com caros colares de pérolas e cachecóis de peles de animais -, agora dividia espaço com uma corda velha de quinta ca-tegoria. Engraçado notar, que uma reles corda que ela certamente desprezaria, por seu estado ínfimo, hoje teria a função de dá cabo a sua tão preciosa vida, eivada de ostentações, ócios inveterados e vida nababesca. O modus operandi é o mesmo. Depois do aval do comandante Macaco, o Hipopótamo empurra a banqueta da mulher. Esta, diferentemente do seu marido, morre com classe, silenciosamente, apesar de expor de forma escandalosa, a sua qui-lométrica língua para fora. Enquanto renascia para eternidade, ao fundo, escutava-se o clamor de seu executor, o Hipopótamo: “VIVA A REVOLUÇÃO!”

Pai e mãe executados, agora era a vez da execução do filho Hermmam Jr. Este mais jovem, forte e resistente, demora um pou-co mais a morrer, pois dos três, era o que tinha o peso mais leve. Depois que empurrou a banqueta, a Zebra querendo se certificar que Hermmam Jr. estava mesmo morto, ainda se pendura junto ao corpo dele, fazendo uma forte pressão para baixo. Assim como os outros, dá seu grito: “FAMÍLIA CORPEFIELD EXECUTADA, RUMO

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A REVOLUÇÃO!” Para o comandante Macaco, aquilo tudo se apre-sentava como um elixir para sua alma, mais parecia um sonho. Quem diria que depois de todo sofrimento, os três corpos estavam ali pendurados sem vida, inertes impassíveis de realizar qualquer tipo de ação, dessa que outrora, era denominada de a “poderosa família Coperfield”.

Todos devidamente executados, era hora de libertar os absol-vidos. Isso ficou ao encargo do comandante Macaco, dos camara-das Coelho e do Leão. Para os absolvidos foi dado um carro para que eles fossem embora mais rápidos e longe tanto quanto possível. O comandante Macaco ainda decidiu confiar-lhes parte do dinheiro encontrado no caixa do circo, além de algumas peças de valor da família Coperfield. Fez isso apesar da contestação de alguns dos bi-chos. Uns achavam que os lucros auferidos no circo eram somente seus de direito e que serviriam para financiar a revolução. Entretan-to, o comandante decidiu ratear o dinheiro, pois assim como eles, os funcionários também, haviam trabalhado para isso.

Antes de todos serem, finalmente, libertos o Comandante Macaco lhes faz a última observação: “Apesar da crueldade de vo-cês para conosco, ainda sim foram perdoados pela nossa revolução. Oriento vocês a somarem com agente nessa nova era que se inicia. Revejam seus conceitos, reeduquem seus filhos para que eles pos-sam conviver com os bichos e com a natureza em harmonia. Não abriremos mão da nossa igualdade de direitos. Andem na linha e caso descubramos que vocês assediaram, maltrataram ou assas-sinaram algum bicho, não tenham dúvidas humanos, que nosso grupo armado caçará vocês onde vocês estiverem e justiça será feita, assim como aconteceu com a família Coperfield. Vão embora antes que mudamos de ideia. Sumam da nossa frente e esperem o surgimento do nosso novo governo. VIVA A REVOLUÇÃO!”

Enquanto os funcionários e tratadores vão embora, os ou-tros com os Tigres, Hipopótamo, Elefante e a Zebra preparavam de encharcar todos os recintos do circo com querosene. A ordem do comandante era expressa: “tudo era pra ser consumido com fogo, não era pra restar pedra sobre pedra”. Finalmente era hora de en-cerrar a primeira fase, com maestria. A primeira missão do grupo

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revolucionário havia sido um sucesso. Só faltava agora acabar com aquela lembrança daquele lugar.

– Queimaremos tudo. Todos os caminhões, trailers, as jaulas, as correntes, os chicotes, as esporas, fantasias, arquibancadas e máquinas de choque. Reguem também, de querosene, os corpos dos membros da família Coperfield e o que sobrou do finado gato Boris – recomenda o Macaco.

De tudo que havia no circo, fora poupado somente um ca-minhão Truck com uma bela caçamba, que dava para transportar, praticamente todos os bichos da revolução com folga. Usariam tal veículo em nome da revolução, logicamente como suporte para por em prática os outros intentos posteriores traçados pelo gru-po. Aquele era, talvez, um dos momentos mais marcantes de toda aquela ação. O referido caminhão, já havia sido estacionado pelo lado de fora pelo próprio comandante, que era o único animal dali, que tinha aspecto físico favorável para dirigi-lo. Vendo que todo o circo, estava encharcado com o respectivo líquido inflamável, todos se posicionam próximo a porta de saída do circo, cada um ombreado ao outro: o comandante Macaco e os camaradas Coelho, Hipopótamo, o Leão, a Leoa, os Tigres, o Elefante e a Zebra.

Num gesto altivo e cadenciado, o Comandante Macaco retira dos bolsos uma caixa de fósforos riscando um palito. Ritualistica-mente, ergue o palito aceso ao alto da cabeça e profere novamente: “VIVA A REVOLUÇÃO!” Dito isto, baixa o fogo em direção ao chão onde se encontrava um punhado de feno molhado com querosene. Esse chumaço, interligava como um rastilho de querosene, dire-tamente em direção ao local onde se encontravam os corpos da família Coperfield. Rapidamente, o fogo se alastra em direção ao centro do picadeiro, onde se jaziam os cadáveres pouco frígidos e enrijecidos do Mr. Hermmam, esposa e filho. Feno e as serragens fazem avançar o fogaréu com grande agressividade e rapidez circo adentro. Logo o fogo consome os corpos, ainda pendurados, como tochas humanas suspendidas pelo pescoço.

Além da queima dos corpos, concomitantemente, o fogo vai se alastrando para outros recintos na mesma intensidade, passan-do pela lona e equipamentos consumindo de igual modo, os trai-

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lers e outros veículos. Explosões são ouvidas. A matéria do corpo da família Coperfield vai se desfazendo como cera quente, que se dissolve similar a uma vela igualme

te acendida. Aquele fogo simbolizava o fim de uma era per-niciosa e para o começo de outra, bem mais vantajosa para os bi-chos. Era como se ali estivesse simbolizada o renascimento de uma fênix, anunciando dias melhores para as condições dos animais de todo aquele lugar.

Todos os bichos olhavam fixamente para aquelas chamas. Seus olhos refletiam as labaredas de fogo que consumia o circo. Um filme passa na cabeça de todos eles, um perfilado ao lado do outro. Poucos minutos depois, tudo havia sido consumido pelo fogaréu. Haviam restado só cinzas. Àquela hora, a fumaça chama-va atenção na cidade, os bombeiros já haviam sidos acionados e a mídia se dirigia ao local, com vistas a dá o furo de reportagem. A Zebra mais emotiva, deixa cair uma lágrima, dizendo: “Fiquem com a minha última lágrima família Coperfield”.

Vendo que o fogo estava inapagável e que tudo havia ou es-tava em vias de serem consumidos pelas chamas, o Macaco respira fundo, retoma as emoções, dizendo:

– Marchemos adiante, pois vitória é certa. Os humilhados serão exaltados. Louvado seja Deus. Até aqui nos ajudou o Senhor. Vamos agora ao cumprimento da segunda fase da nossa revolução. Temos de ir embora, pois logo chegarão os bombeiros, a polícia e a imprensa.

Todos pegam suas armas e se dirigem ao Caminhão Truck, estilo americano. Porém, antes de partirem para o zoológico, com intuito de libertar outros bichos para engrossar as fileiras do Grupo Revolucionário, eles deixariam a Leoa no melhor médico veteriná-rio plantonista da cidade. E assim o fizeram. Devidamente posta aos cuidados do médico veterinário competente, o Comandante Macaco, então vai dirigindo em direção ao zoológico, ainda ao amanhecer. Estavam no caminhão, todos os bichos, com exceção da Leoa claro, pois se recuperava em ambulatório adequado ao seu caso clínico. Com o caminhão à frente, eles invadem de supe-tão o zoológico. Derrubam o portão frontal, desferindo vários tiros

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em alguns guardas posicionados na guarita. Os bichos confinados percebem o movimento. Ficam alegres, e de jaula em jaula, vários outros bichos de espécies variadas são libertadas: jacarés, lhamas, caititus, girafas, camelos, ursos, garças, etc.

Feito isso, já ladeados com um forte corpo de animais, era agora a hora de partir para uma das missões, talvez, a mais delica-da: a tomada do Comando Militar Geral. Os bichos contavam com muita adesão, mas não tinham armamentos suficientes, para bater de frente, com os policias militares, bem treinados e fortemente armados. Entretanto, sabiam que teriam de arriscar. Com a mesma tática, eles invadem o tal quartel. Diferentemente do que ocorreu no zoológico, eles são recebidos com várias rajadas de tiros. Os bichos tentam revidar na mesma proporção.

Para sorte deles, o contingente de militares era pequeno na-quele dia, pois muitos estavam prestando solenidade em comemo-ração ao centenário de nascimento de um famoso almirante militar em outra parte da cidade. Não foi fácil, depois de duas horas de intenso tiroteio, houve baixas significativas dos dois lados. Solda-dos humanos e guerrilheiros bichos haviam tombados. O próprio Comandante havia tomado um tiro de raspão no braço. Coube à enfermeira Zebra improvisar lhe um curativo. De tanto persistirem, finalmente conseguem neutralizar o quartel, onde tomam poder de um importante arsenal mais fardamentos de guerra camuflados. Ao General Leão, é orientado ficar lá com uma considerável parte dos animais, pois sua permanência ali, sustentando o predomínio naquele local, era de suma importância. Vendo que mais uma vez, a missão se desenrolava com sucesso, apesar das primeiras baixas, os bichos do circo, agora somados aos do zoológico, gritavam forte em plenos pulmões:

– VIVA LENINE! VIVA CHE GUEVARA! VIVA MAO! VIVA A ÁFRICA!

E, assim, seguiram gritando pelas ruas da cidade, a bordo do vistoso caminhão, agora rumo à estação de TV. A bandeira do novo estado estava desenrolada no para-brisa do carro. Alguns, davam rajadas de tiros pra cima. O povo pelas ruas via a cena e ficavam estupefatos com aquilo tudo. A informação já havia vazado para

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toda a cidade. Os humanos preparavam o contra-ataque. Assim di-vulgavam os noticiários: “EXTRA! EXTRA! BICHOS REBELADOS, MATAM DONOS DE CIRCO E QUEIMAM SEUS CORPOS EM NOITE MACABRA.”, “ATENÇÃO! TERRORISTAS ANIMAIS ATIRAM EM SEGURANÇAS E DESTROEM TODO O ZOOLÓGICO DA CIDADE, LIBERTANDO VÁRIOS BICHOS” ou “BICHOS INVADEM QUARTEL COM CAMINHÃO, MATAM SOLDADOS E ROUBAM POTENTE AR-SENAL”.

