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Corpo para pensar o Cristianismo, Cristianismo para
pensar o corpo
Este capítulo conclusivo tem por objetivo ressaltar o corajoso
posicionamento dos autores, Adolphé Gesché e Alfonso Garcia Rubio, no
caminho da devida valorização da corporeidade como dimensão fundamental do
ser humano. O corpo posto sob suspeita ao longo da caminhada histórica da igreja
cristã, também não foi devidamente valorizado pela sociedade, no mesmo
percurso. Na visão dos autores, a reflexão teológica cristã tem diante de si o
desafio da abertura-diálogo com a contemporaneidade, e se propõe a falar aos que
creem e aos que não creem.
Na primeira parte, apresenta-se o dificultoso percurso para a necessária
valorização do corpo. Há de se ter o cuidado de não descambar para uma idolatria,
que é expressa na concepção de lidar com o corpo como finalidade em si mesmo.
Caminho para reducionismos que não resultam em uma vivência integral das
dimensões humanas.
A segunda parte salienta a importância da Gaudium et Spes na afirmação da
dignidade e valor do corpo humano. É muito positiva a corajosa disposição do
Concílio Vaticano II, salientada aqui, na carta pastoral, que sopra novo fôlego e
disposição, a tomada de posição da igreja cristã.
A terceira parte salienta o tema da espiritualidade cristã como lugar de uma
vida integral e integrada, onde as realidades concretas e históricas possam ser
devidamente vividas e enfrentadas. A dificuldade que se deu com o corpo,
sobretudo no protestantismo, trouxe implicações diretas a uma compreensão de
espiritualidade bastante verticalizada, que perde de vista o ser humano concreto.
A quarta e última parte, propõe olhar para a questão da sexualidade humana,
que sempre foi problemática na vivência das comunidades cristãs e na sociedade
em geral. O ser humano é corpo sexuado. É desde modo que precisa integrar-se no
todo da vida. Contudo, por conta da dificuldade com o corpo, a questão da
sexualidade sempre foi controverso, periférico, perigoso e negligenciado. A
reflexão teológica e pastoral tem compromisso de enfrentar tais dificuldades na
direção de uma verdadeira integração humana, rica de significados e afetividade.
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5.1
Necessária valorização do corpo sem idolatrá-lo
Gesché elucida que a Teologia tem uma função ad intra, e outra ad extra.
Isto é, presta seu serviço ora para os que creem, lhes mostrando o que significa a
fé, ora em favor dos que não creem, quando mostra a pertinência do discurso
teológico como discurso humano, inscrito entre todos os outros discursos.
Seguindo esta intuição, a corporeidade se insere como temática importante e
ponto de interseção às duas direções. A reflexão teológica propõe a partir do
corpo, iluminar dificuldades e pensar o cristianismo, “corpo para pensar o
cristianismo”, como afirma Gesché. E assim, o cristianismo, desafiado pela
pesada crítica que se lhe impôs, imbuído do desejo sincero de diálogo, pode
pensar a corporeidade na sociedade contemporânea. “cristianismo para pensar o
corpo”.1
As principais críticas da sociedade ocidental contra o cristianismo ocidental
recaíram, sobretudo, na questão do corpo. E não foi sem razão tal crítica. A
própria teologia cristã reconhece a situação paradoxal que vivencia a igreja: por
um lado o corpo é central à teologia e fé cristãs. Além de mencionar o alto valor
que o corpo ocupa no propósito da criação, homem e mulher criados, sexuados,
impulsionados ao encontro pessoal concretizado em uma relação sexuada. É
central o lugar do corpo na encarnação do Filho, sua vida, morte e ressurreição.
Corpo que se faz vida, alimento, pela Eucaristia, corpo do outro, como corpo de
Cristo. Expressão que serve como fundamento para descrever tantas outras
realidades, como a Igreja, corpo de Cristo, corpo místico. 2
Contudo, tal importância contrasta com a experiência histórica cristã de
dificuldade em relação ao corpo. Sem negá-lo, pesou sobre ele profunda
desconfiança e suspeita como dimensão humana que tende ao mal e ao pecado,
parte inferior do ser humano, em detrimento da alma, dimensão mais nobre.
Compreensão que nos vem desde os primórdios da organização teológica e
eclesial cristã, juízo de valor visto nos escritos do importante Doutor da igreja
1 GESCHÉ, Adolphé. A invenção cristã do corpo. In: GESCHÉ, Adolphé. SCOLAS, Paul (org.).
O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p.63. 2 Cf. RIBEIRO, Lúcia. Corporeidade como desafio teológico na América Latina. In:
SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. Corporeidade e teologia. São
Paulo: Paulinas, 2004. p. 265.
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Santo Agostinho de Hipona “o homem não é nem só corpo nem só alma, mas um
composto de corpo e de alma. É certamente verdade que a alma não é o homem
todo, mas sua melhor parte; nem o corpo é o homem todo, mas sua parte inferior:
são os dois reunidos que merecem o nome de homem”3
Garcia Rubio concorda com Gesché quando este afirma que a questão da
corporeidade levou a teologia a uma função ad intra, em relação a fé cristã. A
pesada crítica que a igreja moderna recebeu, forneceu, também, chaves de leituras
que a fizeram revisitar seu fundamento teológico, bem como sua prática pastoral,
não somente no intuito de defender-se, mas de repensar a questão do corpo e os
desafios oriundos desta compreensão. Pode ser dito que a questão do corpo,
duramente posta, foi instrumento para pensar o cristianismo.
