bertrand russell - os problemas da filosofia (1)

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 Bertrand Russell Os Problemas da Filosofia Tradução Jaimir Conte

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  • Bertrand Russell

    Os Problemas da Filosofia

    Traduo Jaimir Conte

  • Ttulo original: The Problems of Philosophy Home University Library, 1912. Oxford University Press paperback, 1959. Reimpresso em 1971-2 Traduo: Jaimir Conte Florianpolis, setembro de 2005.

  • Contedo Prefcio 05

    1 Aparncia e realidade 07 2 A existncia da matria 15 3 A natureza da matria 23 4 O idealismo 31 5 Conhecimento direto e conhecimento por descrio 39 6 Sobre a induo 49 7 Sobre nosso conhecimento dos princpios gerais 57 8 Como o conhecimento a priori possvel 65 9 O mundo dos universais 73 10 Sobre nosso conhecimento dos universais 81 11 Sobre o conhecimento intuitivo 89 12 Verdade e falsidade 95 13 Conhecimento, erro e opinio provvel 103 14 Os limites do conhecimento filosfico 111 15 O valor da filosofia 119 Nota bibliogrfica 127 ndice remissivo 129

  • Prefcio Nas pginas que se seguem limitei-me na maior parte aos problemas da filosofia em relao aos quais julguei possvel dizer algo de positivo e construtivo, dado que uma crtica meramente negativa pareceu-me fora de propsito. Por esta razo, a teoria do conhecimento ocupa no presente volume um espao maior do que a metafsica, e alguns temas muito discutidos pelos filsofos so tratados, quando o so, de uma maneira bastante breve. Tirei valioso proveito dos escritos inditos de G.E. Moore e de J. M. Keynes: do primeiro, a respeito das relaes entre os dados dos sentidos e os objetos fsicos, e do segundo a respeito da probabilidade e da induo. Tirei tambm valioso proveito das crticas e sugestes feitas pelo professor Gilbert Murray. 1912

    Nota stima impresso Referentemente a alguns enunciados nas pginas 23, 42, 76, e 77, deve-se observar que este livro foi escrito na primeira metade de 1912, quando a China era ainda um Imprio, e o nome do ento ltimo Primeiro Ministro comeava com a letra B. 1943

  • Captulo 1 Aparncia e realidade

    Existe no mundo algum conhecimento to certo que nenhum homem razovel possa dele duvidar? Esta questo, que primeira vista poderia no parecer difcil, , na realidade, uma das mais difceis que podemos fazer. Quando tivermos compreendido os obstculos na direo de uma resposta clara e segura, estaremos bem encaminhados no estudo da filosofia - pois a filosofia simplesmente a tentativa de responder a estas questes fundamentais, no de uma forma descuidada e dogmtica, como fazemos na vida cotidiana e mesmo nas cincias, mas de uma maneira crtica, aps examinar tudo o que torna estas questes intrincadas, e aps compreender tudo o que h de vago e confuso no fundo de nossas idias habituais. Na vida cotidiana admitimos como certas muitas coisas que, depois de um exame mais minucioso, nos parecem to cheias de contradies que s um grande esforo de pensamento nos permite saber em que realmente acreditar. Na busca da certeza natural comear pelas nossas experincias presentes e, num certo sentido, no h dvida de que o conhecimento deriva delas. possvel, no entanto, que qualquer afirmao acerca do que nossas experincias imediatas nos permitem conhecer esteja errada. Parece-me que estou agora sentado numa cadeira, diante de uma mesa de determinada forma, sobre a qual vejo folhas de papel manuscritas ou impressas. Se virar a cabea observarei, pela janela, edifcios, nuvens e o Sol. Creio que o Sol est a uns cento e cinqenta milhes de quilmetros da Terra; que um globo incandescente, muitas vezes maior que a Terra; que, devido rotao terrestre, nasce todas as manhs, e continuar fazendo o mesmo no futuro, durante um tempo indeterminado. Creio que, se qualquer outra pessoa normal entrar em meus aposentos ver as mesmas cadeiras, mesas, livros e papis que eu vejo, e que a mesa que vejo a mesma mesa que sinto pressionada contra meu brao. Tudo isso parece to evidente que nem vale a pena ser mencionado, a no ser em resposta a quem duvide de que conheo alguma coisa. No obstante, tudo isto pode ser posto em dvida de um modo razovel, e requer em sua totalidade uma discusso muito cuidadosa antes que possamos estar

  • Bertrand Russell

    seguros de que o expressamos de uma forma que completamente verdadeira. Para tornar evidentes estas dificuldades, concentremos a ateno na mesa. Para a vista a mesa retangular, escura e brilhante, enquanto que para o tato ela lisa, fria e dura; quando a percuto, produz um som de madeira. Qualquer pessoa que a veja, sinta e oua o seu som, estar de acordo com esta descrio, de tal modo que parece que no existe aqui dificuldade alguma; porm, a partir do momento em que tentarmos ser mais precisos, comearo os nossos problemas. Embora eu acredite que a mesa realmente da mesma cor em toda sua extenso, as partes que refletem a luz parecem muito mais brilhantes que as outras partes, e algumas partes, devido ao reflexo, parecem brancas. Sei que, se me deslocar, as partes que refletiro a luz no sero as mesmas, de modo que a distribuio aparente das cores na superfcie da mesa mudar. Por conseguinte, se vrias pessoas contemplarem a mesa no mesmo momento, nenhuma delas ver exatamente a mesma distribuio de cores, porque nenhuma delas pode v-la exatamente do mesmo ponto de vista, e qualquer mudana de ponto de vista produz uma mudana na forma como a luz refletida. Para a maioria de nossos objetivos prticos estas diferenas no tm importncia alguma, mas para o pintor so muito importantes. O pintor tem de perder o hbito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum afirma que realmente tm, e habituar-se, ao invs disso, a ver as coisas tal como aparecem. Eis aqui a origem de uma das distines que mais causam dificuldades na filosofia: a distino entre aparncia e realidade, entre o que as coisas parecem ser e o que elas so. O pintor deseja saber o que as coisas parecem ser, enquanto o homem prtico e o filsofo desejam saber o que so. Contudo, o filsofo deseja este conhecimento com muito mais intensidade do que o homem prtico, e sente-se muito mais perturbado pelo conhecimento das dificuldades que existem para responder a este problema. Voltemos ao exemplo da mesa. O que vimos torna evidente que no h nenhuma cor que de modo distinto parea ser a cor da mesa, ou mesmo de uma determinada parte da mesa. De pontos de vistas diferentes, a mesa parece ser de cores diferentes, e no h razo alguma para que consideremos uma delas como realmente sua cor, mais do que as outras. E sabemos que mesmo de um determinado ponto de vista a cor parecer diferente sob a luz artificial, ou para um cego para a cor,

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  • Os problemas da filosofia

    ou para algum que use culos com lentes azuis , enquanto que no escuro no haver absolutamente cor alguma, ainda que para o tato e para o ouvido a mesa permanea inaltervel. Portanto, a cor no algo inerente mesa, mas algo que depende da mesa, do observador e da forma como a luz incide sobre a mesa. Na vida cotidiana, quando falamos da cor da mesa nos referimos apenas cor que parece ter para um observador normal, de um ponto de vista habitual e em condies normais de luz. Mas as outras cores que aparecem sob outras condies tm exatamente o mesmo direito de serem consideradas como reais, e, portanto, para evitar qualquer favoritismo, somos obrigados a negar que, em si mesma, a mesa tenha qualquer cor particular. A mesma coisa se pode dizer da textura da mesa. Podemos ver a olho nu as veias da madeira, mas ao mesmo tempo a mesa parece lisa e uniforme. Se a observssemos por intermdio de um microscpio veramos salincias, relevos e depresses, e todo tipo de irregularidades que so imperceptveis a olho nu. Qual a mesa real? Temos, naturalmente, a tentao de dizer que a que vemos atravs do microscpio mais real. Mas esta impresso mudaria, por sua vez, se utilizssemos um microscpio mais poderoso. Portanto, se no podemos confiar no que vemos a olho nu, por que deveramos confiar no que vemos por intermdio de um microscpio? Assim, mais uma vez, a confiana inicial que tnhamos nos sentidos nos abandona. No diferente em relao forma da mesa. Temos todos o costume de fazer juzos sobre as formas reais das coisas, e fazemos isso de um modo to irrefletido que chegamos a imaginar que vemos efetivamente as formas reais. Mas, de fato, como teremos necessidade de apreender se a quisermos desenhar, uma mesma coisa apresenta aspectos diferentes segundo o ponto de vista desde o qual a olhamos. Se a nossa mesa realmente retangular, parecer ter, de quase todos os pontos de vista, dois ngulos agudos e dois obtusos. Se os lados opostos so paralelos, iro parecer convergir num ponto afastado do observador; se so iguais, o lado mais prximo ir parecer maior. Geralmente no observamos estas coisas quando olhamos para uma mesa, porque a experincia nos ensinou a construir a forma real a partir da forma aparente, e, como homens prticos, a forma real o que nos interessa. Mas a forma real, no o que vemos; algo que inferimos do que vemos. E o que vemos muda constantemente de forma na medida em que nos movemos na sala; de modo que aqui, mais uma vez, parece que

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    os sentidos no nos apresentam a verdade sobre a prpria mesa, mas apenas sobre a aparncia da mesa. Se considerarmos o sentido do tato nos depararemos com dificuldades semelhantes. certo que a mesa produz sempre em ns uma sensao de dureza e que sentimos que resiste presso. No entanto, a sensao que obtemos depende da fora com que pressionamos a mesa e tambm da parte do corpo com que a pressionamos; assim, no possvel supor que as diferentes sensaes que resultam das diferentes presses ou das diferentes partes do corpo, revelem diretamente uma propriedade especfica da mesa, mas que, na melhor das hipteses, so sinais de alguma propriedade que talvez cause todas as sensaes, embora no aparea, efetivamente, em nenhuma delas. O mesmo se pode dizer de forma ainda mais evidente dos sons que obtemos batendo na mesa. Assim, torna-se evidente que a mesa real, se que existe, no idntica quela que de maneira imediata temos experincia por meio da viso, do tato ou da audio. A mesa real, se que realmente existe, no pode ser conhecida de maneira imediata, mas deve ser inferida a partir do que imediatamente conhecido. Isso d origem, simultaneamente, a duas questes difceis; a saber: (1) Existe de fato uma mesa real? (2) Em caso afirmativo, que espcie de objeto pode ser? Para examinar estas questes ser til dispor de alguns termos simples cujo significado seja preciso e claro. Chamaremos de dados dos sentidos s coisas que so imediatamente conhecidas na sensao, tais como: cores, sons, cheiros, a dureza, a aspereza, etc. Daremos o nome de sensao para a experincia de ter imediatamente conscincia destas coisas. Assim, quando vemos determinada cor, temos a sensao da cor, mas a prpria cor um dado dos sentidos, no uma sensao. A cor aquilo de que somos imediatamente conscientes, e a prpria conscincia mesma a sensao. evidente que se conhecemos algo acerca da mesa, preciso que seja por meio dos dados dos sentidos a cor escura, a forma retangular, a lisura, etc. que associamos com a mesa; mas no podemos dizer, pelas razes j expostas, que a mesa o dado do sentido, ou ento que os dados dos sentidos so propriedades diretas da mesa. Assim, supondo que exista tal mesa, surge o problema da relao dos dados dos sentidos com a mesa real. Denominaremos a mesa real, se que existe, de um objeto fsico. Por conseguinte, temos de considerar a relao entre os dados