Todos ficam apavorados e o clima era de terror na cidade. A par de toda essa situação, com vistas para por em andamento os próximos passos da revolução, os bichos sob a batuta de seu deste-mido Comandante Macaco, seguem em direção a TV local. A ideia era entrar com um link ao vivo na televisão local com vistas a da ciência da recém-instalada revolução, no intuito de arregimentar muito mais outros bichos, quantos tantos fossem possíveis. A es-tratégia é a mesma, mesmo com o caminhão todo danificado pelos constantes arrombamentos e todo crivado de balas, eles invadem a entrada principal, derrubando seus portões. Descem e rendem o único segurança presente na guarita. Este, vendo estar em fla-grante desvantagem, não esboça reação. Dentro do departamento de jornal os bichos gritavam: “BICHOS NO PODER. ABAIXO A EXPLORAÇÃO. AVANTE A REVOLUÇÃO”.

Imbuídos desse sentimento avassalador, seguem para o es-túdio onde eram atualizadas as últimas notícias sobre a “invasão dos bichos terroristas”. Em pouco tempo, tomam conta de uma TV e rádio que transmitia notícias diuturnamente para toda região. In-vadem o estúdio em pleno meio dia, tomam a bancada do jornal, expulsando os jornalistas que saem de lá, todos descabelados e com seus ternos e blazers abarrotados. Antes de tomar a frente das câmaras, o Comandante Macaco dá uns retoques de maquiagem no seu rosto para minimizar a “oleosidade” de sua pele, ou seria pelo.

Animais da cidade toda se aglomeravam em frente à televi-são para assistir. Havia começado com nove bichos, agora eram milhares deles, todos cientes dos seus papéis na história. As aves, no céu, migravam de todas as partes circulando por todo o mundo, espalhando a boas novas da revolução para os bichos desavisa-

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dos. Depois do pronunciamento e da convocação pulverizado as massas, uma multidão de animais sai das portas da televisão, e se dirigem em direção ao palácio. Mais armas são distribuídas aos outros bichos recém-arregimentados.

Em seguida, todos pegam suas armas e se direcionam ao Palácio do Governo. Um grande contingente armado de militares humanos, tropa de choque fieis ao chefe do executivo humano já os esperavam bem armados e entrincheirados para guerra. O con-fronto foi inevitável. Talvez fosse essa a batalha mais difícil de ser vencida. As tropas humanas estavam munidas de farto armamento bélico e tinham a seguinte ordem superior do chefe do executivo: “Atirem para matar todos os animais possíveis, sem clemência. Machos, fêmeas, gestantes, filhotes, animais deficientes e idosos. Trucidem todos. Entenderam, todos!” Já antevendo, o revide, os bichos também não aliviaram nos disparos. Além disso, todas as televisões filmavam com transmissão ao vivo, o entrevero para todo o mundo. O planeta inteiro estava com os olhos voltados para aquela cidade, que estava sendo contada para entrar para a histó-ria, como sendo a primeira cidade comandada por bichos.

Depois de muita troca de tiros e de muitos outros mortos, o esquadrão humano, vendo que estavam em desvantagem, decide abortar a missão, sendo que uma parte se rende com lenços bran-cos e as mãos para cima e a outra parte, foge desesperadamente, em retirada. Com o caminho livre, os bichos invadem as depen-dências de todo o palácio, tomando do gabinete governamental e retirando das paredes a foto oficial do Chefe do Executivo humano. A essa altura, vendo que seu governo havia sido tomado, o mesmo decide abandonar a cidade com toda sua família no helicóptero do governo. Com um gesto simbólico, eles descerram a flâmula que tinha em seu centro, o brasão da cidade local e colocam no lugar, a bandeira verde dos bichos tendo como desenho, o mapa africano.

O chefe humano estava deposto. Finalmente os bichos alcan-çavam o ápice de suas lutas, isso tudo graças as suas coragens e ao magnetismo peculiar do Macaco, que parecia que tinha nasci-do para liderar e fazer história. Com o palácio tomado, era bicho para todo lado, saindo pelo ladrão. Era um lugar luxuoso com aca-

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bamentos finos de assoalho de madeira e bem encerados. Prédio clássico do século retrasado em estilo francês. Lustres de cristal enfeitavam o teto adornado por belos afrescos barrocos italianos. Obras de artes e esculturas dos mais renomados artistas nacionais e internacionais enfeitavam o ambiente com esplendor.

Na sacada do palácio o Comandante macaco, ladeados pela alta cúpula da revolução, todos devidamente empostados com suas armas, preparavam-se agora, para ouvir o discurso ápice da revolução. A conclamação, o pronunciamento arrebatador do ca-marada e comandante supremo da revolução Macaco. De quepe militar na cabeça, roupa de camuflada – com cada ombro, devida-mente enfeitado com quatro estrelas em cada dragona -, com um charuto nas mãos, um curativo num dos braços e acariciando sua bela barba esbranquiçada a lá Marx, o Comandante começava seu histórico discurso. Assim dizia sua longa fala, com direito a trans-missão ao vivo nas TVs para todo o mundo, em plena sacada do palácio, e sob o olhar atento dos outros bichos, que se alinhavam no entorno do palácio aos montes.

Assim começa ele:

– Camaradas bichos de todo o planeta. Nós, do Grupo Revolucionário Armado dos Bichos, o GRAB-9, representantes legítimos desta Revolução, vimos neste glorioso dia, anun-ciar a irrevogabilidade da criação do Estado dos Bichos. Uma nova era se inicia para nós. É hora de unirmos e reagirmos contra a opressão sanguinária humana, que temos sofrido desde os tempos de nossos saudosos ancestrais. Ao longo dos tempos, temos sidos explorados, subjugados e exterminados. Nossas parceiras, filhos, pais, mães e famílias massacrados sem dó, nem piedade. Não temos liberdade e somos usados como escravos para servir os humanos. Eles só nos têm como elementos subservientes para manter as suas sobrevivências. Somos, sistematicamente, abatidos, confinados e nossos cor-pos utilizados como meros adereços de decoração. Pois em verdade vos digo, os tempos de opressão e violência contra nossas espécies acabaram. Animais em extinção não serão

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mais tolerados em nosso governo. É hora de viramos o jogo. A primavera dos bichos se aproxima, trazendo consigo os bons ventos de esperança, da vida e da liberdade. Temos ciência de que a luta é árdua, mas com a soma de nossas forças, resis-tiremos e morreremos, se preciso for, pela revolução. Desistir jamais. Retroceder nunca. Abaixo ao etnocentrismo, exigimos direitos iguais com os humanos, para quem sabe um dia, possamos conviver em harmonia e respeito com todas as es-pécies. Chegou a hora de darmos um basta!

Olhando para os bichos e vendo que todos o observa-vam quase que hipnotizados, o Comandante Macaco, e agora Chefe do Executivo Animal desfecha sua fala, descerrando o ponto alto de seu discurso e conclamando a todos:

– Avante Bichos, vamos mudar a história dos nossos descendentes. Não vamos nos acovardar. Já mostramos que somos capazes, para que livres, possamos voltar, sem demo-ra, a nos reproduzirmos; exercendo assim, nossos estados naturais nas florestas, para que possamos viver, reproduzir e morrer de forma natural, nos utilizando de uma cadeia alimentar equilibrada e justa. Somente a união entre nós, os explorados, em maior número, seremos capazes de reverter essa situação. Peço que lutem pela manutenção de nosso po-der e de nosso governo. Unidos, juntos e irmanados seremos mais fortes e imbatíveis. A partir de hoje, baixo decreto, que ficam extintos o uso discriminatório de animais em circos. VIVA A REVOLUÇÃO ABAIXO A EXPLORAÇÃO. LIBERDADE E IGUALDADE PARA TODOS OS BICHOS JÁ!

Depois do longo discurso, o chefe Macaco, assim que termina de explanar os motivos do governo, de punho cerrado acima da cabeça (gesto seguido por todos os outros bichos que lhe ouviam e o apoiavam), repete três vezes o mantra, que a partir dali, seria disseminado durante toda a revolução:

“BICHOS DO MUNDO TODO UNI-VOS!”

São Luís, 13/08/2015

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C o n t o 2 - A C r i a ç ã o

TEMA: AMBIÇÃO

Conto extremamente religioso, que narra a seleção de seres para encarnarem e habitarem a terra. O autor se detém exclusiva-mente com a seleção da criatura n°11.945.368 que é uma “coisa” deveras ambiciosa nas suas predileções, boa parte do conto se de-dica a entrevista da “coisa” cujas respostas são, perceptivelmen-te, mal intencionadas sendo que ela escolhe sempre as melhores opções, justificando sua escolha. Quando mediante a sua última escolha, a entrevista é interrompida com a voz do Todo-Poderoso convocando a “coisa” para julgamento, juntamente, com os seres celestiais; o autor deixa transparecer que a “coisa” é o “coisa ruim” e o prova utilizando a passagem bíblica de Ezequiel 28. 12- 17; suas ambições eram: habitar o planeta terra, ser do sexo masculi-no, pertencer à raça branca, ser chefe de estado e morar nos EUA. Fica estabelecido pelo Todo Poderoso que, os desejos da “coisa” se-riam cumpridos, à exceção do local de habitação, que seria trocado pelo Brasil, decisão essa, inutilmente questionada, pela “coisa”. Vem ao Brasil, recebe o nome de Fernando Calvacanti, torna-se presidente, tem sua presidência marcada pela corrupção, golpe de estado, roubalheiras sem fim e todo tipo de falcatruas. Desfecho final: seu “suicídio” aos 52 anos. Fim da vida terrena início da vida eterna. Mais uma vez a “coisa” se encontra diante do Todo Poderoso dessa vez para saber o seu destino na eternidade. Sendo mandado para as chamas infernais.

“No topo da pirâmide do universo só há lugar para um, e “esse um” sou Eu por toda a eternidade. Como pode uma criatura querer se voltar contra o seu criador? Não lembram vocês que o orgulho, a soberba e a ambição desmensurada pelo poder já ani-

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quilou muitos seres que eu permiti que viessem à vida”. (conto A Criação)

Ambição, orgulho, vaidade, cobiça, soberba, presunção, pre-tensão. A ambição possui um currículo invejável; foi um dos pri-meiros pecados a entrar no universo (segundo a Bíblia), contribuiu para as maiores conquistas da humanidade; também foi a respon-sável pelos maiores desastres; o ser ambicioso não aceita ser, nada menos que o melhor; não se acomoda às coisas medíocres e visi-velmente sem valor.