O professor Rubio chama a atenção de que muito há por ser feito na direção
da devida valorização e superação do medo do corpo. Esta é uma questão que
merece destaque na visão dos dois autores. Ambos afirmam a importância
fundamental de uma visão do ser humano que não negligencie o corpo como
dimensão fundamental.
A expressão “medo do corpo” encontra-se registrada nos escritos do Prof.
Garcia Rubio. No capítulo 3 desta pesquisa tratamos tal questão, quando
salientamos, que o medo do corpo gerou uma visão pejorativa da sexualidade
humana, que foi encoberta, rejeitada, negada, desprezada, ao longo da história
cristã. Questão que é diretamente relacionada ao dualismo antropológico que
penetrou na teologia cristã, aliado a visão racionalista moderna, e gerou forte
ruptura e desconfiança. A razão foi posta como elemento prevalente em
detrimento da dimensão afetiva. As paixões, e mais especificamente, as paixões
sexuais, serão vistas como irracionais, ilógicas e irrefreadas. “Para a razão ser
senhora, a paixão precisa ser dominada”4 A fé eclesial não se calou.
Fundamentada na teologia da criação, pode-se afirmar positivamente a
sexualidade. O ser humano, criado por Deus, como ser sexuado, participa
inteiramente da bondade da criação.5
Consciência de si próprio como corporeidade é fundamentalmente
importante, para Garcia Rubio. Corpo é lugar de abertura, de relação, e de uma
3 AGOSTINHO, XIII, 24, 2. A Cidade de Deus. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 2. 4 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Evangelização e maturidade afetiva. 3ª ed. São Paulo:
Paulinas, 2006, p. 102. 5 Cf. Ibid. p. 103.
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interioridade embebida em afetividade, e não de exterioridade vazia. Por isto a
desvalorização do corpo redundará em mutilação de toda expressividade e
comunicação afetivas.6
Tal perspectiva é extremamente importante para a caminhada da fé cristã,
não somente católica, mas também protestante. A rejeição ao corpo está no
substrato da mentalidade protestante brasileira. Na análise feita por Filho, que diz
respeito ao protestantismo brasileiro, mais precisamente até fins do século
passado, o protestante é mais conhecido não pelo que é, mas pelo que não fazem:
não fumam, não bebem, não dançam, não têm vida sexual extramatrimonial, não
se vestem de acordo com a moda. As igrejas protestantes brasileiras, surgidas do
movimento missionário do século XIX, principalmente norte-americano,
identificam a conversão ao evangelho como rejeição da cultura e adoção de outros
padrões culturais, mantidos por forte vigilância comunitária e disciplina
congregacional. Dizer “sim” a Deus implica e dizer “não” à cultura e a diversos
aspectos da vida. O maniqueísmo e dualismo, cisão ética entre o mundano e o
sagrado, ditou os rumos das categorizações e escolhas no mundo protestante. Um
mundo cindido pelo pecado que agora coloca de lados opostos Deus e o ser
humano, o espiritual e o carnal, o sagrado e profano, o imaterial e o material.
Uma das consequências desta ruptura foi a separação entre as esferas do sagrado e
do profano, espiritual e material, do bem e do mal, do paraíso e do mundo.
Enquanto Deus permaneceu na esfera do sagrado, do espiritual, do bem e do
paraíso, o ser humano passou a viver na esfera do profano, do material, do mal e do
mundo. Para que o ser humano volte à esfera a que ele renunciou voluntariamente
pelo pecado é necessário que abandone a vida e os valores da esfera em que vive e
nasça de novo para Deus através do arrependimento e da conversão, a regeneração,
bem como reestruture sua vida e valores (santificação) tendo como modelo a esfera
que Deus habita.7
O apóstolo João combateu firmemente a heresia gnóstica que pregava a
sublimidade do Espírito, em contraposição à depravação da carne. Negavam com
isso a humanidade de Jesus, já que esta se dá no corpo, portanto, na carne.
Caríssimos, não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de
Deus, porque muitos falsos profetas se levantaram no mundo. Nisto se reconhece o
6 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 100. 7 FILHO, Prócoro Velasques. “Sim a Deus e “não” à vida: conversão e disciplina no
protestantismo brasileiro. In: MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques.
Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p.218.
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Espírito de Deus: todo espírito que proclama que Jesus Cristo se encarnou é de
Deus; todo espírito que não proclama Jesus esse não é de Deus, mas é o espírito do
Anticristo de cuja vinda tendes ouvido, e já está agora no mundo.8
Como já foi dito, as experiências fundamentais do Cristianismo deram-se na
carne, no corpo: o nascimento, a morte e a ressurreição de Cristo. Portanto é de se
concluir que a Bíblia não apoia a dicotomia entre corpo e alma. Quando a Bíblia
fala do espírito oposto à carne, ela refere-se ao perigo da carnalidade que é o
pendor para pecado visto na pessoa humana inteira que se fecha ao dom de Deus.
Isto é, que se faz indiferente ao convite amoroso e a relação vital, ofertados por
Deus. Fechamento que resulta em isolamento, egoísmo e morte do humano.