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    dos sentidos e os objetos fsicos. A coleo de todos os objetos fsicos denominada de matria. Assim, as nossas duas questes podem ser recolocadas da seguinte forma: 1) Existe tal coisa como a matria? 2) Em caso afirmativo, qual sua natureza? O primeiro filsofo que exps claramente as razes para considerar os objetos imediatos dos nossos sentidos como no existindo independentemente de ns foi o bispo Berkeley (1685-1753). Seus Trs dilogos entre Hilas e Filonous, contra os cticos e ateus, procura provar que no existe tal coisa como a matria, e que o mundo consiste apenas de mentes e suas idias. Hilas acreditara at o momento na matria, mas no pode competir com Filonous, que o leva implacavelmente a contradies e paradoxos e faz a negao da matria parecer, no final, algo de senso comum. Os argumentos que emprega so de valor muito desigual: alguns so importantes e corretos; outros confusos e sofsticos. Mas Berkeley tem o mrito de ter mostrado que a existncia da matria suscetvel de ser negada sem absurdo, e que se h algumas coisas que existem independentemente de ns, no podem ser os objetos imediatos de nossas sensaes. H duas diferentes questes implcitas quando perguntamos se a matria existe, e importante explicit-las. Por matria geralmente entendemos algo que se ope a mente, algo que pensamos que ocupa espao e que completamente incapaz de qualquer pensamento ou conscincia. principalmente neste sentido que Berkeley nega a matria; ou seja, ele no nega que os dados dos sentidos, que comumente tomamos como sinais da existncia da mesa, sejam realmente sinais da existncia de algo independente de ns, mas nega que este algo seja no mental, isto , que no seja a mente ou as idias concebidas por uma mente. Ele admite que algo deve continuar existindo quando samos do aposento ou fechamos os olhos, e que aquilo que chamamos de ver a mesa nos d realmente uma razo para acreditarmos que algo persiste mesmo quando no o vemos. No entanto, ele pensa que este algo no pode ter uma natureza radicalmente diferente daquilo que vemos, e que no pode ser completamente independente da viso, embora deva ser independente de nossa viso. Berkeley , assim, levado a considerar a mesa real como uma idia na mente de Deus. Esta idia tem a necessria permanncia e independncia em relao a ns mesmos, sem ser como de outro modo a matria seria algo completamente incognoscvel, no sentido

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    de que poderia ser apenas inferida, nunca conhecida de um modo direto e imediato. Outros filsofos, a partir de Berkeley, sustentaram que, embora a existncia da mesa no dependa do fato de ser vista por mim, depende de ser vista (ou apreendida de uma maneira ou outra na sensao) por uma mente no necessariamente a mente de Deus, mas com mais freqncia a mente coletiva do universo. Como Berkeley, sustentam isso principalmente porque acreditam que no pode existir nada real ou, pelo menos, nada que possamos saber que seja real a no ser as mentes, seus pensamentos e sentimentos. Podemos expor o argumento com que sustentam sua opinio desta forma: Tudo o que pode ser pensado uma idia na mente da pessoa que pensa; portanto, s as idias nas mentes podem ser pensadas; qualquer outra coisa inconcebvel, e o que inconcebvel no pode existir. Em minha opinio este argumento falacioso; e, naturalmente, os que o empregam no o expem de uma forma to concisa e grosseira. Mas, vlido ou no, o argumento tem sido amplamente empregado de uma forma ou de outra, e muitos filsofos, talvez a maioria, sustentaram que nada existe de real a no ser as mentes e suas idias. Estes filsofos so denominados de idealistas. Quando procuram explicar a matria dizem, como Berkeley, que ela no de fato outra coisa a no ser uma coleo de idias, ou como Leibniz (1646-1716), que o que aparece como matria , na realidade, uma coleo de mentes mais ou menos rudimentares. Mas embora estes filsofos neguem a matria como algo que se ope mente, eles a admitem, contudo, em outro sentido. Recordemos as duas questes que apresentamos, a saber: (1) Existe, de fato, uma mesa real? (2) Em caso afirmativo, que classe de objeto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas idias na mente de Deus, e Leibniz afirma que uma colnia de almas. Assim, ambos respondem de modo afirmativo a primeira questo e divergem da viso das pessoas comuns apenas na resposta segunda questo. Na verdade, quase todos os filsofos parecem concordar que existe uma mesa real; quase todos admitem que, ainda que os dados dos sentidos a cor, a forma, a lisura, etc. dependam de algum modo de ns, a sua ocorrncia, todavia, um sinal de algo que existe independentemente de ns, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e que, no

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  • Os problemas da filosofia

    obstante, deve ser considerado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relao adequada com a mesa real. evidente que este ponto, sobre o qual os filsofos esto de acordo a opinio de que existe uma mesa real, qualquer que seja sua natureza de importncia vital, e vale a pena examinar as razes desta aceitao, antes de abordarmos o problema da natureza da mesa real. Por este motivo, o prximo captulo tratar das razes para supormos que existe, de fato, uma mesa real. Antes de prosseguirmos ser bom que examinemos o que que descobrimos at agora. Vimos que, se tomarmos um objeto comum qualquer, desses que supomos conhecer por meio dos sentidos, aquilo que os sentidos imediatamente nos mostram no a verdade acerca do objeto, tal como ele independentemente de ns, mas somente a verdade sobre certos dados dos sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem da relao entre ns e o objeto. Consequentemente, o que vemos e tocamos de maneira direta no passa de mera aparncia, sinal, supomos ns, de uma realidade que est por trs dela. Mas se a realidade no o que aparece, temos algum meio de saber se de fato existe uma realidade? E, em caso afirmativo, temos algum meio de descobrir em que consiste? Estas questes so desconcertantes, e torna-se difcil saber se mesmo as mais estranhas hipteses no so verdadeiras. Assim, a nossa mesa cotidiana, que geralmente s havia despertado em ns idias insignificantes, tornou-se agora um problema com muitas e surpreendentes possibilidades. A nica coisa que sabemos a seu respeito que no o que parece. At aqui, alm deste modesto resultado, temos a mais completa liberdade para conjecturar. Leibniz afirma que ela uma colnia de almas; Berkeley afirma que ela uma idia na mente de Deus; a cincia desapaixonada, no menos maravilhosa, afirma que uma coleo de cargas eltricas em intenso movimento. Em meio a estas surpreendentes possibilidades, a dvida sugere que talvez no exista em absoluto mesa alguma. A filosofia, se no pode responder a todas as perguntas como desejaramos que respondesse, tem pelo menos o poder de propor questes que tornam o mundo muito mais interessante e revelam o que h de estranho e maravilhoso por trs at mesmo das coisas mais vulgares da vida cotidiana.

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  • Captulo 2 A existncia da matria

    Neste captulo nos perguntaremos se existe num sentido qualquer algo como a matria. Existe uma mesa que tem certa natureza intrnseca e que continua a existir quando no a estou olhando, ou a mesa simplesmente um produto de minha imaginao, uma viso-de-mesa num sonho muito prolongado? Esta questo da maior importncia. Pois se no estamos seguros da existncia independente dos objetos, no podemos estar seguros da existncia independente de outros corpos humanos e, por conseguinte, menos ainda da de suas mentes, dado que no temos outro fundamento para acreditar em suas mentes a no ser o que deriva da observao de seus corpos. Assim, se no pudermos estar seguros da existncia independente dos objetos, estaremos a ss num deserto a totalidade do mundo exterior no seria mais que um sonho, e s ns mesmos existiramos. Trata-se de uma possibilidade desagradvel; mas embora no se possa estritamente provar a sua falsidade, no h a mais leve razo para supor que seja verdadeira. Neste captulo veremos a razo disso. Antes de nos envolvermos em questes duvidosas, tratemos de encontrar um ponto mais ou menos fixo de onde partir. Apesar de duvidarmos da existncia fsica da mesa, no duvidamos da existncia dos dados dos sentidos que nos fizeram pensar que h uma mesa; no duvidamos, quando a olhamos, que nos aparece uma determinada cor e uma forma, e que quando a pressionamos experimentamos uma determinada sensao de dureza. Tudo isso, que psicolgico, no o colocamos em dvida. De fato, por mais que tudo possa ser posto em dvida, pelo menos algumas de nossas experincias imediatas parecem absolutamente certas. Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna, inventou um mtodo que ainda pode ser empregado com proveito o mtodo da dvida metdica. Decidiu no acreditar em nada que no considerasse clara e distintamente verdadeiro. Duvidaria de tudo o que fosse possvel duvidar at alcanar alguma razo para deixar de duvidar. Aplicando este mtodo convenceu-se gradualmente de que a nica existncia da qual podia estar completamente certo era a sua prpria. Imaginou um demnio enganador que apresentava aos seus

  • Bertrand Russell

    sentidos objetos irreais numa perptua fantasmagoria; poderia ser muito improvvel que tal demnio existisse, mas, todavia, era possvel e, por conseguinte, era possvel a dvida em relao s coisas percebidas. Mas a dvida a respeito de sua prpria existncia no era possvel, pois se ele no existisse, nenhum demnio poderia engan-lo. Se duvidava, ele devia existir; se tinha uma experincia qualquer, devia existir. Assim, sua prpria existncia era para ele uma certeza absoluta. Penso, logo sou (Cogito, ergo sum); e sobre a base desta certeza comeou a trabalhar para construir de novo o mundo do conhecimento que sua dvida convertera em runas. Ao inventar o mtodo da dvida e mostrar que as coisas subjetivas so as mais certas, Descartes prestou um grande servio filosofia, e isto o torna ainda profcuo para todos os estudiosos destes temas. Entretanto, preciso tomar cuidado ao empregar o argumento de Descartes. Eu penso, portanto eu sou, diz algo mais do que estritamente certo. Podemos ter a impresso de estarmos absolutamente seguros de ser hoje a mesma pessoa que fomos ontem, o que, de certo modo, indubitavelmente certo. Porm, o Eu real to dificilmente acessvel como a mesa real, e no parece ter a certeza absoluta, convincente, que pertence s experincias particulares. Quando olho minha mesa e vejo determinada cor escura, o que absolutamente certo no que eu estou vendo uma cor escura, mas, antes, que uma determinada cor escura est sendo vista. Isto pressupe, certamente, algo (ou algum) que v a cor escura; porm no pressupe esta pessoa mais ou menos permanente que denominamos eu. Dentro dos limites da certeza imediata, pode ser que este algo que v a cor escura seja completamente momentneo, e que no seja o mesmo que no momento seguinte tm uma experincia diferente. Assim, de nossos pensamentos e sentimentos particulares que temos uma certeza primitiva. E isto se aplica aos sonhos e alucinaes assim como s percepes normais: quando sonhamos ou vemos um espectro, certamente temos as sensaes que pensamos ter; mas por vrias razes consideramos que nenhum objeto fsico corresponde a tais sensaes. Assim, a certeza de nosso conhecimento a respeito de nossas prprias experincias no deve ser limitada pelo reconhecimento de casos excepcionais. Temos aqui, por conseguinte, no domnio de sua validade, uma slida base a partir da qual comear nossa busca do conhecimento.