“Se as coisas são inatingíveis, ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes seriam os caminhos se não fora a presença distante das estrelas”. (Norman Vincent)

O problema não se encontra basicamente na ambição, mas na forma como a utilizamos. Tudo que é usado desmesuradamen-te, traz consequências terríveis “a única diferença entre o remédio e o veneno está na dose ministrada” a partir desse provérbio po-pular, concluímos: que ambição pode ser benéfica ou maléfica po-dendo nos ajudar na conquista dos nossos ideais ou nos prejudicar com suas funestas consequências assim como o conhecimento que pode ser utilizado com sabedoria para o bem, ou com insensatez para o mal.

Jovenildes Ribeiro

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A CRIAÇÃO

Há milhares de quilômetros da superfície terrestre - numa manhã solar em meio a esparsas nuvens, de-masiadamente alvas - uma gigantesca e infinita fila

indiana se formava no céu, para bem além da exosfera. De tão extensa, chegava-se até a perdê-la de vista. Um imenso exército de seres amorfos se preparava, ansiosamente, para habitar o extraor-dinário planeta azul, pela primeira vez.

Em sentido contrário (da terra para o céu), outra enorme fileira se constituía; só que dessa vez, formada por pessoas, que já haviam “esticado as canelas”, ou seja, encerrados seus ciclos como habitantes terrenos. A bem da verdade, era hora de prestar contas. Iriam constatar se seus nomes se encontravam ou não no livro da vida. Notadamente, estariam no referido livro, aqueles que haviam aceitado, com sinceridade, a Cristo como seu único e suficiente Salvador.

Caso houvesse alguém que não tivesse aceitado ou ficado indeciso, não restava a estes, senão carimbar seus passaportes com o brasão eternal do inferno. O “trânsito” de chegada e saída dessas “coisas” com as pessoas era tão intenso e caótico, que os anjos das guardas, transformaram-se em “anjos-guardas”, só para organizar o fluxo de circulação, desses adoráveis transeuntes.

Pois bem, essas criaturas, outrora citadas, possuíam aparên-cias tão inexpressivas, que chegavam a assustar. Eram como “coi-sas”. Não passavam de um reles punhado de argilas opacas sem formas, sem olhos, sem sentidos, sem sentimentos, sem razão, en-

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fim, sem absolutamente nada. A única habilidade que lhes foram admitidas, era a de se arrastar e responder as perguntas que lhes eram formuladas; não pela fala, mas sim por um estranho ruído, que só os arcanjos entrevistadores do Criador, que repassavam as perguntas, eram capazes de decifrar.

Essas perguntas, eram selecionadas por um grande super-computador, devidamente programado com o intento de tomar ci-ência de quais características tais “coisas” gostariam de assumir enquanto de suas estadias na terra. Faz-se necessário ressaltar, que tais indagações, eram dirigidas levando em consideração quem já habitava nela, bem como também, as escolhas dos primeiros en-trevistados.

Essa seleção era imprescindível, pois favorecia com o povo-amento de uma terra diversificada com espécies e cadeia alimen-tar variadas, favorecendo, por conseguinte, uma sociedade e na-tureza mais equilibrada e cheia de atrativos. A ideia era preservar um mundo heterogêneo cheio de diversidades, para torná-lo mais cheio de graça para os que viverão nela. Na cabeça do Criador, não haveria sentido, inventar um mundo com todos idênticos, como num regime comunista, pois se assim o fosse; não teria motivos plausíveis nenhum para tais “coisas” deixarem de serem “coisas”, já que tinham como particularidades principais, serem iguais.

Como dito, essa era uma das únicas expressões creditadas às macilentas criaturas, responder as perguntas, além também, se fosse o caso, de justificá-las, a critério ou não do arcanjo entrevis-tador. No andar superior a seleção, o Soberano Criador monitorava tudo de seu confortável trono, com vistas a fiscalizar e intervir - caso lhe fosse conveniente - no sistema de criação dos seres, que iriam retirar-se de Seu reino, para residirem na sua outra criação, a terra.

Enfim, passa-se mais um dia comum de rotina na seleção, quando eis que se apresenta, mais um desses seres. O supercom-putador é rápido. Percebendo que a nova coisa já havia se posi-cionado para responder as perguntas, gira seu grande arquivo e elenca as perguntas específicas para aquele ser.

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A essa altura, aqueles infelizes chamados Adão e Eva já ha-viam cometido o maior dos erros da humanidade, portanto, não haveria mais perfeição na face da terra.

Um arcanjo de óculos, com ar de intelectual e um moderno tablet nas mãos, repassa, primeiramente, as instruções a criatura entrevistada:

– Muito bem, criatura nº 11.945.368, você está aqui porque o nosso Magnífico Senhor Criador permitiu que você habitasse a terra. O sistema selecionou as seguintes perguntas pra você. Res-ponda somente o necessário, dentro das alternativas propostas, nada mais que isso. Entendeu?

– Sim – respondeu a coisa secamente.– Pois bem, qual reino pretendes fazer parte lá na terra? Ani-

mal, vegetal, ou mineral? – Animal.– Por quê? – retruca o arcanjo entrevistador.– Porque acredito que sendo animal, teria mais chances de

por em prática meu desígnio na terra. Ademais, não sei se con-seguiria viver como um vegetal transformando raios solares em fotossíntese, acho tal processo muito complicado. Também não me imaginaria, na condição de nível trófico primário, com a tamanha responsabilidade de produzir alimentos como os grãos, cereais, le-gumes e frutas para os outros seres. Isso sem falar na complexa transformação do complexo Dióxido de Carbono (CO2) em Oxi-gênio (O2). Enfim, caro arcanjo, acho tudo isso uma grande res-ponsabilidade, ainda mais nesse século XXI, onde as florestas são devastadas e o assunto meio ambiente, é a bola da vez. Não sei se teria capacidade suficiente para tão nobre função. É isso.

– E o reino mineral o que há de errado com ele? Por que não quer fazer parte do reino mineral? – provoca o arcanjo.

– Apesar de todos serem importantes, ainda sim, acredito que o reino mineral, talvez, seja o mais valioso. Quem sou eu para me revestir com tamanho encargo? E como suportaria passar mi-lhões de anos imponente e imóvel resistindo ao tempo como um imortal, apesar das intempéries dos vendavais, helioses e tempes-tades. Imagine eu sendo ouro, diamante, níquel, cobre, alumínio

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ou petróleo. Me acho tão insignificante seu arcanjo, que não me sentiria bem se elevado ao posto de elementos com tamanha no-breza, tão valorizados, que valem milhões e que facilitam a vida de todo o mundo. Isso sem mencionar as produções de medicamen-tos. Quanta responsabilidade eu teria! Enfim, ser um mineral, seria um enorme fardo que uma reles criatura como eu jamais poderia suportar.

– É. Tenho de admitir que suas respostas foram bem fun-damentadas. Irás a terra como animal então – treplica o arcanjo entrevistador, logo iniciando a próxima indagação.

– Pois bem, primeira pergunta respondida, já tenho em mãos a segunda pergunta da máquina. Estás preparado?

– Sim.– Já que preferiu habitar a terra como animal. Pretendes ser

um animal racional ou irracional?– Racional.– Justifique sua resposta.– Bom, o senhor arcanjo bem sabe, que como animal ra-

cional, eu teria muito mais a contribuir no planeta, inclusive no sentido de elaborar projetos que facilitariam a vida dos irracionais tão subalternizados por estes outros.

– É mesmo, mas por quê? – retruca o arcanjo assustado, logo tentando relevar as vantagens da outra alternativa não escolhida pela tal criatura - com essa decisão de ser racional, jamais serás um pássaro, e, por conseguinte, nunca poderás voar.

Tentando exaltar algumas benesses de ser irracional, reforça o arcanjo entrevistador:

– Olha criatura, - diz o arcanjo em tom baixo e com as mãos próximas a boca, - tenho de lhe confessar que de vez em quando, dou umas escapadas voando lá para baixo na terra, sem que o Criador Pai saiba. Você não imagina o que é sentir o frescor gélido da brisa em sua face. Planar por sobre cânions, mares, florestas, vulcões e geleiras. Posar no topo da montanha do Himalaia e ficar a descansar com o mundo todo aos seus pés. Ai, ai... Suspiro só em lembrar... E peixe? Não poderás nadar como um tubarão nas profundezas mornas do oceano, bem como também; não poderá se

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alimentar como um felino, diante da fartura de presas, encontradas com abundância, nas savanas africanas ou na floresta amazônica brasileira.

– Sei disso tudo senhor arcanjo. Imagino que deva ser muito bom voar, nadar ou se fartar com caças de carnes saborosas como a de um javali ou de uma zebra, mas ainda sim, prefiro ir como ser racional, para melhor por em prática, meus intentos.

– Certo então. Muito bem senhora criatura nº 11.945.368º você é irredutível mesmo hein? Vamos para a terceira pergunta então. Quer ser macho ou fêmea, digo, homem ou mulher? Já que desejas ser um animal racional, ou seja, humano.

– Macho, quero dizer, homem.– Justifique-se. Olha que a maioria prefere ser mulher.– Pois é senhor arcanjo, inclusive eu acho muitos corajosos

os que escolheram ser mulher. Na verdade, admito, não teria a capacidade de ser mulher nesse mundo demasiadamente machis-ta, patriarcal e opressor. E outra, permita-me revelar um segredo. Sendo homem eu teria a oportunidade impar de apreciar a beleza de uma mulher, sentir seu cheiro, adormecer em seus afagos, abra-çá-la além, lógico, possuí-la em seu estado natural. Ademais, não teria a capacidade de suportar a dor do parto, realizar múltiplas ta-refas, cuidar das crianças. Na verdade, senhor entrevistador é que sou medroso e fraco demais para ser mulher, admito. Ser mulher é a mais árdua das missões que o mundo possa oferecer.

– Ah! Nisso eu concordo com você, apesar de eu não ter sexo, a mulher é sem dúvidas, a criação mais perfeita do Nosso Soberano Criador. Sua verdadeira obra prima. O resto é mero com-plemento – diz o arcanjo.

Pois bem, tenho aqui em meu tablet as seguintes característi-cas que você escolheu livremente: fará parte do reino animal, serás racional e homem. Confirma essas respostas?

– Sim confirmo. É isso mesmo.– Entretanto, ainda não acabou temos mais algumas pergun-

tas e logo logo, nascerás na terra. A bolsa da sua mãe já estourou lá embaixo. Ela agora está nesse momento, num carro em direção à maternidade, prestes a dá luz a você.

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– Vamos ver agora, qual pergunta a máquina selecionou para você. Vejamos então. Ela trata da sua etnia. Qual sua raça pretende ter na terra: branco, nipônico, indígena, moreno ou negro?