Os autores, Garcia Rubio e Gesché, têm o cuidado de salientar que a devida
valorização do corpo precisa ser afirmada, explicitada e fundamentada dentro de
uma visão integrada do ser humano. Para Garcia Rubio, o corpo deve ser
valorizado e cuidado, pois faz parte da perfeição do ser humano. A pessoa humana
é “espírito-na-corporeidade”. O corpo humano concreto, lugar da diferenciação
homem-mulher, é também onde se dá encontro-relação com as outras pessoas,
com mundo e com Deus.9
Garcia Rubio, contudo, chama a atenção, mais uma vez para o cuidado que
se deva ter com a reversão dialética que desempenha papel desumanizante, pois
no esforço de revalorizar o corpo, no cultivo do espírito à custa da corporeidade,
houve na sociedade a passagem da supervalorização do corpo em detrimento do
espírito.10
É benéfica e muito positiva toda mudança de postura em relação ao corpo
ocorrida nas ultimas décadas. O devido cuidado com o corpo, inclusive no seio
das comunidades cristãs, reflete uma nova maneira de pensar. Se é pelo corpo que
vivemos, cuidar bem do corpo, é cuidar de si. Todo o ser está envolvido nesta
tomada de consciência e atitude. O caminho que a fé cristã lança sobre tal
compromisso é que o cuidado de si, debaixo da compreensão do que seja a pessoa
humana concreta, deveria redundar no cuidado com os outros, com o mundo
“nossa casa comum”11 e com Deus.
8 I João 4,1-3. 9 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva , p. 100. 10 Cf. Ibid. 11 “Sobre o cuidado da casa comum”, expressão que dá título a Encíclica do Papa Francisco,
Laudato Si (Louvado Seja, sobre o cuidado da casa comum). É uma crítica ao consumismo e ao
desenvolvimento irresponsável de todo processo industrial.
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Esta é a crítica que os autores fazem sobre a reversão que se deu na
sociedade e o novo lugar do corpo. A necessária valorização, vista no cultivo e
cuidado do corpo descambou-se à sua hipervalorização12, a sua idolatria.
É naturalmente benéfica a preocupação crescente com a qualidade de vida e
saúde. Modalidades as mais variadas de esportes, ginástica, práticas meditativas,
etc. Somando-se a isto, todo esforço de uma indústria do rejuvenescimento,
cosméticos, cirurgias plásticas, diversos e inovadores tratamentos, e etc. A
preocupação em relação ao equilíbrio corpóreo-emocional, o cuidado
desenvolvido na busca de combater o estresse e harmonizar melhor a mente e o
corpo, razão e emoções e sentimentos. Para Garcia Rubio, todas estas orientações
trazem benefícios, pois se movem na direção de uma melhor integração entre a
espiritualidade e a corporeidade. A valorização sadia do corpo, importa cuidado
adequado do mesmo. 13
A deturpação desumanizante se deu quando, ao invés de valorização do
sujeito integral, o corpo foi visto como finalidade em si mesmo. Passou-se do
corpo ocultado ao corpo idolatrado, visão incentivada pela voracidade consumista,
comercial e midiática que se alastrou na sociedade urbana, em todas as faixas
etárias e não somente entre os jovens, como propõe professor Rubio.14
Tais reversões que não integram realidades fundamentais do ser humano,
somente lhes opõe, não operam verdadeira transformação e perpetuam maiores
violências.
A corporeidade é uma dimensão a ser integrada na globalidade de dimensões que é
o ser pessoal. O cuidado e a preocupação com o corpo devem estar a serviço do
projeto pessoal de vida. A acentuação unilateral do valor da corporeidade
empobrece e mutila o ser humano tanto quanto a acentuação unilateral do valor da
dimensão espiritual.15
Por isto, Gesché propõe, ousadamente, importante lugar social para a
teologia cristã. Sem arrogância e também sem receios, e acolhendo a crítica
oriunda da sociedade sobre a questão da corporeidade, pode, agora, falar ela
mesma, a esta sociedade sobre o ser humano, que é corpo. A teologia pode ser
caminho para mostrar a todos os seres humanos, o modo de aprender a
12 Cf. Michel Mafesolli 13 Cf. RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 101. 14 Cf. Ibid. 15 Cf. Ibid..
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compreender a si mesmos e as coisas, na compreensão do seu próprio corpo. “A
voz da teologia pode ter sua relevância que transpõe o intra muros”. A este
movimento Gesché chamará de “a invenção cristã do corpo.”16
Para Gesché, a escritura cristã também fala de um excesso, mas de um
excesso positivo. Apresenta-nos um Deus que toma a carne que é nossa, para Si; o
corpo do ser humano, que também é corpo de Deus; o corpo do próximo que se
identifica com o corpo de Cristo, e com o corpo próprio de cada um de nós; um
corpo que vence a morte, corpo que aguarda seu destino escatológico. Todo este
excesso faz-nos entender a grandeza do corpo. É a partir deste excesso que Deus
se revela e revela quem seja o ser humano. Toda esta novidade dá ao corpo lugar
de inigualável valorização. 17
Mas toda devida valorização que se dá ao corpo, somente é possível, sem
desconsiderar o que é o ser humano, como pessoa relacional. Sem a perspectiva
da relação, a valorização do corpo descamba para um exagero. Para Gesché, este é
o erro visto nas intenções publicitárias, em todos os sonhos de beleza dissimulada.