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  • Os problemas da filosofia

    O problema que temos que considerar este: admitindo que estamos certos dos nossos dados dos sentidos, temos alguma razo para consider-los como sinais da existncia de alguma outra coisa diferente, que podemos denominar de objeto fsico? Quando tivermos enumerado todos os dados dos sentidos que podemos naturalmente considerar em conexo com a mesa, teremos dito tudo o que se pode dizer sobre a mesa, ou existe ainda algo a mais algo que no um dado dos sentidos e que persiste quando samos do aposento? O senso comum, sem hesitao, responde de modo afirmativo. Aquilo que se pode comprar, vender, arrastar, e sobre o qual se pode pr uma toalha, no pode ser mera coleo de dados dos sentidos. Se a toalha cobrir inteiramente a mesa, no obteremos quaisquer dados dos sentidos provenientes da mesa; e, por conseguinte, se a mesa se reduzisse simplesmente a esses dados dos sentidos, ela teria deixado de existir, e a toalha estaria suspensa no ar, permanecendo, por um milagre, no lugar em que a mesa antes estava. Isto parece evidentemente absurdo; mas quem deseja tornar-se um filsofo deve apreender a no temer absurdos. Uma das principais razes pelas quais sentimos que devemos estar seguros da existncia de um objeto fsico, alm dos dados dos sentidos, que o mesmo objeto desejado por diversas pessoas. Quando dez pessoas se sentam ao redor de uma mesa de jantar, parece absurdo afirmar que elas no esto vendo a mesma toalha de mesa, as mesmas facas, colheres, garfos e copos. Mas os dados dos sentidos so privativos a cada pessoa individual; o que est imediatamente presente vista de uma pessoa no est imediatamente presente vista da outra; todas vem as coisas de pontos de vista ligeiramente diferentes e, portanto, as vem tambm ligeiramente diferentes. Assim, se existem objetos pblicos comuns, que podem ser, em certo sentido, conhecidos por diferentes pessoas, eles devem ser algo mais que os dados dos sentidos privativos e particulares que aparecem para as vrias pessoas. Que razes temos, pois, para acreditar na existncia de semelhantes objetos pblicos comuns? A primeira resposta que naturalmente ocorre a seguinte: embora diferentes pessoas possam ver a mesa de modo ligeiramente diferente, contudo, todas elas vem coisas mais ou menos idnticas quando olham a mesa; e as variaes no que elas vem obedecem as leis da perspectiva e da reflexo da luz, de modo que fcil chegar a

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    um objeto permanente subjacente a todos os diferentes dados dos sentidos das pessoas. Comprei minha mesa do antigo inquilino de meu apartamento. No pude comprar seus dados dos sentidos, que morreram quando ele saiu do apartamento, mas pude comprar, e assim o fiz, a expectativa certa de uns dados dos sentidos mais ou menos semelhantes. Assim, o fato que diferentes pessoas tm dados dos sentidos semelhantes, e que uma mesma pessoa, em um dado lugar e em momentos diferentes, tm dados dos sentidos idnticos. Isso nos faz supor que, para alm desses dados dos sentidos, h um objeto pblico e permanente que est por trs ou causa os dados dos sentidos de diversas pessoas em momentos diferentes. Agora, na medida em que as consideraes anteriores dependem da suposio de que existem outras pessoas alm de ns mesmos, elas pressupem aquilo mesmo que est em questo. As outras pessoas me so representadas por determinados dados dos sentidos, tais como a viso de sua aparncia ou o som de suas vozes e, se no tivesse nenhuma razo para acreditar na existncia de objetos fsicos independentes de meus dados dos sentidos, no teria tampouco razo para acreditar que existem outras pessoas, a no ser como parte de meu sonho. Assim, quando tentamos mostrar que deve haver objetos independentes de nossos dados dos sentidos, no podemos apelar para o testemunho de outras pessoas, j que este prprio testemunho consiste de dados dos sentidos, e no revela a experincia de outras pessoas se nossos dados dos sentidos no so sinais de coisas existentes independentemente de ns. Devemos, portanto, se possvel, achar em nossas experincias puramente privadas, caractersticas que mostrem, ou procurem mostrar, que h no mundo coisas distintas de ns mesmos e de nossas experincias privadas. De certo modo, devemos admitir que no podemos jamais provar a existncia de coisas distintas de ns mesmos e de nossas experincias. No resulta nenhum absurdo lgico da hiptese de que o mundo se reduz a mim mesmo, a meus pensamentos, sentimentos e sensaes, e que tudo o mais pura imaginao. Nos sonhos podemos ter a impresso de que existe um mundo muito mais complexo e, no entanto, ao despertar, descobrimos que se tratava de uma iluso; ou seja, descobrimos que os dados dos sentidos do sonho no corresponderam aos objetos fsicos como naturalmente inferiramos de nossos dados dos sentidos. ( verdade que se supormos que existe o

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  • Os problemas da filosofia

    mundo fsico, possvel descobrir causas fsicas dos dados dos sentidos dos sonhos: uma porta que bate, por exemplo, pode nos levar a sonhar com uma batalha naval. Mas embora, neste caso, exista uma causa fsica dos dados dos sentidos, no existe um objeto fsico que corresponde aos dados dos sentidos da mesma maneira como haveria em uma batalha naval real). A hiptese de que a vida toda um sonho, no qual ns mesmos criamos todos os objetos tal como aparecem diante de ns, no logicamente impossvel. Mas embora esta hiptese no seja logicamente impossvel, no h razo alguma para supormos que seja verdadeira; e, de fato, considerada como um meio de explicar os fatos de nossa prpria vida, uma hiptese menos simples do que a hiptese do senso comum, segundo a qual h realmente objetos independentes de ns, cuja ao sobre ns causa nossas sensaes. fcil ver como muito mais simples supor que h realmente objetos fsicos. Se um gato aparece em um determinado momento num lugar da casa e em outro momento em outro lugar, natural supor que ele se deslocou de um lugar para outro, passando por uma srie de posies intermedirias. Mas se ele consistisse simplesmente de uma coleo de dados dos sentidos, no poderia ter estado em lugar algum enquanto eu no o olhava; assim, teramos de supor que no existiu no intervalo de tempo em que eu no o olhei, mas que voltou de repente existncia em outro lugar. Se for verdade que o gato existe, quer eu o veja ou no, podemos compreender por nossa prpria experincia como ele fica com fome nos intervalos em que no come; mas se ele no existe quando no o estou vendo, parece estranho que o apetite aumente durante sua no existncia da mesma forma que durante sua existncia. E se o gato consiste unicamente de dados dos sentidos, no pode ter fome, pois nenhuma fome, a no ser a minha, pode ser para mim um dado dos sentidos. Assim, o comportamento dos dados dos sentidos que representam para mim o gato, embora parea perfeitamente natural se o considero como uma expresso da fome, torna-se completamente inexplicvel se o considero como simples movimentos e mudanas de manchas de cor, to incapazes de ter fome como um tringulo de jogar futebol. Mas a dificuldade no caso do gato no nada em comparao com a que resulta no caso de seres humanos. Quando um ser humano fala ou seja, quando ouvimos certos sons que associamos com certas idias e vemos simultaneamente certos movimentos labiais e expresses

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    faciais muito difcil supor que aquilo que ouvimos no seja a expresso de um pensamento, como sabemos que seria se emitssemos ns mesmos os sons. Ocorrem, sem dvida, casos idnticos nos sonhos, nos quais nos equivocamos ao acreditar na existncia de outras pessoas. Mas os sonhos so mais ou menos sugestionados pelo que denominamos de vida desperta, e so mais ou menos suscetveis de ser explicados mediante princpios cientficos se admitirmos que h realmente um mundo fsico. Assim, todos os princpios de simplicidade nos levam a adotar a opinio natural, segundo a qual h realmente objetos distintos de ns mesmos e de nossos dados dos sentidos, cuja existncia independe de que os percebamos ou no. claro que originariamente no chegamos crena em um mundo exterior, independente, por meio de argumentos. Percebemos em ns mesmos esta crena formada assim que comeamos a refletir: o que se poderia denominar de crena instintiva. Nunca teramos sido levados a questionar esta crena a no ser devido ao fato de que, pelo menos no caso da vista, parece que acreditvamos instintivamente que os prprios dados dos sentidos eram os objetos independentes, enquanto o raciocnio mostrava que o objeto no podia ser idntico aos dados dos sentidos. No entanto, esta descoberta que no tem nada de paradoxal no caso dos sabores, dos cheiros e do som, e apenas um pouco paradoxal no caso do tato deixa intacta nossa crena instintiva de que h objetos correspondentes a nossos dados dos sentidos. Uma vez que esta crena no apresenta dificuldade alguma, mas, ao contrrio, tende a simplificar e sistematizar a interpretao de nossas experincias, no parece haver nenhuma boa razo para rejeit-la. Podemos, pois, admitir, ainda que com uma leve dvida derivada dos sonhos, que o mundo externo realmente existe, e que no depende totalmente, para a sua existncia, de que continuemos a perceb-lo. O argumento que nos conduziu a esta concluso , sem dvida, menos slido do que poderamos desejar, mas isso tpico de muitos argumentos filosficos e, por conseguinte, vale a pena que consideremos brevemente seu carter geral e sua validade. Descobrimos que todo conhecimento, em ltima anlise, baseia-se em crenas instintivas, e que se estas so rejeitadas, nada permanece. Mas entre as nossas crenas instintivas umas so mais fortes do que outras e, muitas, pelo hbito e pela associao, envolveram-se a outras crenas

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  • Os problemas da filosofia

    que no so realmente instintivas, mas que supomos, erroneamente, que fazem parte do que acreditamos ser instintivo. A filosofia deveria nos mostrar a hierarquia das nossas crenas instintivas, comeando pelas que mantemos de um modo mais forte e apresentando cada uma delas to isolada e livre de acrscimos irrelevantes quanto seja possvel. Deveria ocupar-se de mostrar que, da forma como so finalmente enunciadas, nossas crenas instintivas no se contrapem, mas formam um sistema harmonioso. No h nenhuma razo para rejeitar uma crena instintiva, a no ser quando contradiz outras; mas se descobrimos que se harmonizam, o sistema inteiro merece ser aceito. possvel, sem dvida, que todas ou algumas de nossas crenas possam estar erradas, e, por conseguinte, todas devem ser mantidas no mnimo com um ligeiro elemento de dvida. Mas no podemos ter razo para rejeitar uma crena a no ser na base de uma outra crena. Por isso, ao organizar nossas crenas instintivas e suas conseqncias, ao considerar qual dentre elas mais aceitvel, e, se necessrio, modific-la ou abandon-la, podemos alcanar, na base de aceitar como nosso nico dado aquilo que instintivamente acreditamos, uma organizao sistemtica e ordenada de nosso conhecimento. Nesta organizao sistemtica, embora a possibilidade do erro permanea, sua probabilidade diminui mediante as relaes recprocas das partes e mediante o exame crtico que precedeu sua aceitao. A filosofia pode cumprir, pelo menos, esta funo. A maioria dos filsofos acredita, com razo ou no, que a filosofia pode fazer muito mais do que isso que ela pode nos dar conhecimento, no acessvel de outro modo, sobre o universo como um todo e sobre a natureza da realidade ltima. Se este o caso ou no, a funo mais modesta de que temos falado pode certamente ser realizada pela filosofia. E isto basta, com efeito, para os que comearam duvidando da adequao do senso comum, para justificar o trabalho rduo e difcil que os problemas filosficos envolvem.