– Branco.– Fundamente sua escolha. Não vai me dizer que és racista?– Não. Muito pelo contrário – nessa hora a coisa fica descon-

certada, não sabe o que responder, demora um pouco, é quando encontra uma saída em sua mente - quero ser branco, senhor en-trevistador, pelo simples fato de que na minha juventude, irei fazer algumas tatuagens. É isso! Existe pele melhor para realçar uma tatoo senhor arcanjo? Acho que não. Não me tenha como racista senhor arcanjo. Em minha opinião, as raças indígenas, africanas e orientais são as mais lindas desse planeta.

O arcanjo não se contém ao ouvir o teor da reposta e ri, di-zendo:

– Meu pai, essa foi a resposta mais estapafúrdia que já es-cutei em toda minha carreira de entrevistador. Querer ser branco para poder fazer tatuagens, como pode? Essa foi demais. Mas tudo bem, a máquina lhe deu essa opção, quem sou eu para objetar. Serás branco então. Já nos encaminhamos às perguntas finais. Só restam mais duas nos meus cálculos. Vamos à penúlti-ma, então.

– Muito bem, a profissão que queres ter. A qual trabalho queres dedicar sua vida toda. Eis as opções... Vejam só, foi se-lecionado pra você, dentre essas, médico, engenheiro, advogado, professor, juiz, padeiro, pintor, jornalista... a profissão de Chefe de Estado. Como você é sortudo, hein coisa nº 11.945.368?

– Estou em dúvida com relação as profissões de professor e Chefe de Estado. Acho ambas muito importantes.

– É, mas você terá de escolher uma.– Chefe de Estado. Pronto. – Vindo de você, já até suspeitava essa resposta. De fato,

ser chefe de estado parece ser bem tentador meu caro, mas você, por algum acaso, imagina o tamanho da responsabilidade de um cargo como esse; ainda mais num século cheio de tensões de guer-ras, crises econômicas, epidemias, terrorismo, escassez de água e

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alimentos? Sem falar que serás alvo permanente de conspirações. Muitos lhe bajularão, mas muitas outras forças, somarão esforços para arquitetar a sua derrocada, dia e noite, até o dia que serás deposto, finalmente, do poder, por bem ou por mal.

– Sim senhor arcanjo, tenho total ciência dos riscos inerentes ao cargo. Mesmo assim, ainda almejo ser Chefe de Estado. Meu intuito é poder ajudar as pessoas, diminuir com a corrupção, com-bater a fome e promover um mundo menos desigual. Além desses, meu maior objetivo será formar uma liga mundial com vistas a selar a paz em toda extensão do Oriente Médio.

– Sei - responde o arcanjo já meio escabreado, com aquele ser, que parecia ter uma resposta na ponta língua para praticamen-te tudo, além também, de ter a particularidade, de somente esco-lher as alternativas, aparentemente, mais vantajosas.

– Vamos, então, finalmente a última pergunta. Dentro de ins-tantes, estarás na terra como um chefe de estado, do sexo masculi-no e da raça branca. Pois bem, segundo seleção da nossa máquina, qual a nação que queres morar Brasil, Rússia, Austrália, Afeganis-tão, Guiné Bissau, Índia, EUA, China, Alemanha?

A coisa, já ansiosa, para estrear na terra respondeu a pergun-ta, sem titubear.

– EUA. Quero residir nos Estados Unidos da América. Antes mesmo de o arcanjo entrevistador esboçar qualquer

tipo de comentário, ouviu-se uma voz forte e estrondosa advindo do andar de cima.

Assim que a coisa havia terminado de pronunciar o “A”, a úl-tima letra da palavra “EUA”, um sinal de alerta vermelho acendeu no trono do Criador. De longe, se escutou um estrondoso vozear em forma de trovão, que abalou todo o universo. O céu entenebre-ceu como se fosse noite. Cometas cruzaram o espaço sideral, tem-pestades, furacões e tsunamis assolaram os quatro cantos mundo. Os sistemas de comunicação, na terra, já prenunciavam seu fim, com a chegada do apocalipse.

Vociferou a forte voz:– PAREM JÁ COM ESSA SELEÇÃO, IMEDIATAMENTE! – bra-

dou o Criador em tom bélico.

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Todo o céu parou. O tempo fechou. Os arcanjos e anjos ca-íram com os rostos no chão. A coisa entrevistada, que até então era incolor, fica amarela de apreensão. O Soberano Criador, então, convoca dois de seus melhores querubins de sua guarda pessoal, ordenando-os:

– Amarrem essa coisa imediatamente e tragam-na, coerciti-vamente, até a minha presença para julgamento. Convoquem, tam-bém, todos os anjos entrevistadores para assistirem a audiência.

Feito isso - todos devidamente perfilados diante do trono do Criador Pai - voltam as suas atenções, a ré, a coisa nº 11.945.368.

Antes disso, ela havia sido orientada por um anjo querubim:– Você foi intimada para prestar sua defesa na presença do

Soberano. Não ouse olhar para o esplendor de Sua face, respon-dendo, somente o que Ele lhe perguntar. Sua acusação: querer ser Deus. Será nomeado um advogado dativo para lhe defender.

Assim, começa a audiência de julgamento. O Criador fala:– Muito bem coisa nº 11.945.368, estava descansando em

meu trono, quando tomei ciência da sua última resposta de qual nação gostaria de nascer na terra. Ademais, pelo que consta aqui em seu relatório, as características por você escolhidas foram as seguintes: Reino animal, racional, sexo masculino, branco, chefe de estado e residir nos EUA. Foram essas as suas escolhas?

– Sim, Senhor Criador. Foram as repostas que dei face às per-guntas das quais a máquina selecionou para mim Soberano.

– E tens algo a mais a dizer com relação a isso? - reforça o Criador.

– Questão de ordem, Soberano! - intervém o advogado.O Criador, longânime, permite sua fala:– Excelentíssimo Criador, meu cliente só escolheu, em seu

juízo, as melhores opções das perguntas que foram selecionadas para ele e somente só. Quem não almeja ser e ter sempre o melhor. Isso é perfeitamente legítimo. Vossa Excelência não acha?

O Criador então retruca: – Ora, mas vejam só. Já temos uma confissão. Segundo suas

respostas dona coisa, mais a contestação de seu advogado, quer di-zer então que você estava querendo ser o melhor? Melhor a ponto

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de querer ser Eu na terra? De certo sim, senhor defensor, qualquer um pode querer ser e ter sempre o melhor, mas perfeito, jamais. Quem ousa ser mais perfeito que Eu? E me parece que era isso que seu cliente estava querendo ser. No topo da pirâmide do univer-so só há lugar para um, e esse um, Sou Eu, por toda eternidade. Como pode uma criatura querer se voltar contra seu criador? Não lembram vocês que o orgulho, a soberba e a ambição desmesurada pelo poder já aniquilou muitos seres que Eu permiti que viessem à vida. Judas Iscariotes, Herodes, Nero, Gêngis Khan, Hitler, Stálin, Napoleão, Sadaan... Peguem, agora, vocês dois a minha palavra. Leiam para mim em alto e bom som para todos ouvirem, do versí-culo 12 ao 17 do capítulo 28 do livro de Ezequiel, AGORA! - orde-nou o Criador - já esbravejando.

Trêmulos, e com a Bíblia nas mãos, leem os versículos a coi-sa e seu advogado, obedecendo ao justo juiz, o Criador:

–“Tu eras o cúmulo da perfeição, cheio de sabedoria e perfei-to em beleza. Tu estavas no Éden, o jardim de Deus; adornava-te toda a pedra preciosa: O sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, a turquesa, e esmeraldas e ouro. O molde dos teus tambores e tubas foi preparado para ti no dia em que foste criado. Tu eras o querubim ungido que cobre; Eu estabeleci-te; tu estavas na montanha santa de Deus; tu caminhavas livremente no meio de pedras ardentes. Tu eras perfeito nos teus caminhos desde o dia em que foste criado até que a iniquidade te abraçou. Devido ao exagero dos teus atos, ficaste cheio de violência dentro de ti, e pecaste; portanto expulsei-te da montanha de Deus como coisa profana; e Eu destruí-te ó querubim cobridor, do meio das pedras ardentes O teu coração mostrava-se altivo devido à tua beleza; cor-rompeste a tua sabedoria a favor do teu esplendor e Eu lancei-te ao chão”.

Depois de lido o versículo, o Criador emenda a deixa:– Perceberam, o que tive de fazer com aquele maldito, o pri-

meiro, que um dia ousou, desafiar minha soberania. Tivera tudo, mas pela inveja, botou tudo a perder. E sabes de mais uma coisa nº 11.945.368, pode se desfazer desse seu disfarce ridículo. Desde que entrou naquela fila, já sabia quem era você, o Anticristo. Seu ser

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desprezível, como ousa invadir meu reino, engabelar meus anjos e burlar as minhas criações, feitos a minha imagem e semelhança? Pagarás alto preço por isso. Pois bem anticristozinho, vou proferir a sentença que mereces. Serás tudo que escolheu, com exceção da última opção, que era a de morar nos EUA. Como querias, serás homem, branco e presidente, mas viverás no Brasil. Esta é sua sentença.

– No Brasil? Não! Eu suplico – se desespera o Anticristo, jogando-se aos pés do Criador - me mande de volta pro inferno, mas não me mande para aquele lugar. Eu imploro! Lá, só quem prospera são os bandidos. Quem estuda e trabalha, honestamente, passa fome. Como poderei viver num lugar desses? Por favor, So-berano, afasta de mim esse cálice – implora o Anticristo travestido de coisa.

– Mas porque todo esse medo? Não és tu mais teu compadre Lúcifer que incentiva naquele lugar tudo que abomino: carnaval, idolatrias, vícios, corrupção, homicídios, desigualdade, increduli-dade, roubos e destruição das famílias? Pois em verdade te digo, tudo isso terás em demasia lá. Prove agora do seu próprio veneno sua víbora desencarnada; carregue sua cruz seu infeliz e suma, para sempre, da minha frente e do meu sagrado Reino Celestial.

Depois de ouvida a sentença sem chance de recurso, o Cria-dor dá-lhe um chute no traseiro e manda-lhe em direção ao Brasil.