O corpo concebido de forma isolada, perdido em sua exasperação, sem outra
finalidade que ele mesmo, torna-se idolatrado. Obcecado por si mesmo, visto na
busca da perfeição estética, desligado de tudo, e profundamente
desresponsabilizado de tudo, o corpo torna-se, não o lugar do humano, mas o
lugar do desumano. 18
Pois que, precisamente, essa relevância do discurso teológico encontra seu sentido
e seu lugar hoje particularmente naquilo que eu chamaria de restituição ou
reconstrução, a restauração do corpo. Sim, o corpo é engrandecido hoje (o esporte
amador [o único que merece o nome de esporte], a liberdade das roupas, o cuidado
da saúde, etc.), é o que se fala e se mostra por toda parte, e existe ai um
extraordinário avanço relativamente a tempos de absurdo escondimento, cujas
consequências deploráveis são bem conhecidas. Isso não impede, não significa
resmungar, mas reconhecer que o novo discurso e as novas imagens criadas podem
também, muitas vezes, ou às vezes, aviltar o corpo.19
Gesché vai afirmar que o tipo de valorização que a sociedade pensa ter
sobre o corpo, construiu uma determinada idolatria ao corpo, e toda idolatria é
escravizante e violenta. A Fé cristã enxerga a possibilidade do corpo, não
idolatrado, mas consagrado “eis o meu corpo para ti”, consagrado à vida. Nunca
16 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo. p. 73. 17 Cf. Ibid. p. 74. 18 Cf. Ibid. p. 75. 19 Cf.Ibid.
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fechado em si mesmo. Esta é a função que a teologia cristã se propõe, no diálogo
com os outros saberes: há na compreensão do corpo uma verdadeira manifestação
de nosso ser e do ser de Deus. O cristianismo constitui uma verdadeira
fenomenologia teológica do corpo.
Se dessa forma a teologia tem seu ponto de partida em Deus, é também a partir de
Deus que ela se torna uma fenomenologia do homem. É verdadeiramente em meu
corpo, no corpo do meu próximo, que vemos, para quem assim o desejar,
manifestado, demonstrado, revelado aquilo que somos. E não em outro lugar, nem
(ainda que tal não seja falso): cogito ergo sum, mas sim “corpus autem aptasti
mihi”) recebemos um corpo para que apareça aquilo que somos.20
E desta forma, o corpo se torna inteligível ao modo de compreender da
sociedade atual.
5.2
Corporeidade na Gaudium et Spes: sua importância ecumênica para
a reflexão teológica sobre o corpo
Segundo Garcia Rubio, a mesma atitude predominante de abertura-diálogo
ao logos filosófico na Patrística serviu como paradigma a ação histórica da igreja
no enfrentamento da racionalidade moderna. Processo atribulado e tenso que
desembocou no Concílio Vaticano II, sobretudo na Gaudium et Spes. Crise que
adentra o século XXI e que ainda demanda respostas e tomada de posição por
parte na Igreja contemporânea. Muito há para ser realizado.21
A principal crítica que recaiu sobre a mentalidade moderna deveu-se à
violência contra o humano que a racionalidade instrumental impôs. A tão
propalada liberdade, igualdade, autonomia do ser humano, deu lugar, na
modernidade tardia, a uma situação epocal compreendida como “absurda”, em
relação à perda de sentido para a vida humana.22
“...pois sobre a máscara do esclarecimento e da liberdade, na verdade, o que é
marca característica de nossa epocalidade é a experiência da perda de sentido da
vida, através da institucionalização e concretização de uma razão que é antes
20 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 77. 21 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. O ser humano à luz da fé cristã e a racionalidade moderna.
Belo Horizonte -MG, Perspectiva Teológica, v. XXII, n.56, p. 31-53, 1990. 22 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araujo. A crise da racionalidade moderna: uma crise de esperança.
Síntese Nova Fase, v. 45, 1989, p.14
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desrazão perversa, instrumental, não somente dominando a natureza e os homens,
mas ameaçando a própria vida humana em sua sobrevivência.23
Hoje é possível perceber as deficiências e até os graves erros da
modernidade. Os limites da racionalidade proposta, bem como o abismo existente
entre a expectativa, por ela suscitada, e a realidade histórica que se deu. Contudo,
no entendimento de Garcia, a perversidade não se encontra na racionalidade
instrumental em si, mas em um determinado uso que se fez desta, e que dominou
o processo civilizatório propondo um ser humano dicotomizado em si, fechado,
negador do outro na medida em que é diferente. Dominador, devastador do meio
ambiente.
Mas, nem tudo é tão pessimista assim. Existe outra vertente da racionalidade
moderna que vê o sujeito aberto às relações pessoais nos diferentes níveis e aberto
ao mundo da natureza, em termos não meramente instrumentais.24
...não há dúvida que a abertura-diálogo à racionalidade moderna deve ser hoje
rigorosamente crítica. A racionalidade meramente instrumental, cuja aplicação teve
como resultado a coisificação dos seres humanos (em diversos níveis) e a
destruição do meio ambiente, obviamente, deve ser criticada com todo rigor e
combatida lucidamente na prática cristã. Uma vez que esta racionalidade tem
predominado legalmente, não é infrequente identificar a crítica da racionalidade
instrumental com a crítica da modernidade como tal. (Na obra), a crítica é sempre
dirigida a essa racionalidade unilateral e reducionista. A racionalidade moderna,
contudo, apresenta outros desdobramentos que podem servir de mediação para uma
reflexão teológica situada no contexto moderno.25
Por isso a importância do Concílio Vaticano II, como marca de mudança na
postura da Igreja no enfrentamento destas questões. Grande parte da
fundamentação que levou Garcia Rubio a escrever sua principal obra26 se deu na
esteira deste processo. Na disposição corajosa de diálogo franco e crítico, dado
que o desafio contemporâneo à fé cristã está centrado, sobretudo, na
autocompreensão do ser humano, e como a racionalidade moderna questiona a
vivência das afirmações bíblico-cristãs em relação a este. Tanto em ambientes
23 Cf. OLIVEIRA, A crise da racionalidade moderna, p.14. 24 Cf. GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p. 39. 25 Ibid. p.33. 26 Neste artigo, Alfonso Garcia Rubio refaz o caminho de motivação da escrita de sua principal
obra, Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. Primeira edição no
fim da década de 80. Cf. GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p. 32.