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  • Captulo 3 A natureza da matria

    No captulo anterior chegamos concluso, embora sem sermos capazes de apresentar razes demonstrativas, que racional acreditar que nossos dados dos sentidos por exemplo, os que consideramos como associados minha mesa so realmente sinais da existncia de algo independente de ns e de nossas percepes. Ou seja, alm das sensaes de cor, dureza, som, e etc., que constituem a aparncia da mesa para mim, admito que existe alguma coisa diferente, da qual estas coisas so aparncias. A cor deixa de existir se fecho meus olhos, a sensao de dureza deixa de existir se retiro meu brao do contato com a mesa, o som deixa de existir se deixo de bater na mesa com meus dedos. No acredito, no entanto, que quando todas estas coisas deixam de existir a mesa desaparece. Pelo contrrio, acredito que porque a mesa existe continuamente que todos estes dados dos sentidos reaparecero quando eu abrir meus olhos, recolocar o meu brao na mesa, e comear novamente a bater com meus dedos. A questo que devemos considerar neste captulo : Qual a natureza desta mesa real, que persiste independentemente da percepo que tenho dela? Para esta questo a fsica d uma resposta, bastante incompleta na verdade, e em parte ainda muito hipottica, mas, contudo, dentro de seus limites, merecedora de respeito. A fsica, mais ou menos inconscientemente, tem adotado a concepo de que todos os fenmenos devem ser reduzidos a movimentos. A luz, o calor e o som so todos devidos a movimentos ondulatrios que passam do corpo que os emite para a pessoa que v a luz, sente o calor ou que ouve o som. Aquilo que tem movimento ondulatrio o ter ou a matria bruta, mas em ambos os casos o que o filsofo denominaria de matria. As nicas propriedades que a cincia atribui matria so: posio no espao e capacidade de movimento segundo as leis do movimento. A cincia no nega que a matria possa ter outras propriedades, mas se as tm, estas outras propriedades no so teis ao homem de cincia, e de maneira alguma o auxilia na explicao dos fenmenos. Diz-se s vezes que a luz consiste numa forma de movimento ondulatrio, mas isso enganoso. Pois, a luz que imediatamente vemos e conhecemos diretamente por meio de nossos sentidos, no

  • Bertrand Russell

    uma forma de movimento ondulatrio, mas alguma coisa completamente diferente alguma coisa que ns todos conhecemos, se no somos cegos, embora no possamos descrev-la de modo a sermos compreendidos por uma pessoa que seja cega. Um movimento ondulatrio, pelo contrrio, poderia muito bem ser descrito a uma pessoa cega, uma vez que esta pode adquirir um conhecimento do espao por meio do tato; e ela pode experimentar um movimento ondulatrio numa viagem martima, quase to bem quanto ns. Mas isso que um homem cego pode entender no o que queremos dizer por luz: queremos dizer por luz precisamente aquilo que um homem cego nunca pode entender, e que nunca conseguimos lhe descrever. Ora, este algo, que todos os que no somos cegos conhecemos, no , de acordo com a cincia, realmente encontrado no mundo exterior: algo causado pela ao de certas ondas sobre os olhos e nervos e crebro da pessoa que v a luz. Quando se diz que a luz constituda de ondas, o que realmente se quer dizer que as ondas so as causas fsicas das nossas sensaes da luz. Mas a cincia no supe que a prpria luz, aquilo que ao ver as pessoas experimentam e que as pessoas cegas no experimentam, constitui uma parte do mundo que independente de ns e dos nossos sentidos. E observaes muito semelhantes se aplicariam a outros tipos de sensaes. No so somente as cores e os sons, e etc., que esto ausentes do mundo cientfico da matria, mas tambm o espao como o apreendemos atravs da viso ou do tato. essencial para a cincia que a matria esteja em um espao, mas o espao em que ela est no pode ser exatamente o espao que vemos ou sentimos. Em primeiro lugar, o espao que vemos no o mesmo espao que percebemos mediante o sentido do tato; somente pela experincia na infncia que apreendemos como tocar as coisas que vemos, ou como dirigir o olhar para ver as coisas que sentimos que nos tocam. Mas o espao da cincia neutro em relao ao tato e a viso; assim, no pode ser o espao do tato nem o espao da viso. Por outro lado, diferentes pessoas vem o mesmo objeto de diferentes formas, segundo seu ponto de vista. Uma moeda redonda, por exemplo, embora devssemos sempre julgar que ela circular, parecer oval a menos que nos situemos diretamente diante dela. Quando julgamos que ela circular, estamos julgando que ela tem uma forma real que no sua forma aparente, mas que pertence a ela

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  • Os problemas da filosofia

    intrinsecamente, independentemente de sua aparncia. Mas esta forma real, que o que interessa a cincia, deve estar num espao real, que no o mesmo que o espao aparente de algum. O espao real pblico, o espao aparente privado quele que percebe. Nos espaos privados das diferentes pessoas o mesmo objeto parece ter formas diferentes; assim, o espao real, em que ele tem a sua forma real, deve ser diferente dos espaos privados. Portanto, o espao da cincia, embora conectado com os espaos que vemos e sentimos, no idntico a eles, e as formas de suas conexes exigem uma investigao. Admitimos provisoriamente que os objetos fsicos no podem ser completamente idnticos aos nossos dados dos sentidos, mas podem ser considerados com as causas das nossas sensaes. Os objetos fsicos situam-se no espao da cincia, que podemos chamar de espao fsico. importante notar que, se nossas sensaes so causadas pelos objetos fsicos, deve existir um espao fsico que contm estes objetos, nossos rgos dos sentidos, nervos e crebro. Obtemos uma sensao ttil de um objeto quando estamos em contato com ele, ou seja, quando alguma parte de nosso corpo ocupa um lugar no espao fsico muito prximo ao espao ocupado pelo objeto. Vemos um objeto (grosso modo) quando nenhum corpo opaco est entre o objeto e nossos olhos no espao fsico. De maneira similar, s ouvimos, cheiramos ou sentimos o gosto de um objeto quando estamos suficientemente prximos dele, quando ele toca a lngua ou tem uma adequada posio no espao fsico relativamente ao nosso corpo. No podemos comear a afirmar quais diferentes sensaes receberemos de um dado objeto sob diferentes circunstncias a menos que consideremos tanto o objeto como nosso corpo num espao fsico, pois principalmente a posio relativa do objeto e de nosso corpo que determina quais sensaes receberemos do objeto. Ora, nossos dados dos sentidos esto situados em nossos espaos privados, seja no espao da viso, no espao do tato ou em espaos mais vagos que outros sentidos podem nos dar. Se, como a cincia e o senso comum supem, existe um espao fsico pblico que abrange tudo, no qual os objetos fsicos esto, as posies relativas dos objetos fsicos no espao fsico devero mais ou menos corresponder s posies relativas dos dados dos sentidos em nossos espaos privados. No existe dificuldade alguma em imaginar que este seja o caso. Se virmos numa rua uma casa mais prxima de ns do que outra, nossos

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  • Bertrand Russell

    outros sentidos confirmaro a viso de que ela est mais prxima; por exemplo, ser alcanada antes se percorrermos a rua. Outras pessoas concordaro que a casa que nos parece mais prxima est de fato mais prxima, os mapas indicaro a mesma coisa; e, assim, tudo indica uma relao espacial entre as casas que corresponde com a relao entre os dados dos sentidos que obtemos quando olhamos para as casas. Portanto, podemos supor que existe um espao fsico no qual os objetos fsicos tm relaes espaciais que correspondem quelas que os correspondentes dados dos sentidos tm em nossos espaos privados. este espao fsico que estudado pela geometria e suposto pela fsica e pela astronomia. Admitindo que exista o espao fsico, e tambm uma correspondncia deste com os espaos privados, o que podemos saber sobre ele? Podemos conhecer somente o que preciso para assegurar a correspondncia. Ou seja, nada podemos saber do que ele em si mesmo, mas podemos conhecer o tipo de arranjo dos objetos fsicos que resulta de suas relaes espaciais. Podemos saber, por exemplo, que a Terra, a Lua e o Sol esto alinhados durante um eclipse, embora no possamos conhecer o que seja, em si mesma, uma linha reta fsica, como conhecemos o aspecto de uma linha reta em nosso espao visual. Assim, sabemos muito mais sobre as relaes das distncias no espao fsico do que sobre as prprias distncias; podemos saber que uma distncia maior do que outra, ou que ela paralela mesma linha reta que a outra, mas no podemos ter aquele conhecimento direto imediato das distncias fsicas como temos das distncias em nossos espaos privados, das cores, dos sons ou dos demais dados dos sentidos. Podemos conhecer sobre o espao fsico tudo aquilo que um cego de nascena poderia saber, atravs de outras pessoas, acerca do espao visual; mas a espcie de coisas que um cego de nascena nunca poder saber sobre o espao visual ns tambm no podemos saber sobre o espao fsico. Podemos conhecer as propriedades das relaes necessrias para preservar a correspondncia com os dados dos sentidos, mas no podemos conhecer a natureza dos termos entre os quais so mantidas as relaes. Em relao ao tempo, nosso sentimento da durao ou do lapso de tempo notoriamente um guia inseguro em relao ao tempo que transcorre segundo o relgio. Quando estamos cansados ou sofrendo, o tempo passa lentamente, quando estamos agradavelmente ocupados, o