– Era só o que me faltava. Esse diabo não se emenda mes-mo. Aqui a criatura não se voltará contra Mim, o Criador. Quantas vezes vou ter de provar para ele e para essas criaturas que Só Eu, o El Shadday sou digno de toda honra e de toda glória. Perfeito, criatura, só Eu. Que aprenda a lição. E quanto a vocês, meus co-mandados, não perceberam que essa coisa era o Anticristo - aquele que tentará tomar o lugar de meu filho Jesus Cristo, o verdadeiro Príncipe da paz - anunciando a falsa paz em Israel. Redobrem suas atenções anjos e arcanjos entrevistadores. Não vou permitir mais nenhuma dessas falhas, ou farão companhia a esse verme lá no Brasil. Esqueceram vocês de nossa batalha comandada por Mi-guel? Deixa-me refrescar a memória de vocês: “E houve batalha no Céu; Miguel e seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava

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o dragão e seus anjos; mas não prevaleceram, nem mais o seu lu-gar se achou nos Céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o diabo e Satanás, que engana a todo o mundo; ele foi precipitado na Terra, e seus anjos foram lançados com ele”. (Apocalipse 12:7-9).

Graças a Jeová Deus, a vinda do tal Anticristo foi sabotada para este século, sabendo-se lá, qual tempo tal demônio voltaria a triunfar. Pois ele virá, como prevê o próprio Criador: “Filhinhos, esta é a última hora e, assim como vocês ouviram que o anticristo está vindo, já agora muitos anticristos têm surgido. Por isso sabe-mos que esta é a última hora.” (1 João 2:18).

Enfim, segue a criatura com destino a “cumprir sua pena” nascendo no Brasil. Como o Criador permitiu, foi a terra com todas as características por ele escolhidas, com exceção da última, que era morar nos EUA.

Fernando Cavalcanti, seu nome civil, engendra toda a sua saga para alçar ao poder máximo da nação brasileira. Chega o esperado dia. No púlpito do Palácio do Planalto, recebe a faixa presidencial das mãos de seu antecessor, em meio a uma grande e entusiasmada multidão. Depois de 1 ano, seu conturbado governo, na qual só ele e os seus enricavam, é deposto por um golpe, per-dendo tudo, o poder, a honra, a riqueza e prestígio.

No outro dia, como vindita, ameaça ir à televisão contar to-dos os segredos ocultos que sabia dos membros do Poder Legisla-tivo (Congresso Nacional), do Poder Judiciário (tribunais superio-res), da mídia e do empresariado. Não deu outra, no dia posterior a ameaça, fora achado por sua camareira, no banheiro, de pijamas e com 5 tiros a queima roupa, dentre eles, dois na cabeça, um no pei-to e dois nas costas. Para a imprensa, o ex-presidente em depressão e alcoolizado, havia dado cabo a própria vida, aos 52 anos de idade.

família contesta, mas para a perícia oficial, para o delega-do, para o promotor, para o juiz, para o desembargador e para o Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal sed lex dura lex. “Suicídio” não é crime!

No outro dia, Fernando chega à triagem no céu, todo perfu-rado de balas. Se posta como o último da fila, com vistas a saber se

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seu nome, constava ou não, no livro da vida. Incrédulo, sua única orientação espiritual, na vida, fora o poder, a fama e a riqueza. Só tinha a religião como meio para obter voto. Jamais seu nome, tão notório na terra entre os homens, estaria escrito no livro da vida. “E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.” (Apocalipse 20:15).

Último grau de sua pena: ter sua alma lançada ao calabouço abissal do inferno para todo sempre. Quem tudo quer...

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C o n t o 3 - N e g o c i a n d o o F i m

Temas principais: abandono, sofrimento e morte dos idosos.Narra a história de seu Antônio – senhor de 75 anos – viúvo, em um lar para idosos que com a saúde mental debilitada e as precá-rias condições do asilo; enfrenta também a monotonia e a inva-lidez típicas dessa faixa etária e do ambiente em que vive; o seu Antônio chega a considerar – ser um estorvo ambulante, para a so-ciedade, haja visto o abandono que seus familiares lhe dispensam, o autor penetra de maneira sutil no psicológico do protagonista e desvenda muitos dos seus medos anseios e sua maneira peculiar de ver a vida. Seu Antônio tinha uma grande paixão, correspon-dida, no limite do possível – o mar e numa calma segunda feira ele se dá o prazer de apreciá-lo, sendo esse o seu último dia de vida seu Antônio ainda tenta de maneira frustrada negociar com seu algoz, um pouco mais de existência – o que não lhe é negado, mas agindo traiçoeiramente aquele” alguém ou algo” dá – lhe o golpe fatal e assim seu Antônio perde a vida triste, melancólica e abandonada que pensava possuir sendo tragado pela sua autêntica paixão - o mar!

“Na verdade, Antônio, não possuía mais nada para oferecer ao próximo beleza física, disponibilidade para aventuras, forças econômicas e de trabalho, bom humor, esperança”. (Negociando o Fim)

A situação de seu Antônio reflete bem o lema da sociedade “atual”: use e abuse; o abandono da “experiência” é o pior erro que a geração do “descartável” está cometendo; lança- se o ido-so em um lar de repouso e esquece – se dele; quantos não são os idosos que perderam a utilidade para essa geração , e estão abandonados nos quartos sujos e mau cheirosos dos asilos sem nenhum tipo de acompanhamento familiar, sem ajuda financeira,

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sem apoio moral; evidentemente que só poderão esperar a mor-te! Estranha a noção que a sociedade impõe ao ser humano: o sujeito possui a obrigação de permanecer jovem por todo tempo vitalício, sob pena de ser ignorado pela sociedade moderna, caso envelheça.

“A sociedade prefere não enxergar a ter que tomar alguma atitude que melhore a condição de vida dessas pessoas abandona-das, não só pelos seu familiares, mas por toda a sociedade.” (Paula Prado Rodrigues de Miranda)

A omissão é a maneira mais covarde de dizer “não” a esses seres indefesos que perderam o brilho da juventude, o vigor, a es-perança, e hoje suplicam por um olhar de compaixão e gratidão. Ah! Se mesmo uma alma fosse altruísta e compassiva para com os infortúnios que se abatem sobre eles teríamos noventa e nove por cento da solução em nossas mãos; um ser humano é capaz do impossível, quando bem motivado!

Jovenildes Ribeiro

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NEGOCIANDO O FIM

Era um dia comum, ensolarado. Sentia-se no ar, um for-te cheiro da seiva advindo de pedaços de capins dece-pados pelo jardineiro a fio. Um belo jardim, até. Seu

Antônio, um senhor de 75 anos de idade, acomodado em uma ca-deira de balanço, ouvia atento de seu amigo de internação; a fan-tasiosa história de quando este era jovem e que havia se perdido em uma missão militar na selva amazônica, por mais de sessenta dias. Era a décima quarta vez que ele ouvia - ipsis literis - a mesma narração. Cavalheiro como um lorde inglês, jamais interrompia o amigo, informando-lhe que o mesmo já havia contado tal enredo, com o receio de frustrá-lo.

Antônio, já estava “internado” como “paciente” nesse “cam-po de concentração da terceira idade”, digo, asilo, há mais de oito anos. Ingressou lá, assim que começou a demonstrar debilidade psicomotora, algo extremamente natural na sua idade. Vivia com limitações tanto na parte física, como mental. Sua esposa havia fa-lecido há 11 anos. Com o óbito dela, passou lógico, a morar só. To-dos os filhos, com anuência forçada do próprio, preferiram transfe-ri-lo para um “lar de idosos”. E, assim, o fizeram.

Fisicamente, estava até bem, se levado em consideração a sua idade cronológica. Afinal, havia sido “atleta”, ainda que amador. Entretanto, psicologicamente, parecia padecer de todas as somas das dores do mundo juntas. Enfim, depois de tanto ter se empe-nhado, ao longo de toda sua vida, para lapidar-se como humano; na verdade, percebia que havia se transformado em somente mais

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um estorvo ambulante, como quaisquer outros de seus colegas, independentemente da vida que tenham levado. Na sua juventude, jamais tinha passado pela sua cabeça, a ideia de se precaver desse espinhoso detalhe. O futuro chegou, e foi bem rápido, não lhe dan-do chance nenhuma de um novo replanejamento, para desfrute, digamos assim, de um “final de vida” mais digno e saudável.

Os filhos, ausentes, o visitavam raramente, trazendo a rebo-que, um ou outro de seus netos. Faziam isso, a quantidade sufi-ciente para não serem alvos de críticas dardejadas por falsos mo-ralistas incutidos na sociedade; nem acionados pelas autoridades e órgãos do poder judiciário. Os motivos das poucas visitas? Sua pífia aposentadoria, não era o suficiente para atraí-los mais, como outrora acontecia, quando seu Antônio gozava de saúde econô-mica satisfatória. O pouco que tinha, claro, tratava de quitar as pesadas parcelas de seu plano funerário. Aliás, ainda com relação ao irrisório provento, é necessário afirmar, que ele era desconta-do, quase que integralmente, diretamente do seu contracheque na conta do asilo.

Além disso, esse era um dos únicos procedimentos da insti-tuição que não falhava mensalmente. Já os outros quesitos como: aquisição de material de higiene, tratamento médico regular, pre-paro de alimentações saudáveis e estímulo a atividades lúdicas, eram constantemente, desservidos pelo peculiar desleixo e inapti-dão dos funcionários da clínica, ainda mais desses, envolvidos em atividades que não tenham retorno social e lucro motivacional a contento.

Com essas mordidas brutais, sobravam-lhe poucas quantias, insuficientes para ensejar qualquer tipo de lazer, sem contar, os su-cessivos atos recessivos do governo, que a cada corte econômico, diminuía ainda mais, seu parco ordenado e de todos da sua faixa etária e classe profissional. Na verdade, Antônio, não possuía mais nada para oferecer ao próximo, beleza física, disponibilidade para aventuras, força econômica e de trabalho, bom humor, esperança...

A beira de seu apocalipse particular, digo, de seus últimos dias, tentava, em vão, recobrar na memória, momentos bons, que realmente valessem a pena serem lembrados. Recordava de vários,

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mas nenhum deles era suficiente para insuflar sua autoestima. A pergunta: “o que foi que eu fiz para merecer isso tudo meu Deus?”, se tornou constante e diária. Mesmo tentando passar parte da ju-ventude e a fase adulta toda sonhando pavimentar um futuro agra-dável para si e para os seus, tudo que vivia na realidade, era muito diferente, infelizmente, daquilo que havia imaginado.

Comprovava, da forma mais atroz, que todo seu passado, havia sido uma doce ilusão. Seu subconsciente o havia feito viver num mundo paralelo e irreal. Era como uma farsa tecida por ele mesmo para poupar-se da realidade, além de fazê-lo, também, se esquecer da sua vil condição humana, como se isso fosse possí-vel. E isso ocorria intensamente, independente das coisas boas e ruins feitas, como também nos seus acertos e nos erros cometidos. Aprendia que a lei da semeadura não era tão justa como parecia ser. Não havia vivido sequer um momento de lucidez, nenhuma ocasião, que realmente pudesse dizer com certeza, que havia sido vantajoso na sua integralidade.