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diretamente influenciados pela modernidade e pela secularização, quanto em
ambientes populares, influenciados de modo diverso dos países desenvolvidos.
É muito positiva a visão e resultado do Concílio. Sem descuidar da
dualidade do ser humano (corpo-alma), o Vaticano II sublinha cuidadosamente
sua a unidade. Em uma posição madura e consciente do efeito negativo do
dualismo, em sua Constituição Pastoral é afirmado: “Não é, portanto, lícito ao
homem desprezar a vida corporal, mas ao contrário, deve estimar e honrar o seu
corpo, porque criado por Deus e destinado à ressurreição no último dia”27
Segundo Garcia Rubio, o documento denuncia e defende vigorosamente o
valor positivo da corporeidade, a condição corporal, sem descuidar da
espiritualidade. O texto conciliar, todavia, não aprofunda de maneira
sistematizada a questão da constituição básica do ser humano.28
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes é o maior documento do Concílio
Vaticano II e o último a ser votado, no último dia do Concílio, em sua última
sessão geral29. Consta de 93 números; é a única constituição pastoral, uma
novidade até então. Foi esta intenção do Papa João XXIII. A igreja deveria
realizar um concílio pastoral, abrir-se em um caminho de diálogo com o mundo,
olhando com muita seriedade para os problemas da época. 30
Traz em si um proêmio de grande beleza que já aponta a intenção de não
falar somente ao coração do cristão católico. Um documento universal, que se põe
em diálogo com todas as gentes: cristãos e não cristãos, religiosos e arreligiosos.
A Igreja, inserida no mundo, não em oposição a ele, não em fuga dele, mas
participante de todas as questões, demonstra seu real interesse no ser humano e
naquilo que é comum ao humano, por obediência e amor a Cristo.
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade
alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.31
27 GS 14 28 GARCIA RUBIO, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão
cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.340. 29 Cf. LOPES, G. Gaudium et Spes: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 9 30 É chamada “Pastoral” porque, apoiando-se em princípios doutrinais, pretende expor as relações
da Igreja com o mundo e os homens de hoje. Assim, nem à primeira parte falta a intenção pastoral,
nem à segunda a doutrinal. Cf. Ibid, p. 44. 31 GS 1
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Em esforço sincero de dialogar com a humanidade, em sua introdução a
Constituição analisa e ilumina a condição do ser humano no mundo de sua época.
O ser humano, a despeito de tudo que tenha conquistado e realizado, e todo
desenvolvimento que as racionalidades suscitaram, está imerso em caudalosa
angústia trazida pelo crescimento da maldade, do egoísmo, da miséria. De
maneira firme, discernindo seu tempo, ainda no século XX, mas com olhar à
frente, propôs-se falar sobre o ser humano a partir de sua concretude. É central o
lugar do humano no documento, uma “virada humanista”. Não um homem
partido, divorciado e em litígio com suas dimensões, mas um ser integral e
integrado.
Em sua primeira parte, de cunho mais doutrinal, o documento nos oferece
uma antropologia teológica, ou pode-se dizer, uma antropologia cristológica
extremamente rica para pensar não somente os aspectos constitutivos do ser
humano, mas sua dignidade como ser criado e o resultado destas compreensões
para a vida.
O Concílio Vaticano II marca uma virada na disposição da Igreja, uma
reformulação de sua linguagem, em uma nova disposição de fazer-se entender em
seu humanismo.32. Diz que o Concílio abriu-se ao mundo moderno. Para o Papa
João XXIII, isto significava uma abertura ao mundo moderno na perspectiva de
participar de um diálogo que exigia sua presença, pois o mundo lançava as
perguntas e esperava respostas. Respostas estas que precisavam tornar-se
acessíveis ao entendimento diante das aspirações do homem moderno.
O Concílio Vaticano II quis ser pastoral no momento em que aceitou a tese oposta
a uma das afirmações do Syllabus de Pio IX. Condenara-se a seguinte proposição:
“O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e fazer amizade com o progresso,
o liberalismo e a civilização moderna”. (DS 2980). Não se tratava da Igreja
reconciliar-se ou fazer amizade de uma maneira subserviente, capitulante, abrindo
mão de sua originalidade e identidade, mas de abertura.33
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes é entendida como o documento
que melhor conseguiu expressar esta abertura, esta reconciliação. A Igreja pode
32 “Em toda história o cristianismo sempre se apresentou como humanismo. O fundamento desta
vocação está em duas afirmações fundamentais do dogma cristão: A encarnação do Verbo de Deus
e a ressurreição do corpo. O Filho de Deus assume a carne, o corpo, e o corpo não é deixado
esquecido, mas redimido participa da realidade salvífica.” JUNGES, J. R. Bioética. Hermenêutica
e casuística. p. 126. 33 LIBANIO, J.B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. p. 68.
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dialogar com todas as gentes em todos os lugares porque a base está na
antropologia apresentada no documento, especialmente em toda primeira parte.