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  • Os problemas da filosofia

    tempo passa rapidamente, e quando estamos dormindo o tempo passa quase como se no existisse. Assim, na medida em que o tempo constitudo pela durao, existe a mesma necessidade de distinguir um tempo pblico e um tempo privado como existe no caso do espao. Mas na medida em que o tempo consiste em uma ordem do antes e do depois, no existe qualquer necessidade de fazer tal distino; a ordem temporal que os eventos parecem ter , segundo o que podemos ver, a mesma ordem temporal que eles realmente tm. Em todo caso, no podemos oferecer nenhuma razo para supor que ambas as ordens no sejam a mesma. Em geral isso tambm verdadeiro acerca do espao: se um batalho est marchando ao longo de uma rua, a forma do batalho parecer diferente a partir de diferentes pontos de vista, mas os homens parecero arranjados na mesma ordem a partir de todos os pontos de vista. Por isso consideramos a ordem como verdadeira tambm no espao fsico, enquanto que se supe que a forma corresponde apenas ao espao fsico na medida em que ela necessria para a manuteno da ordem. Ao dizer que a ordem temporal que os eventos parecem ter a mesma que a ordem temporal que eles realmente tm, necessrio precaver-se contra possveis ms interpretaes. No se deve supor que os vrios estados dos diferentes objetos fsicos tm a mesma ordem temporal que os dados dos sentidos que constituem as percepes daqueles objetos. Considerados como objetos fsicos, o trovo e o relmpago so simultneos; ou seja, o relmpago simultneo perturbao do ar no lugar onde a perturbao comea, ou seja, onde o relmpago ocorre. Mas o dado do sentido que denominamos ouvir o trovo no ocorre at que a perturbao do ar tenha viajado at o lugar onde estamos. De maneira similar, demora quase oito minutos para que a luz do sol nos atinja; assim, quando vemos o sol estamos vendo o sol de oito minutos atrs. Na medida em que nossos dados dos sentidos nos fornecem evidncias quanto ao sol fsico, eles nos fornecem evidncia quanto ao sol fsico de oito minutos atrs; se o sol fsico tivesse deixado de existir dentro destes ltimos oito minutos, isso no faria a menor diferena para os dados dos sentidos que ns denominamos de ver o sol. Isso fornece um novo exemplo da necessidade de distinguir entre os dados dos sentidos e os objetos fsicos. O que ns descobrimos em relao ao espao mais ou menos o mesmo que descobrimos em relao correspondncia dos dados dos

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  • Bertrand Russell

    sentidos com suas contrapartes fsicas. Se um objeto parece azul e outro vermelho, podemos razoavelmente presumir que existe alguma diferena correspondente entre os objetos fsicos; se dois objetos parecem azuis, podemos presumir uma correspondente similaridade. Mas no podemos esperar ter conhecimento direto da qualidade do objeto fsico que o faz parecer azul ou vermelho. A cincia nos diz que esta qualidade uma determinada espcie de movimento ondulatrio, e isso soa familiar, pois pensamos em movimentos ondulatrios no espao que vemos. Mas os movimentos ondulatrios devem realmente existir no espao fsico, do qual no temos nenhum conhecimento direto; assim, no temos aquela familiaridade que poderamos ter imaginado que teramos dos verdadeiros movimentos ondulatrios. E o que afirmamos em relao s cores muito parecido ao que se pode afirmar em relao aos outros dados dos sentidos. Assim, descobrimos que, embora as relaes dos objetos fsicos tenham todos os tipos de propriedades cognoscveis, derivadas de sua correspondncia com as relaes dos dados dos sentidos, os objetos fsicos eles mesmos permanecem desconhecidos em sua natureza intrnseca, pelo menos at que possam ser descobertos por meio dos sentidos. A questo que permanece se existe algum outro mtodo de descobrir a natureza intrnseca dos objetos fsicos. A hiptese mais natural, embora no, no final das contas, a mais defensvel, a ser adotada num primeiro momento ao menos em relao aos dados dos sentidos visuais , seria afirmar que, embora os objetos fsicos no possam, pelas razes que estivemos considerando, ser exatamente semelhantes aos dados dos sentidos, no obstante podem ser mais ou menos semelhantes a eles. Segundo esta opinio, os objetos fsicos, por exemplo, teriam realmente cores, e poderamos, por um acaso feliz, ver um objeto da cor que ele realmente . A cor que um objeto parece ter em um dado momento ser em geral muito similar, embora no completamente a mesma, a partir de muitos pontos de vista diferentes; poderamos assim imaginar que a cor real uma espcie de cor mdia, intermediria entre as vrias tonalidades que aparecem a partir de diferentes pontos de vista. Esta teoria talvez no possa ser definitivamente refutada, mas podemos mostrar que ela infundada. Em primeiro lugar, claro que a cor que vemos depende apenas da natureza das ondas de luz que atingem o olho e , portanto, modificada pelo meio intermedirio entre

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  • Os problemas da filosofia

    ns e o objeto, assim como pela maneira como a luz refletida do objeto na direo do olho. O ar interposto altera as cores, a menos que seja perfeitamente claro, e qualquer forte reflexo as alterar completamente. Assim, a cor que vemos um resultado do raio como ele atinge o olho, e no simplesmente uma propriedade do objeto de onde o raio procede. Por esta razo, tambm, uma vez que certas ondas atingem o olho, veremos uma determinada cor, quer o objeto de onde as ondas procedem tenha alguma cor ou no. Assim, completamente desnecessrio supor que os objetos fsicos tm cores e, portanto, no existe qualquer justificao para fazer tal suposio. Argumentos exatamente similares aplicam-se aos demais dados dos sentidos. Resta perguntarmos se existem alguns argumentos filosficos gerais que nos permitem dizer que, se a matria real, ela deve ser desta ou daquela tal natureza. Como explicamos acima, muitos filsofos, talvez a maioria, tm sustentado que tudo o que real deve ser em algum sentido mental, ou, pelo menos, que tudo o que podemos conhecer sobre alguma coisa deve ser em algum sentido mental. Estes filsofos so chamados de idealistas. Os idealistas nos dizem que o que aparece como matria , na realidade, algo mental; ou seja, mentes mais ou menos rudimentares (como Leibniz sustentou), ou, (como Berkeley afirmou), idias nas mentes que, como deveramos comumente dizer, percebem a matria. Assim, os idealistas negam a existncia da matria como algo intrinsecamente diferente da mente, embora eles no neguem que nossos dados dos sentidos sejam sinais de alguma coisa que existe independentemente de nossas sensaes privadas. No prximo captulo consideraremos brevemente as razes em minha opinio falaciosas que os idealistas oferecem a favor de sua teoria.

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  • Captulo 4 Idealismo

    A palavra idealismo empregada por diferentes filsofos em sentidos um tanto diferentes. Por idealismo devemos entender a doutrina segundo a qual tudo o que existe, ou pelo menos tudo o que podemos saber que existe, deve ser em algum sentido mental. Esta doutrina, que entre os filsofos muito amplamente mantida, tem vrias formas, e defendida com base em vrios fundamentos distintos. A doutrina to amplamente sustentada, e to interessante em si mesma, que mesmo a mais breve exposio filosfica deve oferecer uma idia a seu respeito. Aqueles que no esto acostumados com a especulao filosfica podem estar inclinados a rejeitar semelhante doutrina como obviamente absurda. No h dvida de que o senso comum considera as mesas e as cadeiras, o sol e a lua, e os objetos materiais em geral, como alguma coisa radicalmente diferente das mentes e dos contedos das mentes, e como tendo uma existncia que poderia continuar se as mentes deixassem de existir. Pensamos na matria como tendo existido muito antes que houvesse mentes, e difcil pens-la como um simples produto da atividade mental. Mas, verdadeiro ou falso, o idealismo no deve ser rejeitado como obviamente absurdo. Vimos que, mesmo se os objetos fsicos tm uma existncia independente, eles devem diferir muito amplamente dos dados dos sentidos, e s podem ter uma correspondncia com os dados dos sentidos, da mesma forma como um catlogo tem uma correspondncia com as coisas catalogadas. Consequentemente, o senso comum nos deixa completamente no escuro em relao verdadeira natureza intrnseca dos objetos fsicos, e se existem boas razes para consider-los como mentais, no poderemos legitimamente rejeitar esta opinio simplesmente porque ela nos parece estranha. A verdade sobre os objetos fsicos deve ser estranha. Ela pode ser inalcanvel, mas se algum filsofo acredita que a alcanou, o fato de que aquilo que ele oferece como a verdade seja estranho no deve ser considerado como um motivo para rejeitar a sua opinio. As bases sobre as quais o idealismo defendido so geralmente bases derivadas da teoria do conhecimento, ou seja, de uma discusso das condies que as coisas devem satisfazer a fim de que possamos ser

  • Bertrand Russell

    capazes de conhec-las. A primeira tentativa sria de estabelecer o idealismo sobre tais bases foi a do Bispo Berkeley. Ele provou, primeiramente, mediante argumentos que eram em grande medida vlidos, que nossos dados dos sentidos no podem ser considerados como tendo uma existncia independente de ns, mas que devem estar, pelo menos em parte, na mente, no sentido de que sua existncia no subsistiria se no houvesse ningum vendo, ouvindo, tocando, cheirando, sentindo ou experimentando. At este ponto sua argumentao quase certamente vlida, mesmo que alguns de seus argumentos no sejam. Mas ele passou a argumentar que os dados dos sentidos eram as nicas coisas de cuja existncia nossas percepes poderiam nos assegurar, e que ser conhecido estar em uma mente, e, portanto, ser mental. Por esta razo ele concluiu que nada pode ser conhecido exceto o que est em alguma mente, e que tudo o que conhecido sem estar na minha mente deve estar em alguma outra mente. A fim de entender seu argumento necessrio entender o emprego que ele faz da palavra idia. Ele d o nome de idia a tudo o que imediatamente conhecido, como, por exemplo, os dados dos sentidos so conhecidos. Assim, uma cor particular que vemos uma idia; da mesma forma, uma voz que ouvimos, e assim por diante. Mas o termo no inteiramente restrito aos dados dos sentidos. Existiriam tambm coisas lembradas ou imaginadas, pois tambm temos conhecimento direto imediato de tais coisas no momento de lembrar ou imaginar. Berkeley denomina todos estes dados imediatos de idias. Berkeley ento continua a considerar os objetos comuns, tais como uma rvore, por exemplo. Ele mostra que tudo o que conhecemos imediatamente quando percebemos a rvore consiste de idias, no sentido que ele d ao termo, e argumenta que no h a menor base para supor que existe alguma coisa real sobre a rvore a no ser o que percebido. Seu ser, ele diz, consiste em ser percebida: no latim dos escolsticos, seu esse percipi. Ele admite perfeitamente que a rvore deve continuar a existir mesmo quando fechamos nossos olhos ou quando nenhum ser humano est prximo dela. Mas esta existncia contnua, diz ele, deve-se ao fato de que Deus continua a perceb-la; a rvore real, que corresponde ao que denominamos de objeto fsico, consiste de idias na mente de Deus, idias mais ou menos semelhantes quelas que temos quando vemos a rvore, mas que diferem no fato de