Afinal, a ninguém - por mais sábio que fosse, e que tivesse vivido a mais exemplar das vidas - havia sido dado o verdadei-ro conhecimento do seu sentido. Não é da competência do ser humano, controlar ou saber do seu destino. Era necessário ter a consciência de que não passamos de um mero fantoche de Deus, uma cobaia da sociedade ou ainda, um escravo de nossos próprios atos eivados de ignorância. As noitadas da juventude, os prazeres experimentados, o “arrependimento”, o casamento, o nascimento dos filhos, cargas horárias excessivas de trabalho e de estudo, as idas à igreja, o investimento na “família”, as boas obras, a ajuda aos amigos desemparados, ter composto músicas e tocado violão... Nada disso havia tido um sentido.

Sua permanência no abrigo, foi marcado pelo seu peculiar semblante e estado de espírito melancólico, na maioria do tempo. Sua pele era brilhosa, fina e seca. Em todo seu corpo, cresciam enormes manchas e fios isolados brancos que se espalhavam pelos braços em direção ao tronco e pernas. Apesar da coluna levemente encurvada, seus ossos, estranhamente, eram firmes e protuberan-tes. Aliás, sua estrutura óssea era como a de um “menino”. Um de-

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safio à medicina. Seu ortopedista pensou em até pedir a permissão do mesmo, para extrair seu esqueleto para estudo científico nos laboratórios da universidade. Isso depois de morto, claro.

Infelizmente, o que de mais impressionante seu Antônio ainda preservava, estava camuflado dentro de seu corpo, por en-tre seus inermes músculos não podendo ser visto e nem utilizado a seu favor, socialmente. Apesar dos tecidos ósseos fortes, ainda sim, não passava de um velho feio, rabugento e da pele engelhada. Sua face repleta de rugas, contornando sua boca e cortando sua testa com salientes calombos, que denunciavam a tristeza por ele experimentada na vida toda. Seus cabelos eram ralos e amarela-dos. Nariz e orelhas enormes dilatadas pelo tempo. Pelos de sua cavidade nasal e ouvidos nasciam e encobriam sua face, com gran-de agilidade, assim como as ervas daninhas que cobrem o tronco de uma árvore para sugar seu extrato vegetal.

Nos raros passeios e incursões externas, tanto a sua presen-ça como a de sua trupe, causava natural ojeriza e estranheza aos olhos da sociedade. Apesar de todos sofrerem a mesma repulsa, ainda sim, imaginava ser, dentre os desprezados, o mais despreza-do. Sua voz incomodava, até mesmo quando ensaiava elogiar ou fazer um gracejo a alguém. Mesmo sem dar razão, escutava risos e zombarias dos mais jovens, o que não eram somente uma mera resposta psicológica impulsionada por um surto esquizofrênico de um velho esclerosado. Na maioria das vezes sim, estava mesmo sendo assediado moralmente, devido sua condição indefesa e dos seus aspectos físicos e visuais precários se comparada, as daqueles que lhe caçoavam.

Sua rotina, assim como a dos outros internos, era extrema-mente rígida e inflexível. Baseava-se na acomodação crônica e na estagnação pessoal. Não havia estímulo a uma melhor qualidade de vida, nem muito menos, interesse em seu prolongamento. Mui-to pelo contrário, implicitamente, queriam convencê-los de que “já iam tarde”. Retardar a velhice ficou como coisa do passado. O negócio ali era acelerá-la, vertiginosamente. Aos mais rebeldes, hiperativos e agitados era ministrada uma dose extra de “amansa leão” diretamente na veia. A política do local era fazê-los com que

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permanecessem inertes, evitando ações, para não ter como respos-tas, reações de quaisquer naturezas. O tempo dado em demasia a eles eram os seus mais letais venenos.

O ápice do recinto era fazer com que eles se adaptassem ao novo e doce estilo de vida vegetativa. Inclusive as jovens idosas eram sempre batizadas de flores pelos assistentes. Margarida, Ro-sinha, Flor de Lis... Suas funções se baseavam na ministração dos remédios nas dosagens e horários adequados. Supervisionavam a hora do asseio e ofereciam a tal sopinha de legumes de manhã, de tarde e de noite. Depois do café da manhã, vinha o banho de sol no jardim. Tudo parecia querer encobrir o que realmente aquilo era, uma estação da morte, o último presídio, com a única diferença de que seus crimes, eram somente por estarem vivos. O cumprimento de suas penas nestas masmorras? Só eram quitadas com a morte, bem morrida.

Porém, nos últimos dias, não eram os cortes do governo, o abandono dos filhos e a solidão que afligia a mente conturbada do Seu Antônio. Pressentia que algo não muito bom estava próximo de acontecer. Não muito bom para ele, porque para os outros seria uma maravilha. Não tinha como ter certeza do que era, mas inter-nalizava consigo sua sugestão própria. Imbuído desse sentimento oculto, tentava seguir sua rotina. Acordava, levantava, se asseava sozinho, tomava sua sopa e logo depois, um coquetel de remédios.

Depois, seguia direto ao jardim para desfrutar sua manhã de sol e escutar a odisseia amazônica do amigo esquecido. Acaban-do isso, ao meio dia, via televisão, e de vez em quando, ganhava algumas partidas de dominó por W.O.; pois muitas das vezes fal-tavam parceiros de jogo, lógico, muitos tendo de se ausentar para atender ao chamado impreterível da morte. O pressentimento do fim passou a ser seu companheiro mais próximo. Tinha, agora, um pensamento cada vez mais fixo. Terminava de se distrair com algo qualquer e depois ressurgia a escura névoa que o fazia retornar a sua dura realidade existencial, do viver por viver.

Desde a juventude, é bom frisar, que Antônio alimentava um amor que era só dele, e que poucos a sua volta, entendiam: estar perto do mar. Esse amor era um dos poucos correspondidos de

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seu Antônio. Sempre, desde pequeno, nutrira apreço especial pelo mar. Não se confunda aqui amor pela praia, com gente desfilando seminuas, bêbadas e empanturradas de comidas. Naquela idade, o mar era a sua cachaça, estando ali, esquecia-se do mundo. Quando estava à frente dele, dentre outras, querendo dá uma de filósofo, costumava dizer que: “O mar era a bacia onde Deus descansava seus pés”.

Certo dia, ainda antevendo uma possível chegada repentina de sua angústia maior, decidiu tomar uma atitude. Talvez, a última de sua jornada terrena. Planejou, com grande esmero, uma visita ao mar, o que há tempos já não mais fazia. Às 16h da tarde, to-mou pelas mãos uma velha cadeira de praia, que havia pedido a um dos filhos quando da última visita. Pôs na cabeça um chapéu branco de abas, vestindo-se com uma camisa social de botão, em-bora manga curta, bermuda jeans e uma surrada sapatilha. Saiu à francesa, sem que ninguém da clínica, percebesse.

Antes de abrir o portão, ouve do amigo o seguinte convite: – Antônio venha aqui. Ainda não lhe contei da minha missão

lá na selva com os índios amazônicos. – Não amigo. Agora não. Tenho de sair. Quando voltar você

me conta, tá? – diz Antônio, tornando a seguir seu caminho.Segue seu Antônio pela calçada, se posiciona na parada, faz

o aceno e o ônibus para. Ele sobe com muita lentidão, depois to-mando assento no primeiro banco, com sua cadeira de praia ao lado. Estando lá dentro, oferece bom dia para o motorista e para a cobradora. Extremamente estressados e de cara fechada, ninguém responde. Aliás, só parou o tal motorista, porque uma bela moça, também fizera o mesmo sinal atrás de Antônio, pois não fosse sua beleza, certamente ignoraria o sinal dele e seguiria sua viagem. Era uma segunda feira, um dia onde as praias se encontravam mais desertas. Antônio desce de sua parada final e segue andando em direção ao mar. Coincidentemente, a maré era de sizígia, e estava subindo rapidamente e com muito mais força. Por um momento, em pé, ele olha toda aquela imensidão infinita de areia, céu e mar.

Garças e andorinhas do mar voam de ponta a ponta da praia em busca de alimentos. Olha para um lado e para o outro e não vê

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ninguém, como de fato preferia para aquele momento. Antônio se posiciona, próximo da água, abre sua cadeira e senta. Tira as aper-tadas sapatilhas para sentir seus pés tocando a areia fria e molhada pelas espumas de sal. Lentamente, conduz o dedo indicador e pole-gar - de uma das frágeis mãos - em direção ao queixo, encoberta por uma barbicha branca e rala. Ficara ali, admirando de soslaio as pi-pas de kitesurf passando, alguns surfistas, os barcos dos pescadores e navios de carga, em pleno entardecer. As ondas da maré subiam e desciam, insistindo em molhar o dorso de seus pés, parcialmente enterrado na areia. E ele lá, sentado, inerte, contemplando e pen-sando. Estava tendo um raro momento de regozijo, ao rever nova-mente, sua antiga paixão, como dito, a única correspondida.

Tudo ia muito bem quando, aquela estranha sensação, vol-via a incomodar a quietude de sua alma. Ainda sentado, o senti-mento vai aumentando, em escala ascendente, até que finalmente, pressente, concretamente, a chegada de “algo” ou de “alguém”.

– Olá, quem está aí? – fala Antônio assustado ao mesmo tempo em que tenta revirar-se na cadeira.

– Não Antônio! Não sujes sua mente olhando para mim. Re-comendo que continue a admirar esse mar e esse lindo por do sol que é bem melhor – responde a voz rouca e sofrida, mas imponen-te – e como quem está aí? Não vai me dizer que não sentiu, nesses últimos dias, que eu estava chegando.

– Ah, então é você? Chegou rápido!– Rápido? Pelo que consta o senhor já tem 75 anos de idade.– Verdade, verdade. Sente aí vamos conversar.– Não posso. Estou com pressa. Ainda tenho muita coisa a

fazer pelo mundo. Preciso visitar milhões de pessoas. Nesses tem-pos finais, tenho tido trabalho redobrado, apesar de vocês homens, facilitarem muito meu trabalho.

– É mesmo. O mundo está cada vez mais cruel e injusto. E então, o que você quer?

– O que eu quero? Preciso responder? Não seja tolo seu An-tônio.

– Ah sim, desculpe-me não queria lhe aborrecer. Por favor, quero lhe fazer meu último pedido: reveja minha situação. Ainda

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não estou totalmente preparado. Será que não há chance para eu voltar ao asilo, esperar essa última visita e rever meus filhos. Você não poderia vir outro dia? Queria dizer que amo a todos os meus filhos, meus netos e todas as pessoas que puder – implora Antônio, extremamente emocionado e com a voz embargada.