Esta é a riqueza e toda novidade da GS, uma antropologia cristológica. Pois
aponta para o homem, “em sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e
consciência, inteligência e vontade”.34 mas este somente encontra sua
determinação e plenificação em Cristo Jesus.35
A exposição preliminar descrita nos números de 4 a 10 falam da condição
humana. O homem está em um período bem controverso de mudanças. Mudanças
sociais e políticas. Mudanças morais e éticas; época também marcada por grandes
desequilíbrios, desequilíbrios sociais, crescentes níveis de pobreza e miséria, e
acúmulo de riquezas por pequena parcela da população mundial, violência e toda
sorte de questões oriundas disto. Desequilíbrios ecológicos, que também é um
legado do desenvolvimento irrefletido, a exploração desenfreada e predatória dos
recursos naturais.
O documento está dividido em duas grandes partes; a primeira vai dos
números 11 a 45: A Igreja e a Vocação Humana. Está dedicada a mostrar o
interesse da Igreja nos temas atuais e toma por base um ponto de partida
irrenunciável: A Dignidade da Pessoa Humana, dignidade alicerçada na
compreensão da Sagrada Escritura quando ensina que “o homem foi criado à
imagem de Deus”.
A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado «à imagem de Deus», capaz de
conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído senhor de todas as criaturas
terrenas (1), para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus (2). «Que é,
pois, o homem, para que dele te lembres? ou o filho do homem, para que te
preocupes com ele? Fizeste dele pouco menos que um anjo, coroando-o de glória e
de esplendor. Estabeleceste-o sobre a obra de tuas mãos, tudo puseste sob os seus
pés» (Salmo 8, 5-7).
Deus, porém, não criou o homem sozinho: desde o princípio criou-os «varão e
mulher» (Gén. 1,27); e a sua união constitui a primeira forma de comunhão entre
pessoas. Pois o homem, por sua própria natureza, é um ser social, que não pode
viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros.36
O trecho citado aponta aspectos fundamentais da imagem de Deus no ser
humano: “a capacidade de conhecer e amar a Deus”; “e por este constituído
34 GS 3. 35 Cf. COSTA, P. C. A determinação cristológica do ser humano. Atualidade Teologica, n. 39
(setembro a dezembro/2011), p. 503-511. 36 GS 12.
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senhor de todas as criaturas terrenas (1), para as dominar e delas se servir, dando
glória a Deus de ser senhor sobre todas as coisas e de viver em comunhão com os
outros”. Neste entendimento, esta imagem não é somente um dado, mas aponta
para o projeto de Deus para a vida humana, um jeito de viver. A imagem de Deus
refletida no homem configura-se também como dinamismo que abre o ser humano
para três relações: com Deus, com o outro e com o mundo. “Nessas relações
efetiva-se sua vocação: entrar em comunhão com Deus, com o outro e com
mundo. A dignidade humana consiste nesta efetivação.”
A pessoa humana em sua unidade e integralidade é a base de toda exposição
deste documento. A imagem de Deus realiza-se em uma unidade, “ser uno”, numa
estrutura corpóreo-espiritual “corpo e alma”. Dimensões que precisam ser trazidas
em completa harmonização e consciência. Não deve desprezar a vida corporal, ao
contrário, deve dignificá-la, pois seu corpo é bom, dádiva maravilhosa de Deus,
mas o homem não se encerra no corpo somente. Percebe-se superior às coisas
materiais.
Contudo, longe de idealizar o homem e sua saga histórica, a Igreja também
lhe aponta os motivos de desagregação de si mesmo, do rompimento brusco de
suas relações e uma determinada opção pela violência, poder e enfrentamentos. O
pecado, como opção de autonomia estéril do homem em relação a Deus, acaba por
encarcerá-lo em processo de não-realização de si mesmo, de desumanização até a
morte. 37 “O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E, assim, toda a
vida humana, quer singular, quer coletiva, apresenta-se como uma luta dramática
entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas.”38
O ser humano, criado para encontrar sua plena realização na acolhida
amorosa do Criador, experimenta as “revoltas do corpo”, isto porque é pelo seu
corpo que vive e nele experimenta as dores e angústias históricas consequência do
seu descaminho. Apesar disto, deve antes considerar “o seu corpo como bom e
digno de respeito, pois foi criado por Deus e há de ressuscitar no último dia.”39
Por isso, a contribuição mais importante e original do Concílio para a
antropologia teológica é a revelação do Cristo. Nele se esclarece o mistério do
homem.
37 Cf. GS n. 13. 38 GS n. 13. 39 Cf. GS 14.
133
Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o
mistério do homem. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura daquele
futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do
mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua
vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham
nele a sua fonte e nele atinjam a plenitude. Imagem de Deus invisível (Col. 1,15)
Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão semelhança divina,
deformada desde o primeiro pecado. Já que, nEle, a natureza humana foi assumida,
e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime
dignidade.40
Não é sem propósito que na compreensão que expressaram, nossos autores
deram eco à cristologia afirmada pelo Concílio. Cristo é o revelador de Deus, e é
o revelador do ser humano. Nos quatro capítulos da primeira parte, os números
finais apontam sempre a presença do Cristo na trajetória humana, não como
alguém que vem de fora e completamente deslocado do sentido de existência
humana, mas como Verbo que se fez carne, Cristo, homem novo. (números 22,
32, 39, 45). Nestes números pode-se identificar traços fundamentais de uma
Cristologia Conciliar: O mistério do homem à luz de Cristo. O ser humano sem
Deus não tem sentido. Uma linguagem antropológica cristológica, isto é, uma
antropologia que tem em seu centro e seu cume na imagem de Cristo. É esta
antropologia que vai permitir à Igreja dialogar com qualquer pessoa, não importa
sua condição e sua fé. Cristo é apresentado como ápice da experiência e condição
humana.