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  • Os problemas da filosofia

    que so permanentes na mente de Deus enquanto a rvore continua a existir. Todas as nossas percepes, de acordo com ele, consistem em uma participao parcial nas percepes de Deus, e por causa desta participao que diferentes pessoas vem mais ou menos a mesma rvore. Assim, independentemente das mentes e suas idias nada existe no mundo, nem possvel que alguma coisa diferente possa alguma vez ser conhecida, dado que tudo o que conhecido necessariamente uma idia. H neste argumento algumas falcias que tiveram importncia na histria da filosofia, e que ser bom esclarecer. Em primeiro lugar, existe uma confuso engendrada pelo emprego da palavra idia. Pensamos que uma idia algo que existe essencialmente na mente de algum, e, assim, quando nos dito que uma rvore consiste inteiramente de idias, natural supor que, se assim, a rvore deve estar inteiramente na mente. Mas a noo de estar na mente ambgua. Dizemos que temos uma pessoa em mente, no no sentido de que a pessoa est em nossa mente, mas de que temos em nossa mente um pensamento a seu respeito. Quando algum diz que tirou de sua mente um problema que tinha que resolver, no significa dizer que o prprio problema estava em sua mente, mas apenas que um pensamento sobre o problema estava antes em sua mente, mas depois deixou de estar nela. E, assim, quando Berkeley diz que a rvore deve estar em nossa mente se quisermos conhec-la, tudo o que ele realmente tem o direito de dizer que um pensamento sobre a rvore deve estar em nossa mente. Argumentar que a prpria rvore deve estar em nossa mente como argumentar que uma pessoa em quem pensamos est, ela mesma, em nossa mente. Esta confuso pode parecer demasiado grosseira para que tenha sido realmente cometida por um filsofo competente, mas vrias circunstncias concomitantes a tornaram possvel. A fim de ver como ela foi possvel, devemos nos aprofundar no problema da natureza das idias. Antes de nos dedicarmos questo geral da natureza das idias, devemos elucidar duas questes inteiramente distintas que surgem a respeito dos dados dos sentidos e dos objetos fsicos. Vimos que, por vrias razes especficas, Berkeley estava certo ao tratar os dados dos sentidos que constituem nossa percepo da rvore como mais ou menos subjetivos, no sentido que eles dependem de ns tanto quanto da rvore, e no existiriam se a rvore no estivesse sendo

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    percebida. Mas este um ponto inteiramente diferente daquele pelo qual Berkeley procura provar que tudo que pode ser imediatamente conhecido deve estar numa mente. Para este objetivo argumentos especficos em relao dependncia que os dados dos sentidos tm de ns so suprfluos. necessrio provar, em geral, que pelo fato de serem conhecidas, as coisas devem ser mentais. Isso o que o prprio Berkeley acredita ter feito. este problema, e no nosso problema anterior em relao diferena entre dados dos sentidos e objetos fsicos, que deve agora nos interessar. Tomando a palavra idia no sentido de Berkeley, existem duas coisas completamente distintas a serem consideradas sempre que uma idia est diante da mente. Existe, por um lado, a coisa da qual estamos conscientes a cor da minha mesa, por exemplo e, por outro lado, a prpria conscincia presente, o ato mental de apreender a coisa. O ato mental indubitavelmente mental, mas existe alguma razo para supor que a coisa apreendida em algum sentido mental? Nossos argumentos anteriores sobre a cor no provam que ela mental; eles somente provam que sua existncia depende da relao de nossos rgos dos sentidos com os objetos fsicos no nosso caso, a mesa. Ou seja, eles provam que uma determinada cor existir, em uma determinada luz, se um olho normal colocado em certo ponto em relao mesa. Eles no provam que a cor est na mente do percipiente. A opinio de Berkeley, que obviamente a cor deve estar na mente, parece depender, para sua plausibilidade, da confuso entre a coisa apreendida com o ato de apreenso. Estas duas coisas poderiam ser denominadas uma idia; provavelmente ambas teriam sido denominadas de idia por Berkeley. O ato est indubitavelmente na mente; portanto, quando estamos pensando no ato, prontamente admitimos a opinio de que as idias devem estar na mente. Por conseguinte, esquecendo que isso era apenas verdadeiro quando as idias eram tomadas como atos de apreenso, transferimos a proposio que as idias esto na mente para idias no outro sentido, isto , para as coisas apreendidas por nossos atos de apreenso. Assim, por um equvoco inconsciente, chegamos concluso de que tudo o que podemos apreender deve estar em nossa mente. Esta parece ser a verdadeira anlise do argumento de Berkeley, e a falcia fundamental sobre o qual ele repousa.

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  • Os problemas da filosofia

    Esta questo da distino entre o ato e o objeto em nossa apreenso das coisas sumamente importante, visto que toda nossa capacidade de adquirir conhecimento apresenta-se vinculada a ela. A faculdade de ter conhecimento direto de coisas diferentes dela mesma a principal caracterstica de uma mente. O conhecimento direto dos objetos consiste essencialmente numa relao entre a mente e alguma coisa diferente da mente; isso que constitui a capacidade da mente de conhecer coisas. Se dissermos que as coisas conhecidas devem estar na mente, estamos limitando indevidamente a capacidade da mente de conhecer ou estamos proferindo uma mera tautologia. Estamos proferindo uma mera tautologia se quisermos dizer por na mente o mesmo que por diante da mente, isto , se quisermos dizer simplesmente ser apreendido pela mente. Mas se queremos dizer isso, teremos de admitir que, neste sentido, estar na mente, pode, no obstante, ser no mental. Assim, quando compreendemos a natureza do conhecimento, percebemos que o argumento de Berkeley errado tanto em sua substncia como em sua forma, e suas razes para supor que idias isto , os objetos aprendidos devem ser mentais, so consideradas sem qualquer validade. Por isso, suas razes a favor do idealismo podem ser rejeitadas. Resta ver se existem algumas outras razes. Diz-se frequentemente, como se fosse um trusmo evidente por si mesmo, que no podemos saber se algo existe se no o conhecemos. Infere-se que tudo que pode de alguma maneira ser relevante para nossa experincia deve ser no mnimo suscetvel de ser conhecido por ns. Segue-se, portanto, que se a matria fosse essencialmente alguma coisa da qual no pudssemos ter conhecimento direto, a matria seria alguma coisa que no poderamos saber que existe, e que no teria para ns importncia alguma. Em geral est subentendido, por razes que permanecem obscuras, que o que no pode ter nenhuma importncia para ns no pode ser real, e que, portanto, a matria, se ela no composta de mentes ou de idias mentais, impossvel e uma mera quimera. No possvel, no momento, analisar profundamente este argumento, dado que ele levanta pontos que exigem uma considervel discusso preliminar; mas certas razes para rejeitar o argumento podem ser mencionadas imediatamente. Comecemos pela ltima: no existe razo alguma pela qual o que no pode ter qualquer importncia

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    prtica para ns no deva ser real. verdade que, se inclumos a importncia terica, tudo o que real tem alguma importncia para ns, dado que, como pessoas que desejam conhecer a verdade sobre o universo, temos algum interesse em tudo aquilo que o universo contm. Mas se inclumos este tipo de interesse, no verdade que a matria no tem nenhuma importncia para ns, uma vez que ela existe mesmo se no podemos saber que ela existe. Podemos, evidentemente, suspeitar que ela possa existir, e perguntar se ela existe; por esta razo ela est relacionada com nosso desejo de conhecimento, e tem a importncia de satisfazer ou frustrar este desejo. Alm disso, no de modo algum uma verdade incontestvel, e, na realidade, falso, que no podemos saber se algo existe se no o conhecemos. A palavra conhecer aqui usada em dois sentidos diferentes. (1) Em sua primeira acepo aplicvel ao tipo de conhecimento que oposto ao erro, no sentido de que aquilo que sabemos verdadeiro, no sentido que se aplica s nossas crenas e convices, isto , ao que denominamos de juzos. Neste sentido da palavra sabemos que alguma coisa o caso. Este tipo de conhecimento pode ser descrito como conhecimento de verdades. (2) Na segunda acepo da palavra conhecer, a palavra aplica-se ao nosso conhecimento de coisas, ao qual podemos chamar de conhecimento direto. Este o sentido em que conhecemos os dados dos sentidos. (Esta distino corresponde aproximadamente quela que existe entre savoir e connatre em francs, ou entre wissen e kennen em alemo). Assim, o enunciado que parecia uma verdade incontestvel torna-se, quando reformulado, o seguinte: Nunca podemos enunciar um juzo verdadeiro sobre a existncia de algo se no o conhecemos diretamente. Esta de modo algum uma verdade incontestvel, mas, ao contrrio, uma evidente falsidade. No tenho a honra conhecer diretamente o Imperador da China, mas julgo, com razo, que ele existe. Pode-se dizer, naturalmente, que julgo isso por causa do conhecimento pessoal que outras pessoas tm dele. Esta, entretanto, seria uma rplica irrelevante, pois se o princpio fosse verdadeiro, no poderia saber que outros tm um conhecimento direto dele. Mas, alm disso, no existe razo alguma para que no saiba da existncia de algo que ningum tem conhecimento direto. Este ponto importante, e requer elucidao.

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  • Os problemas da filosofia

    Se conheo diretamente que algo existe, meu conhecimento direto me proporciona o conhecimento de que ela existe. Mas no verdade, reciprocamente, que sempre que posso saber que algo determinado existe, eu ou algum deve ter conhecimento direto da coisa. O que ocorre, nos casos em que enuncio um juzo verdadeiro sem ter conhecimento direto, que a coisa conhecida por mim por descrio, e que, em virtude de algum princpio geral, a existncia de algo que satisfaz esta descrio pode ser inferida da existncia de algo do qual tenho conhecimento direto. A fim de entender isso completamente ser conveniente tratar, em primeiro lugar, da diferena entre conhecimento direto e conhecimento por descrio, e ento considerar que o conhecimento de princpios gerais, se existe, tem o mesmo tipo de certeza que nosso conhecimento da existncia de nossas prprias experincias. Estes assuntos sero tratados nos captulos seguintes.