– Mas pra quê isso agora Antônio? Tivestes a vida toda para fazer isso. Pra quê agora toda essa hipocrisia? Não viveste suficientemente para perceber que no mundo não há amor, e sim interesses. Tudo que vocês dizem ser bom, é superficial, ilusório e virtual. O concreto mesmo nesta terra é o que há de mal, ruim, ao qual sua quintessência, você está prestes a experimentar. Nin-guém disse a você que iria ser fácil. Não se acovarde Antônio! Relaxe e aproveite o momento. Nasceste só e só morrerás. Pra quê deixarem rirem de você estendido num caixão? Preserve a si mesmo, abdique desse velório. Sê forte e corajoso, morra como um homem, assim como fostes a vida toda. Tenho de admitir, que fostes um sujeito admirável, embora muito comum. Não fizera nada além daquilo que lhe foi permitido. Quanto a isso é uma pena! Só tenho a lamentar.

– Por favor, eu insisto minha amiga. O que você ganharia, eliminado um pobre velho como eu, prostrado e mendigando por mais algumas horas de vida? O que o mundo teria a ganhar com isso? Sei que esses que estão nascendo podem esperar um pouco mais. Tenho certeza que não queres carregar essa mácula em seu belo currículo, como aquela que não sentiu misericórdia de um ve-lho indefeso. Se não tiver compaixão de fazer isso por mim, faça, então, pelos meus netos, de corações ainda tão puros e inocentes.

– Como pode? Em toda minha carreira jamais me deparei com uma situação dessas – pensa a “coisa” ou “alguém” já se sentindo “comovido (a)”, o que era raro. – Tá bem. Faça, então, o que tiver de fazer, mas até o final do ano, nós teremos um rigoroso trato a cumprir, sem mais prorrogação. Estamos entendidos?

– Sim, sim. Estarei mais preparado até lá. Obrigado! Você é muito gentil – responde Antônio animado.

– Sendo assim, até o final do ano – contrariada se despede a “coisa” ou “alguém”, virando as costas e saindo.

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– Até! – responde trêmulo Antônio, torcendo para que a “coi-sa” ou “alguém” fosse embora logo.

A “coisa” ou “alguém” que conversava com seu Antônio se distancia, distancia... mas, de repente para, ficando ali, distante, por uns quinze minutos. Andava de um lado para o outro, enquan-to espichava, de vez em quando, seu Antônio sentado naquela cadeira. Depois de tanto reexaminar a situação, a “coisa” ou “al-guém” decide retornar apressadamente em direção a seu Antônio, sem que o mesmo percebesse.

Seu Antônio, dessa vez, não antessente nada, está com a alma leve e continua a contemplar o céu acima do mar que já escurecia. Afinal, graças a seu poder de persuasão, teria mais algum tempo de vida. Satisfeito pelo que já tinha visto, e do su-cesso de sua “negociação”, ele tenta calçar as sapatilhas com a intenção de voltar para o asilo. Calça a primeira sapatilha do pé direito. Quando se propõe para calçar a outra, começa a sentir um leve formigamento no braço esquerdo. Não dá muita atenção ao fato, e torna a calçar a segunda, agora do pé esquerdo. Não consegue.

O formigamento passa a ser acompanhada por uma forte dor nas costas, crescendo, gradativamente. Sua vista vai ficando embaçada, seguida por sucessivos lampejos mentais e vertigens. Encosta bruscamente, de volta, as costas no encosto da cadeira, enquanto aperta firme suas duas mãos nos braços dela, cerrando os dentes. Seus lábios e rosto ficam arroxeados. Era um infarto! Antônio estava lutando pela vida. Começa a tossir copiosamente. Seu peito arde como um braseiro de fogo. Tenta puxar ar e seus pulmões não correspondem.

– Ai meu Deus. Ai meu Deus – diz ele desfalecendo. Entre espasmos e tonturas ele recobra a consciência, abre

os olhos rapidamente, sentindo a presença da “coisa” ou de “al-guém”, dizendo:

– Meu peito dói, sinto falta de ar. Acho que vou desmaiar. Me acuda!

– Desmaiar? Quanta ingenuidade! – fala alto, enquanto ri de canto de boca a “coisa” ou “alguém”.

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– Mas o que houve? Não havíamos combinado que você me daria mais uns dias de vida? Eu não quero morrer! Salve-me! Eu implorooo! – diz Antônio agonizando e com lágrimas nos olhos.

– Pobrezinho. Toda sua vida foi repleta de paradoxos Antô-nio. O que lhe fez acreditar que logo agora iria ser diferente? Além disso, jamais poderia me eximir da minha natureza. É justamente isso que faz ser o que sou. Desculpe-me. Não te darei mais alguns dias de vida, mas em compensação, te abonarei mais alguns dias infinitos de morte, em direção a doce eternidade – diz isso a “coi-sa” ou “alguém”, enquanto levanta uma avultada foice e com um único golpe, põe fim a triste agonia do seu Antônio.

Logo depois, nenhum dos dois pronuncia nem mais uma palavra. Seu Antônio fica lá. A “coisa” ou “alguém” se escafede, misteriosamente.

Metafisicamente ou em plano espiritual, com relação ao seu Antônio, ninguém sabe o que aconteceu dali em diante. A nenhu-ma criatura foi creditada nem será revelado esse exato segredo. Porém, materialmente falando, o corpo de seu Antônio permanecia lá, na cadeira, com os lábios arroxeados e rosto, agora, bem pálido, além de meio enviesado, para esquerda e com os braços soltos, debruçados pelo chão.

Os pés da cadeira vão afundando, na areia, cada vez mais fofa, inclinando-a até que seu corpo decaia para o lado, conforta-velmente, na água. A maré seguia seu curso, subia emergindo até sua cintura, molhando toda sua roupa, até encobri-lo por inteiro. Seu Antônio é, finalmente, acolhido no colo do mar. Coisa que ne-nhum ser da sua espécie foi capaz de fazer. Era dia de maré de lua cheia. Já era noite, o tempo estava escuro. O vai e vem das ondas e a correnteza forte, faz o franzino corpo de 55 quilos do seu Antô-nio, bailar por entre as ondas, como se estivesse ensaiando passos de uma valsa dinamarquesa.

Em poucos segundos, seu Antônio encontrava-se a vários quilômetros da costa. Amanhece, entardece, anoitece e seu corpo lá, dias e dias a fio se dissolvendo; agora, pútrido, com as carnes esbranquiçadas e abocanhadas por toda sorte de animais mari-nhos. Como última boa ação ao mundo, teve seu corpo servido

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como alimento nutridor aos peixes. Isso mesmo, tornara-se ração aos animais do mar, que tanto amava.

Dias depois, comunicaram aos filhos, o seu “desaparecimen-to”. Agora a categoria social do seu Antônio tinha “evoluída”. Pas-sou de velho asqueroso a desaparecido. E quando menos se espe-rava, ainda havia espaço para mais um ato insano de execração póstuma e pública para com agora, a memória de seu Antônio. Uma parte da família, não perde tempo, e se dirige a Agência Pre-videnciária com vistas a dá entrada no processo de requerimento de sua pensão. Já a outra parte, trata de imprimir milhares de ile-gíveis panfletos com seu rosto submisso e decadente. A intenção era estampar seu retrato em postes; tendo abaixo, algumas de suas características físicas, os detalhes das roupas com que se encontra-va, mais uma breve e curiosa informação: “ele sofre de problemas mentais”.

Comunicam, ainda, aos jornais, rádios, internet e em outros meios de comunicação o pronunciamento de seu desaparecimen-to. Nem precisa dizer, que tudo isso, fora só mais uma encenação orquestrada pelos filhos. Jamais fora achado. De tão bom que era (seu maior defeito), eximiu os filhos até das visitas obrigatórias ao cemitério em dia de finados. Os descendentes estavam livres de mais esse fardo. E parabéns a nossa humana sociedade. Ela ven-ceu. Mais uma vítima sua havia sido eliminada.

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C o n t o 4 - À D e r i v a

TEMA: IMPULSIVIDADE.

Dos quatro contos é o menor, esse conto narra a história de um jovem viajante que sem motivo aparente e num momen-to qualquer de sua viagem abandona o navio com o objetivo de terminar a sua trajetória a nado. E depois de haver pulado do na-vio segue fazendo extremo esforço, mas não se arrepende de sua atitude apesar de ter, evidentemente, que chegar ao seu destino atrasado em relação aos seus companheiros de viagem.

“(...) por um momento “boiando” pensa consigo e vê que sua realidade havia mudado drasticamente. Em poucos minutos estava viajando num lugar confortável acompanha-do por inúmeras pessoas com quem podia interagir com vis-tas a alcançar qualquer intento que pudesse imaginar, mas agora estava à deriva sem nada nem ninguém que pudesse ajudá-lo”. (À Deriva)

Impulsividade é a palavra exata que caracteriza a atitude desse jovem. Nenhuma pessoa em sã consciência abandonaria o conforto e segurança de um navio e se lançaria ao mar! Seria ele algum aventureiro? Ou um aspirante a campeão de natação, dese-jando mostrar os seus dotes ou mesmo, aperfeiçoá-los? Chegou, ele, ao destino desejado? Não poderemos sabê-lo, por uma simples razão, o autor - o deixa sozinho em alto mar batendo, arrogante-mente, no peito e dizendo consigo, que não estava arrependido de haver pulado do navio seu arrependimento era ter entrado nele - adormecendo em seguida!

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“Ações impulsivas são resultado de uma pressão inter-na que se move no indivíduo tomado por experiências emo-cionais intensas. Como consequência, o leva a agir impulsiva-mente, sem a mediação da razão”. (Jael Coaracy)

Ações impulsivas são perigosas! As pessoas que agem por impulsividade agem inconsequentemente, e na maioria das vezes se arrependem, em outras não deixam transparecer sequer sinal de remorso, por pura arrogância.

Jovenildes Ribeiro

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À DERIVA

“Não se faz um bom nadador dentro de um barco.”

Imagine uma embarcação qualquer, que comporta um nú-mero considerável de pessoas se deslocando de um ponto a outro, notadamente, de uma terra firme a outra. E aqui,

sugiro que pensemos numa travessia de um trecho do mar ou de um rio, levando em consideração que essa distância seja ampla, se comparada a capacidade física de uma pessoa mediana. Idealize, igualmente, que no meio dessa embarcação – como disse, absurda-mente comum como qualquer outra, com pessoas viajando, apen-sadas as suas bagagens e normalmente ansiosas por chegarem aos seus respectivos destinos – um sujeito qualquer decide pular na água. Isso mesmo, repito: numa referida embarcação com pessoas viajando de um lugar para outro, um desses tripulantes abandona a nau, decidindo se apartar de seus semelhantes, pulando no mar ou num imenso rio, como queiram. A primeira vista, não havia nenhum motivo plausível para que o mesmo tomasse essa atitude, nem por parte dos passageiros, nem muito menos por conta das condições do barco. Uns conversavam, se distraíam com algum dispositivo eletrônico, já outros dormiam... Ninguém o havia dis-tratado, nem muito menos ofertado um mínimo de incentivo para o que mesmo fizesse aquilo. Como ficara quieto e calado a via-gem toda, assim permaneceu, até que saltasse barco afora. Aliás, não haveria, nem necessitaria justificar o seu ato a ninguém dali.