O professor Garcia afirma:
“A teologia é um discurso acerca de Deus e, simultaneamente, é um discurso sobre
o ser humano. A teo-logia é também antropo-logia. Mas a antropologia teológica -
trata do ser humano à luz da revelação bíblico-cristã, lida e interpretada na Igreja.
Dessa revelação, emerge uma visão do ser humano extremamente rica e capaz de
cativar. Uma visão em que o caráter pessoal do ser humano ocupa lugar
fundamental, constituindo o alicerce de todas as outras dimensões e aspectos do
humano.41
Na Reflexão teológica, é Cristo quem plenifica toda compreensão sobre o
ser humano. Gesché afirma que é em Cristo que tal relação é plenamente
conhecida e possível. Nos propõe uma cristologia como teologia e como
40 GS 22. 41 Cf. RUBIO, Alfonso Garcia. (Org.). O Humano Integrado: abordagens de antropologia
teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 261.
134
antropologia. O lugar de Cristo é central na fé cristã.42 Verdade plenamente
conhecida e aceita. Como seria possível falar de cristologia sem Cristo? Mas
Gesché afirma que é possível. E é justamente este o erro que se incorre muitas
vezes. No afã de afirmar a centralidade de Cristo, descamba-se para um
cristocentrismo na teologia, isto é, falar da pessoa e natureza de Cristo,
esquecendo-se ou encobrindo-se aquilo que Cristo veio revelar. “Ora, é
justamente uma resposta a nossas prementes questões sobre Deus e sobre o ser
humano que Cristo nos propõe e por causa da qual se encontra no centro da nossa
fé. A cristologia tem por dever ser teologia e antropologia antes de ser
cristologia.”43
A partir de Cristo, nosso chamado é também para vida, levando em
consideração os dilemas e enfrentamentos no corpo, seremos aperfeiçoados nEle,
seguindo seus passos em vida e na morte. Como Ele é, também o seremos. Esta
compreensão é um dos pontos mais fascinantes, pois enxerga um ser humano
concreto, que participa da relação com Deus com seu corpo, suas inquietações,
suas pulsões, seus agravantes. Neste processo de lidar com seus próprios limites e
dificuldades no esforço significativo de desvencilhar-se do que não é útil, vai
sendo transformado na imagem de Cristo, filho de Deus, Senhor nosso.
Se o corpo, como definem nossos autores, é a própria pessoa humana,
marcada pelo limite de sua condição de criatura e chamada ao encontro
fundamental do outro, é exatamente pela maravilhosa novidade da afirmação de
um Deus que busca o encontro e para tal assume a carne que se dá toda
possibilidade de relação. Uma perspectiva antropológica que, ao invés de gerar o
afastamento da Igreja em relação à sociedade, serve de motriz evangelizadora, e
lugar de abertura e diálogo, já que o evangelho sempre se ocupou disso: a
necessidade de comunicar-se aos homens, estivessem estes em qualquer situação,
indo-lhes ao encontro.
42 GESCHÉ, O Cristo, p. 17. 43 Cf. Ibid. p. 18.
135
5.3
Espiritualidade e corporeidade na cativante proposta de Jesus de
Nazaré
Como salientado por Gesché, Jesus Cristo é o fundamento e está no centro
da vida cristã. Outro aspecto bastante relevante da vida cristã muito afetado pela
má compreensão da relação corpo-alma, é a questão da espiritualidade. Sobre tal
dimensão pretendemos falar a seguir.
Apesar do grande avanço da reflexão teológica na autocompreensão do ser
humano, a partir de uma perspectiva bíblico-cristã, segundo professor Rubio, no
pós-concílio constata-se que a igreja ainda tem bom caminho a percorrer na
afirmação da visão integral do ser humano. Certamente no que diz respeito à
espiritualidade cristã e à vivência pastoral das comunidades, resta caminho longo
a ser percorrido. A dificuldade, ainda no âmbito das igrejas, vem da persistência
de reducionismos velhos e novos, empobrecedores humano, orientações
espirituais que desprezavam o corpo, visto como inimigo da vida espiritual,
produzindo oposições-exclusões que afetam aspectos fundamentais da vida.44
Na vivência da espiritualidade cristã, tal dificuldade é ampliada, inclusive,
pela compreensão que se dá ao termo. “Espiritualidade” vem de espírito, o que,
para muitos, é aquilo que se opõe à matéria, ao corpo. Neste caso, a concepção de
espiritualidade está sempre ancorada a uma relação de oposição radical ao que se
dá na dimensão da corporeidade. A espiritualidade é algo que entra em conflito
direto com a vida humana, felicidade humana, com a fruição e o prazer da vida.
Pois quem se dedica a espiritualidade tem de renegar o corpo e tudo que dele
advém.
Professor Garcia chama veemente atenção contra as consequências da visão
dualista. Durante séculos, o desprezo pelo corpo, considerado como inimigo da
vida espiritual criou a falsa compreensão que para desenvolver-se espiritualmente,
fazia-se necessário a superação do corpo com suas tendências e instintos, culpado
pelo pecado e pela desordem existente no ser humano.45
44GARCIA RUBIO, Alfonso. (Org.). O Humano Integrado: abordagens de antropologia
teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 8. 45 GARCIA RUBIO, Alfonso Garcia. Elementos de antropologia teológica. Salvação cristã:
salvos de quê e para quê?. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 2013, p.29.