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  • Captulo 5 Conhecimento direto e conhecimento por meio de

    descrio No captulo anterior vimos que h dois tipos de conhecimento: conhecimento de coisas e conhecimento de verdades. Neste captulo trataremos exclusivamente do conhecimento de coisas, do qual, por sua vez, devemos distinguir duas espcies. O conhecimento de coisas, quando da espcie que denominamos de conhecimento direto, essencialmente mais simples que qualquer conhecimento de verdades, e logicamente independente do conhecimento de verdades. No obstante, precipitado assumir que, em qualquer ocasio, os seres humanos tm, de fato, conhecimento direto das coisas sem ao mesmo tempo conhecer alguma verdade sobre elas. O conhecimento de coisas por descrio, ao contrrio, sempre implica, como veremos no curso do presente captulo, algum conhecimento de verdades como sua fonte e seu fundamento. Mas antes de tudo devemos esclarecer o que entendemos por conhecimento direto e o que entendemos por descrio. Diremos que temos conhecimento direto de alguma coisa da qual estamos diretamente conscientes, sem a intermediao de qualquer mtodo de inferncia ou de qualquer conhecimento de verdades. Assim, na presena de minha mesa conheo diretamente os dados dos sentidos que constituem a aparncia de minha mesa: sua cor, forma, dureza, lisura, etc.; todas estas so coisas das quais tenho imediatamente conscincia quando estou vendo e tocando minha mesa. Posso dizer muitas coisas sobre o matiz particular da cor que estou vendo. Posso dizer que ele marrom, que de cor escura, e assim por diante. Mas tais afirmaes, embora me forneam verdades sobre a cor, no me fazem conhecer a prpria cor melhor do que antes. No que concerne ao conhecimento da prpria cor, ao contrrio do conhecimento de verdades sobre ela, conheo a cor de modo perfeito e completamente quando a vejo, e nenhum conhecimento adicional sobre ela mesmo teoricamente possvel. Assim sendo, os dados dos sentidos que constituem a aparncia de minha mesa so coisas das quais tenho um conhecimento direto, coisas que me so imediatamente conhecidas, exatamente como elas so.

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    Meu conhecimento da mesa como um objeto fsico, ao contrrio, no um conhecimento direto. Tal como ele , obtido atravs do conhecimento direto dos dados dos sentidos que constituem a aparncia da mesa. Vimos que possvel, sem absurdo, duvidar de que existe uma mesa, enquanto no possvel duvidar dos dados dos sentidos. Meu conhecimento da mesa da espcie que denominaremos conhecimento por descrio. A mesa o objeto fsico que causa tais e tais dados dos sentidos. Assim se descreve a mesa por meio dos dados dos sentidos. Para conhecer alguma coisa sobre a mesa, devemos conhecer verdades que a conectem com as coisas das quais temos um conhecimento direto: devemos saber que tais e tais dados dos sentidos so causados por um objeto fsico. No h um estado mental em que somos diretamente conscientes da mesa; todo nosso conhecimento da mesa realmente um conhecimento de verdades, e a coisa mesma que constitui a mesa no nos , estritamente falando, conhecida. Conhecemos uma descrio e sabemos que h um objeto ao qual esta descrio se aplica exatamente, embora o prprio objeto no nos seja diretamente conhecido. Neste caso, dizemos que nosso conhecimento do objeto um conhecimento por descrio. Todo nosso conhecimento, tanto o conhecimento de coisas como o conhecimento de verdades, baseia-se, em ltima instncia, no conhecimento direto. Portanto, importante considerar que espcies de coisas existem das quais temos um conhecimento direto. Os dados dos sentidos, como j vimos, esto entre as coisas das quais temos um conhecimento direto; na realidade, eles fornecem o exemplo mais bvio e evidente de conhecimento direto. Mas se fosse o nico exemplo, nosso conhecimento seria muito mais restrito do que . Conheceramos apenas o que est presente aos nossos sentidos atualmente: nada conheceramos sobre o passado nem mesmo que houve um passado nem poderamos conhecer quaisquer verdades sobre nossos dados dos sentidos, pois todo conhecimento de verdades exige, como mostraremos, conhecimento direto de coisas que possuem um carter essencialmente diferente dos dados dos sentidos, coisas que so s vezes denominadas de idias abstratas, mas que ns denominaremos de universais. Portanto, se quisermos obter alguma anlise razoavelmente adequada do nosso conhecimento devemos considerar o conhecimento direto de outras coisas, alm dos dados dos sentidos.

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    A primeira extenso que devemos considerar, alm dos dados dos sentidos, o conhecimento direto da memria. bvio que frequentemente lembramos o que vimos, ouvimos ou o que tivemos de algum modo presente a nossos sentidos, e que nestes casos somos sempre imediatamente conscientes do que lembramos, apesar do fato de aparecer como passado e no como presente. Este conhecimento imediato da memria a fonte de todo nosso conhecimento sobre o passado: sem ele, no haveria conhecimento do passado por meio de inferncia, visto que nunca saberamos que h alguma coisa passada a ser inferida. A prxima extenso a ser considerada o conhecimento imediato por meio da introspeco. No temos apenas conscincia de coisas, mas temos muitas vezes conscincia de estarmos conscientes delas. Quando vejo o sol, tenho muitas vezes conscincia de que vejo o sol; assim meu ato de ver o sol um objeto do qual tenho conhecimento direto. Quando desejo alimento, posso ter conscincia de meu desejo de alimento; assim, meu desejo de alimento um objeto do qual tenho conhecimento direto. De maneira similar, podemos ter conscincia de nosso sentimento de prazer ou de dor, e, em geral, dos eventos que ocorrem em nossas mentes. Este tipo de conhecimento direto, que pode ser denominado de autoconscincia, a fonte do nosso conhecimento dos objetos mentais. evidente que s o que ocorre em nossa prpria mente pode ser conhecido deste modo imediato. O que ocorre nas mentes dos outros conhecido por meio de nossa percepo de seus corpos, ou seja, por meio de nossos dados dos sentidos que so associados aos seus corpos. Mas sem o conhecimento direto do contedo de nossa prpria mente, seramos incapazes de imaginar as mentes dos demais, e, portanto, nunca poderamos chegar ao conhecimento de que eles tm mentes. Parece natural supor que a autoconscincia uma das coisas que distingue os homens dos animais: podemos supor que os animais, embora tenham conhecimento direto dos dados dos sentidos, nunca adquirem conscincia deste conhecimento. No quero dizer que eles duvidam de sua existncia, mas que nunca adquirem conscincia do fato de que eles tm sensaes e sentimentos, nem, portanto, do fato de que eles, os sujeitos de suas sensaes e sentimentos, existem. Falamos do conhecimento direto do contedo de nossa mente como sendo autoconscincia, mas no , evidentemente, conscincia de

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    nosso eu: conscincia de pensamentos e sentimentos particulares. O problema de saber se temos tambm conhecimento direto de nosso eu puro, como oposto a nossos pensamentos e sentimentos particulares, um problema muito difcil, sobre o qual seria temerrio falar de modo positivo. Quando tentamos nos analisar sempre parecemos chegar a algum pensamento ou sentimento particular, e no no eu que tem o pensamento ou sentimento. No obstante, existem algumas razes para pensar que temos um conhecimento direto do nosso eu, embora seja muito difcil distinguir este conhecimento de outras coisas. Para tornar claro que tipos de razes existem, consideremos por um momento o que realmente implica nosso conhecimento direto de pensamentos particulares. Quando tenho o conhecimento direto de minha viso do sol, parece evidente que tenho conhecimento direto de duas coisas diferentes que se encontram uma em relao com a outra. Por um lado, existe o dado dos sentidos que representa, para mim, o sol, por outro lado, existe aquele que v este dado dos sentidos. Todo conhecimento direto, tal como o meu conhecimento direto do dado dos sentidos que representa o sol, parece evidentemente uma relao entre a pessoa que conhece diretamente e o objeto que a pessoa conhece. Quando um caso de conhecimento direto tal que posso ter conhecimento direto dele (como tenho conhecimento de meu conhecimento dos dados dos sentidos que representam o sol) evidente que a pessoa que conheo sou eu mesmo. Assim, quando tenho conhecimento direto de meu ato de ver o do sol, o fato completo do qual tenho conhecimento Eu que conheo um dado dos sentidos. Alm disso, conhecemos esta verdade: eu conheo diretamente este dado dos sentidos. difcil ver como poderamos conhecer esta verdade, ou mesmo entender o que ela significa, a menos que tivssemos conhecimento direto de algo que denominamos eu. No parece necessrio supor que temos um conhecimento direto de uma pessoa mais ou menos permanente, a mesma hoje como ontem, mas parece necessrio, entretanto, termos conhecimento direto deste algo, seja qual for sua natureza, que v o sol e tem um conhecimento direto dos dados dos sentidos. Assim, parece que, em algum sentido, preciso que tenhamos um conhecimento direto do nosso eu como oposto s nossas experincias particulares. Mas o problema difcil, e de ambos os lados pode-se aduzir argumentos complicados. Portanto, embora

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    parea provvel que o conhecimento direto de ns mesmos ocorra, no sensato afirmar que seja indubitvel. Podemos, portanto, resumir como segue tudo o que dissemos sobre o conhecimento direto das coisas que existem. Temos conhecimento direto, na sensao, dos dados dos sentidos externos e, na introspeco, dos dados do que podemos denominar de sentido interior: pensamentos, sentimentos, desejos, etc.; temos um conhecimento direto na memria das coisas que foram dadas quer pelos sentidos exteriores, quer pelo sentido interior. Alm disso, provvel, embora no certo, que temos conhecimento direto do Eu, como de algo que tem conscincia das coisas ou as deseja. Alm de nosso conhecimento direto das coisas particulares que existem, tambm temos um conhecimento direto do que denominaremos de universais, ou seja, idias gerais como brancura, diversidade, fraternidade, e assim por diante. Toda sentena completa deve conter pelo menos uma palavra que represente um universal, visto que todos os verbos tm um significado que universal. Retornaremos aos universais mais adiante, no Captulo 9; no momento, apenas necessrio precaver-se contra a suposio de que tudo aquilo do qual podemos ter um conhecimento direto deve ser algo particular e existente. A tomada de conscincia de universais denominada de concepo, e um universal do qual temos conscincia chamado de conceito. V-se que entre os objetos dos quais temos um conhecimento direto no so includos os objetos fsicos (como opostos aos dados dos sentidos), nem as mentes de outras pessoas. Estas coisas nos so conhecidas por meio do que eu denomino de conhecimento por descrio, o qual devemos considerar agora. Por descrio entendo toda frase da forma um isto ou aquilo ou o isto ou aquilo. Denominarei de descrio ambgua uma frase da forma um isto ou aquilo; denominarei de descrio definida uma frase da forma o isto ou aquilo (no singular). Assim, um homem uma descrio ambgua, e o homem da mscara de ferro uma descrio definida. Existem vrios problemas relacionados s descries ambguas, mas eu os deixarei de lado, pois no se referem diretamente ao assunto que estamos discutindo, que a natureza de nosso conhecimento sobre os objetos em casos em que sabemos que existe um objeto que corresponde a uma descrio definida, embora no