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Ele não conhecia ninguém, nem ninguém o conhecia. Ressalte-se, também, que o sujeito, tenha pulado somente com a roupa do corpo, sem nenhum auxílio de nenhuma boia ou colete de salva vidas, que, diga-se de passagem, o barco possuía em abundância. Relevante afirmar, também, que não se tratava de um suicida, es-quizofrênico, louco ou qualquer outra tipologia clínica patológica fora dos padrões psicológicos toleráveis socialmente. Um ou outro passageiro olhou o mesmo pulando. Uns, deram com os ombros, retornaram para os seus respectivos aposentos e seguiram suas viagens normalmente, como se nada tivessem visto. Não se cho-caram, nem se alegraram com aquilo. No máximo, como reflexão pessoal - face ao fato presenciado - extrairiam somente de que não teriam coragem de fazer o mesmo. Outros, para desencargo de consciência, dever cívico e obrigação humanitária trataram de in-formar ao capitão o inesperado ocorrido. Depois de tomar ciência do infortúnio, o capitão, em uma rápida conversa entre aqueles que haviam lhe informado o fato, decidiram que nada poderiam fazer, e que os mesmos seguiriam suas viagens, normalmente. Afi-nal era uma embarcação movida a motor, parar a mesma para tentar resgatá-lo ou até mesmo saber o porquê que ele tomou essa atitude, estava fora de cogitação. Para o capitão gatariam muito tempo, além de muito combustível. Para os passageiros, muitos iriam se atrasar nos seus compromissos. E para ambos, a possível volta poderia incorrer no risco da vazante da maré encalhar o bar-co próximo já do cais de destino. Isso acontecendo, correriam o risco de passar a noite toda pedindo resgate, e aí não seria somente um sujeito que necessitaria de socorro, mas dezenas deles. Enfim, ponderaram tanto o capitão como alguns passageiros, que não va-lia a pena voltar para saber o que houve, afinal tinha pulado, por decisão consciente do próprio, e assim sendo, assumiria qualquer risco. Se fosse uma criança ou um cego, aí sim suas atitudes pode-riam até se dá de forma diferente. Pois bem, o sujeito pulou, caiu na água, submergiu, molhou-se, voltou à superfície para respirar e num primeiro momento, avistou o barco ao qual viajava seguindo seu curso natural. Com forte e potente motor, seu deslocamento geravam contundentes marolas, fazendo que seu corpo bailasse

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de acordo com o sobe e desce do mar. O barco se distancia, e ele percebe que alguns passageiros vão para o fundo do navio para lhe observar somente, nada mais que isso. A embarcação vai ficando longe, cada vez mais até que some no horizonte, cessando também aquelas ondas formuladas por seu deslocamento. O sujeito era jo-vem e sabia nadar. Por um momento, “boiando” pensa consigo e vê que sua realidade havia mudado drasticamente. Em poucos minutos estava viajando num lugar confortável, acompanhado por inúmeras pessoas com quem podia interagir, com vistas a alcançar qualquer intento que pudesse imaginar; mas agora estava a deriva, sem nada nem ninguém que pudesse ajudá-lo. Sem falar que se es-tivesse no tal barco, chegaria bem mais rápido ao seu destino. Olha de um lado para o outro, para o norte, sul, leste e oeste; abaixo, vê um mar turvo, acima, o sol escaldante; à noite, notadamente, se depararia com a lua, e mesmo assim aos horizontes, somente veria os limites delgados que separam o céu e o mar. Terra? Não havia expectativa nenhuma para vê-la, ou melhor, saberia que te-ria de se esforçar muito caso algum dia, quisesse admirá-la ou até mesmo pisá-la. Enfim, se situando e cônscio de sua nova realidade, o mesmo se põe a nadar. E segue nadando, nadando e nadando. Sua vida, a partir daquele ato consciente voluntário, se resumiu somente a isso, nadar. Afinal, o que mais poderia fazer naquela situação senão fosse nadar. No barco, certamente se prestaria a realizar milhares de outras coisas, não muito diferente daquilo do que os outros na sua mesma condição também o fariam. Seu desti-no se apresentava coercitivamente agora com um único norte. Ele sabia que tinha de nadar, pois caso parasse, consoante às leis da física, afundaria. Aquilo que parecia ser seu carma virou seu ví-cio, sua única fonte de prazer tornando sua vida, resumida a uma única prática, qual seja: nadar. Enquanto experimentava o sabor amargo, mas prazeroso de sua saga individual, os outros tripulan-tes haviam chegado à terra firme, aparentemente em vantagem por terem chegado primeiro. Mas, ele mesmo presumindo isso, não sente nenhum resquício de arrependimento, ainda sim mesmo “atrasado”, preferiria mil vezes nadar. Aliás, minto, havia arrepen-dimento sim, de não ter se lançado mais cedo do barco ou até

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mesmo de ter se eximido de embarcar nele. Naquele momento já não mais pensava nos fins, mas sim nos meios. Chegar ao destino não mais lhe importava, mas sim o que teria de fazer para lograr a esse intento. Na sua mente, levando em consideração também, que logo chegaria a um destino qualquer e que logo em seguida, se poria a buscar outro; e que esse outro, por sua vez, se daria através de seu nadar, ele assim continuava, somente a nadar e nadar. O fim era o seu meio, mas mesmo assim, apesar de todo seu esforço, não havia certeza se esse meio o levaria a um determinado fim. A única certeza era de que esse meio - que o mesmo julgara ser sua salvação - o levaria a um determinado “fim”, digo; não ao fim desejado, mas o fim que redundaria na sua extinção.

Escrito na madrugada de insônia do dia 02 de setembro de 2015

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Arte da Capa

“O CIRCO”

FICHA TÉCNICA Autor: Georges Seurat Data: 1890 - 1891Técnica: Óleo sobre telaEstilo: NeoimpresionismoDimensões: 185 cm × 152,5 cmLocalização: Museu de Orsay, Paris, França

SOBRE O ARTISTA

Georges-Pierre Seurat (Paris, 02/12/1859 - Paris, 29/03/1891) é o autor da obra que ilustra a capa desse humilde livro de título homônimo. Foi o pioneiro do movimento artístico conhecido como Divisionismo, por outros, também, chamado de Pontilhista. Nessa técnica as imagens e figuras são desenhadas com pequenas man-chas coloridas ou pontos, ladeado um do outro, misturando-se de cores quando o observador se mantém distante da tela. Graças ao pontilhismo Seurat e outros adeptos dessa técnica, fizeram surgir o estilo neo-impressionista, um dos mais importantes movimentos artístico do século XX.

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Seurat ingressa na Escola Superior de Belas-Artes (École des Beaux-Arts) de sua cidade natal no ano de 1877. Era visitante con-tumaz do Museu do Louvre, onde buscava inspiração, sobretu-do nos artistas Francisco Goya, Puvis de Chavannes e Rembrandt. Teve caso amoroso com uma bela jovem chamada Madeleine Kno-bloch, a quem dedicou a pintura “Jeune Femme se poudrant”.

Chevreul, um crítico de arte, era adepto a ideia de que os pintores deviam somente a se restringir em pincelar as cores dos objetos retratados. Para tanto, era necessário os mesmos artistas adicionarem cores, realizando assim as mudanças necessárias im-pingir uma certa harmonia a obra. Se referindo à obra de Seurat, Chevreul chamou essa harmonia de “emoção”. Ainda se referindo ao quadro em específico Fenômenos Sutter da Visão (1880), disse ele: “as leis da harmonia pode ser aprendido como se aprende as leis da harmonia e da música”.

Não seria exagero dizer que Seurat foi um dos artistas que mais contribuiu para o uso racional da arte, teorizando que a cor não seria diferente a qualquer outra lei da natureza e que, por-tanto, poderia exprimir sua arte utilizando-se de uma abordagem científica dela. Imbuído nesse sentimento ele criou o termo “Chro-moluminarismo” que em suma, consistia em apreender as leis da óptica para poder inaugurar uma nova linguagem de arte, com es-tribo em seu próprio conjunto de heurísticas, inclusive se valendo de linhas, esquema e intensidade de cores. Ao se referir à emoção, a abordagem científica e a harmonia Seurat comenta: “A arte é harmonia. Harmonia é a analogia dos contrários e dos elementos semelhantes, de tom, da cor e da linha, considerada de acordo com seu domínio e sob a influência da luz, em combinações alegres, calmas ou tristes”.

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SOBRE A OBRA

Quanto a sua obra “O Circo” (1891), a mesma figurou como seu último ambicioso trabalho, ao qual ficou inacabado, pois o mesmo veio a falecer. O quadro de dimensões 1,85 x 1,52 apre-senta farta utilização de tintas claras, entretanto com o uso tam-bém de cores como a violeta, o vermelho e o amarelo. A pintura mostra a dinâmica de uma apresentação de circo. Ao fundo a plateia inerte aprecia o espetáculo na qual bem mais acima, se posiciona a orquestra. No centro do picadeiro um palhaço alegre - em primeiro plano - aparece de costas para o observador, uma bailarina se esforça para não perder o equilíbrio em cima de um cavalo branco que galopa sobre o tablado e um elegante acrobata apresenta o show com um instrumento que se assemelha a um chicote. Contraste de apresentação dos artistas face a um público atônito e pouco expressivo. As cores mais berrantes estão utili-zadas nos artistas ao passo que as cores mais sóbrias ilustram os espectadores.

Exatos três após ter exposto a pintura “O Circo” ainda in-conclusa, o pintor parisiense falece a 29 de março de 1891, por conta de uma angina infecciosa. No enterro “O Circo” foi pendu-rado por sua mãe em seu leito de morte. Apesar de ser conside-rado um pintor “lento”, suas obras marcam pelo caráter cientí-fico, pois todas elas feitas a lápis, a óleo ou a tinta marcam pela precisão e harmonia peculiares; o que não deixam de remeter de igual modo, ao mistério e a poesia. Entretanto, segundo o pró-prio: “o mais importante em minha obra não era a poesia, mas o método”, o que fez o mesmo primar pela luz, se insurgindo face a espontaneidade excessiva do movimento, presente em outras obras de sua época.

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