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    tenhamos um conhecimento direto de qualquer objeto semelhante. Trata-se de um assunto que se refere exclusivamente s descries definidas. Portanto, daqui em diante falarei simplesmente de descries quando desejar mencionar as descries definidas. Deste modo, uma descrio ser qualquer frase da forma o isto ou aquilo no singular. Afirmaremos que um objeto conhecido por descrio quando sabemos que isto ou aquilo , ou seja, quando sabemos que h um objeto, e nenhum outro, que tem uma determinada propriedade; e em geral supe-se que no temos conhecimento do mesmo objeto mediante conhecimento direto. Sabemos que o homem da mscara de ferro existiu, e conhecemos muitas proposies a seu respeito; mas no sabemos quem ele era. Sabemos que o candidato que obtiver a maioria dos votos ser eleito, e neste caso muito provvel que temos um conhecimento direto (no nico sentido em que algum pode conhecer diretamente um outro) do homem que , na realidade, o candidato que obter mais votos; mas no sabemos qual dos candidatos ele , ou seja, no conhecemos nenhuma proposio da forma A o candidato que obter a maioria dos votos, onde A o nome de um dos candidatos. Diremos que temos conhecimento meramente descritivo disto ou daquilo quando, embora saibamos que isto ou aquilo existe, e embora possamos ter um conhecimento direto do objeto que, de fato, isto ou aquilo, contudo, no conhecemos qualquer proposio da forma a isto ou aquilo, onde a seja alguma coisa da qual tenhamos um conhecimento direto. Quando dizemos que isto ou aquilo existe, queremos dizer que h justamente um objeto que isto ou aquilo. A proposio a isto ou aquilo significa que a tem a propriedade isto ou aquilo, e que nada mais a tem. O Sr. A o candidato unionista por esta circunscrio significa O Sr. A, e nenhum outro, o candidato unionista por esta circunscrio. O candidato unionista por esta circunscrio existe significa que algum o candidato unionista por esta circunscrio, e ningum mais seno ele. Assim, quando temos um conhecimento direto do objeto que isto ou aquilo, sabemos que isto ou aquilo existe; mas podemos saber que isto ou aquilo existe sem ter um conhecimento direto de um objeto que sabemos ser isto ou aquilo, e at mesmo sem ter um conhecimento direto de um objeto que seja, de fato, isto ou aquilo.

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  • Os problemas da filosofia

    Os nomes comuns, e tambm os nomes prprios, so geralmente verdadeiras descries. Ou seja, o pensamento que est na mente de uma pessoa que emprega corretamente um nome prprio no pode ser expresso explicitamente se no substituirmos o nome prprio por uma descrio. Alm disso, a descrio necessria para expressar o pensamento variar de pessoa para pessoa, ou para a prpria pessoa em pocas diferentes. A nica coisa constante (na medida em que o nome empregado corretamente) o objeto ao qual se aplica o nome. Mas, na medida em que este permanece constante, a descrio particular envolvida em geral no distingue a verdade ou falsidade da proposio em que o nome aparece. Tomemos alguns exemplos. Suponhamos alguma afirmao referente Bismarck. Admitindo que haja algo como o conhecimento direto de si mesmo, o prprio Bismarck poderia ter empregado seu nome diretamente para designar a pessoa particular da qual tinha conhecimento direto. Neste caso, se enunciasse um juzo sobre si mesmo, ele mesmo poderia ser um elemento constitutivo do juzo. Aqui o nome prprio tem o uso direto que sempre pretende ter; representa simplesmente certo objeto, e no uma descrio do objeto. Mas se uma pessoa que conhecia Bismarck enuncia um juzo sobre ele, o caso diferente. O que esta pessoa conhecia diretamente era certos dados dos sentidos que associava (suponhamos que corretamente) com o corpo de Bismarck. Seu corpo, como objeto fsico, e ainda mais sua mente, eram conhecidos apenas como o corpo e a mente associados a estes dados dos sentidos. Ou seja, eram conhecidos por descrio. Evidentemente, muito mais uma questo de probabilidade quais caractersticas da aparncia de um homem se apresentaro mente de um amigo quando este pensa nele; assim, a descrio que se apresenta realmente na mente do amigo acidental. O ponto essencial que ele sabe que as vrias descries se aplicam todas mesma entidade, apesar de no ter conhecimento direto da entidade em questo. Quando ns, que no conhecemos Bismarck, enunciamos um juzo sobre ele, a descrio em nossas mentes ser provavelmente uma massa mais ou menos vaga de conhecimentos histricos muito mais, em muitos casos, do que necessrio para identific-lo. Mas, a ttulo de exemplo, suponhamos que pensamos nele como o primeiro chanceler do Imprio germnico. Aqui todas as palavras so abstratas, exceto germnico. A palavra germnico", por sua vez, tem diferentes

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    sentidos para diferentes pessoas. Para alguns ela evocar suas viagens Alemanha, para outros a forma da Alemanha no mapa, e assim por diante. Mas se quisermos obter uma descrio que sabemos que se pode aplicar, nos veremos obrigados, em algum momento, a fazer uma referncia a algum objeto particular do qual temos um conhecimento direto. Esta referncia envolvida em toda meno do passado, do presente e do futuro (como opostos a datas definidas), ou, s vezes, do que outros nos disseram. Assim, pareceria que, de uma maneira ou outra, uma descrio que sabemos ser aplicvel a algo particular deve implicar alguma referncia a um particular do qual temos um conhecimento direto, se quisermos que nosso conhecimento sobre a coisa descrita no seja considerado meramente o que se segue logicamente da descrio. Por exemplo, o mais velho dos homens uma descrio que contm s universais, a qual deve aplicar-se a algum homem, mas no podemos enunciar juzos sobre este homem que envolvam o conhecimento sobre ele para alm do que a descrio nos d. Entretanto, se dissermos: O primeiro chanceler do Imprio germnico foi um diplomata astucioso, no podemos estar seguros da verdade de nosso juzo seno em virtude de algo do qual tenhamos um conhecimento direto em geral um testemunho ouvido ou lido. Independentemente da informao que transmitimos aos demais, independentemente do fato que se refere ao Bismarck real, o que d autoridade a nosso juzo, o pensamento que realmente temos contm implcitos um ou mais elementos particulares, e, por outro lado, consiste inteiramente de conceitos. Todos os nomes de lugares Londres, Inglaterra, Europa, a Terra, o Sistema solar implicam igualmente, quando os empregamos, descries que repousam em um ou mais elementos particulares dos quais temos um conhecimento direto. Suspeito que inclusive o Universo, tal como o consideram os metafsicos, envolve uma conexo com algo particular. A lgica, ao contrrio, que no est interessada meramente com o que existe, mas com tudo o que poderia existir ou ser, no envolve nenhuma referncia a elementos particulares efetivos. Parece que quando enunciamos um juzo sobre alguma coisa que conhecemos apenas por descrio, pretendemos frequentemente enunciar o nosso juzo, no na forma que envolve a descrio, mas sobre o objeto real que descrevemos. Ou seja, quando dizemos alguma coisa sobre Bismarck, queremos, se possvel, enunciar o juzo tal como

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    apenas Bismarck o pode fazer, ou seja, um juzo do qual ele mesmo um elemento constituinte. Nisso necessariamente fracassamos, visto que o verdadeiro Bismarck nos desconhecido. Mas sabemos que existe um objeto B, denominado Bismarck, e que B foi um diplomata astucioso. Podemos assim descrever a proposio que gostaramos de afirmar, desta forma: B foi um diplomata astucioso, na qual B representa o objeto que era Bismarck. Se descrevemos Bismarck como o primeiro Chanceler do Imprio Germnico, a proposio que queremos afirmar pode ser descrita como a proposio que afirma, sobre o verdadeiro objeto que foi o primeiro Chanceler do Imprio Germnico, que este objeto foi um diplomata astucioso. O que permite que nos entendamos, apesar das vrias descries que empregamos, que sabemos que existe uma proposio verdadeira sobre o Bismarck real, e que, apesar das vrias descries (na medida em que a descrio for correta) a proposio descrita ainda a mesma. Esta proposio, descrita e conhecida como verdadeira, o que nos interessa; mas no temos um conhecimento direto da prpria proposio, e no a conhecemos, embora saibamos que ela verdadeira. Vimos que h vrios estgios mediante os quais nos distanciamos do conhecimento direto dos objetos particulares: h um Bismarck para as pessoas que o conheceram; um Bismarck para aquelas que o conhecem apenas atravs da histria; o homem da mscara de ferro; o mais velho dos homens. Estes so graus progressivamente mais distantes do conhecimento direto dos particulares; os primeiros esto to prximos do conhecimento direto quanto possvel em relao outra pessoa; no segundo podemos dizer ainda que sabemos quem era Bismarck; no terceiro, no sabemos quem era o homem da mscara de ferro, embora possamos conhecer muitas proposies referentes a ele que no podem ser logicamente deduzidas do fato de que ele usava uma mscara de ferro; no quarto caso, finalmente, nada sabemos alm do que pode ser logicamente deduzido da definio desse homem. H uma hierarquia similar no mbito dos universais. Conhecemos muitos universais, assim como muitos particulares, apenas por descrio. Mas aqui, como no caso dos particulares, o conhecimento relativo ao que conhecido por descrio pode, em ltima instncia, ser reduzido ao conhecimento relativo ao que conhecido diretamente. O princpio fundamental na anlise das proposies que contm descries este: Toda proposio que podemos entender deve

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    ser composta inteiramente de elementos dos quais temos um conhecimento direto. No tentaremos nesta altura responder a todas as objees que poderiam ser levantadas contra este princpio fundamental. No momento, indicaremos apenas que, de uma maneira ou de outra, deve ser possvel se opor a estas objees, pois difcil conceber que possamos enunciar um juzo ou fazer uma suposio se no conhecemos aquilo sobre o qual julgamos ou fazemos a suposio. Se quisermos falar de modo significativo e no emitir meros rudos, devemos atribuir algum sentido s palavras que usamos; e o sentido que atribumos nossas palavras deve ser algo do qual tenhamos um conhecimento direto. Assim, por exemplo, quando fazemos uma afirmao sobre Jlio Csar, claro que o prprio Julio Csar no est presente nossa mente, visto que no temos um conhecimento direto dele. Temos em mente alguma descrio de Jlio Csar: o homem que foi assassinado nos idos de maro, o fundador do Imprio Romano, ou, simplesmente, o homem cujo nome era Jlio Csar. (Nesta ltima descrio, Jlio Csar um rudo ou imagem da qual temos um conhecimento direto). Assim, nossa afirmao no significa exatamente o que parece significar, mas significa alguma coisa que envolve, no lugar de Jlio Csar, alguma descrio dele, composta inteiramente de particulares e de universais, dos quais temos um conhecimento direto A principal importncia do conhecimento por descrio que ele nos permite ir alm dos limites de nossa experincia privada. Apesar do fato de que no podemos conhecer verdades que no sejam compostas exclusivamente de termos que tenhamos experimentado por conhecimento direto, podemos, contudo, ter conhecimento por descrio de coisas das quais nunca tivemos experincias. Em vista do mbito muito limitado de nossa experincia imediata, este resultado vital, e enquanto no for compreendido, boa parte de nosso conhecimento deve permanecer misteriosa e, portanto, incerta.

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  • Captulo 6 Sobre a induo

    Em quase toda a nossa discusso anterior