136
Tal compreensão da espiritualidade afeta decisivamente a maneira de
articular as diversas dimensões ou aspectos que constituem a riqueza da salvação
cristã. Orientações religiosas debaixo de uma visão imediatista, individualista e
egocêntrica que compreendem a salvação de maneira completamente divorciada
da vida que se vive no corpo. É o que se verifica em não poucas igrejas, no Brasil,
uma polarização excludente entre vida de oração, por um lado, e compromisso
político social, por outro. Uma tendência igualmente excludente em acentuar a
vida sobrenatural (vida da graça), em relação à vida humana. A dimensão celeste,
o céu, sendo valorizado unilateralmente, em detrimento da terra, visto no desejo
de fuga desta terra de dores e destinada à destruição.46
Outros aspectos radicalmente afetados por tal mentalidade de oposição-
exclusão são: a realidade da igreja no mundo e a história humana, desvalorizadas
em detrimento da realidade do Reino de Deus. Celebração litúrgica em oposição à
vida cotidiana, sagrado e profano, clero e leigos, etc. As realidades que foram, ao
longo da história, relacionadas à dimensão espiritual, afirmadas unilateralmente e
excludentemente, em relação às realidades relacionadas historicamente com a
dimensão humana.47 Em geral, é esta a compreensão que se tem do significado de
espiritualidade: a busca do espiritual (transcendente), como caminho para superar
as limitações impostas pelas realidades humanas concretas.
Rubio afirma que além de uma tendência profundamente verticalizada,
emerge também uma espiritualidade utilitarista, que concebe a salvação cristã
como solução imediatista e individualista dos problemas cotidianos, que, em
verdade, utiliza a roupagem bíblica para mascarar uma religiosidade a serviço do
capital e da exploração, sempre com forte componente de soluções mágicas para
dilemas humanos. Uma religiosidade da satisfação imediata, moldada pelos
paradigmas do consumo e a serviço de um egoísmo, completamente divorciado da
espiritualidade vista em Jesus de Nazaré.48
Gesché vem afirmar que uma espiritualidade que não leve, seriamente em
conta a vida humana, o corpo, como lugar também da fraqueza e limitações
humanas, por certo, resultará em uma religiosidade assassina. Pois propõe o
caminho da fé, sem levar em consideração a realidade histórica do ser humano,
46 GARCIA RUBIO, Elementos de antropologia teológica, p.30 47 Ibid. 48 GARCIA RUBIO, O Humano Integrado, p. 9.
137
que não é ser perfeito. Que vive na trama da vida os dilemas interiores e
exteriores. Este tipo de espiritualidade tem sua base em uma visão de Deus fixada
em sua “onipotência e impassibilidade absolutamente etérea e mortal para os seres
humanos”. Um Deus completamente distanciado da dor humana, e que se recente
do corpóreo. Tal visão, como já afirmamos, não é tributária das Escrituras e da
compreensão que se tem de Jesus de Nazaré. É concebida pela racionalidade
orgulhosa e arrogante que a modernidade produziu, colocando como opostas
dimensões tão ricas, que precisam ser integradas no todo da vida humana.
Racionalidade que não compreendeu que o Deus onipotente, é também aquele que
experimenta a fraqueza.49
Garcia Rubio compreende que tal visão continua alimentando a
espiritualidade e a visão cristã de muitas igrejas. É um fenômeno
transconfessional. Esta incapacidade de articular de maneira inclusiva dimensões
do humano e da vida cristã, privilegiando unilateralmente uma tendência
espiritualizante, e consequentemente alienante da vida. Esta compreensão se
alinha a percepção de sociólogos, teólogos e historiadores que analisam o
fenômeno do crescimento e comportamento das igrejas cristã protestantes no
Brasil. O cristianismo brasileiro poderia ser, grosso modo, dividido em
cristianismo católico e cristãos não católicos50. Evidentemente, no Brasil o grupo
dos não católicos e cristãos é denominado protestante. A bem da verdade, como já
foi dito no primeiro capítulo da pesquisa, é difícil falar da igreja protestante
brasileira, ou igreja evangélica brasileira.51 A enorme diversidade entre as igrejas
que se afirmam como evangélicas ou protestantes, constitui tal dificuldade.
O que significa que, sendo uma realidade transconfessional, a crítica e as
dificuldades que Garcia Rubio chama atenção como existindo nas comunidades
cristãs católicas, podem, guardados as devidas peculiaridades, ser afirmadas sobre
igrejas protestantes. E segundo autores protestantes, talvez dificuldades maiores
ainda possam existir por conta da fundamentação teológica agostiniana, onde se
vê com mais força a presença de uma visão antropológica dualista platônica, não
superada.
49 Cf. GESCHÉ, Adolphé. A invenção cristã do corpo. In: GESCHÉ, Adolphé. SCOLAS, Paul
(org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p. 49. 50 MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O Protestantismo no Brasil e Suas Encruzilhadas. Revista
USP, São Paulo, v. 67, n.1, p. 48-67, 2005. 51 Os termos protestante e evangélico são usados aqui sem distinção de significado entre eles.
138
O ambiente evangélico brasileiro contemporâneo recebe com muita
veemência a força da presença da uma visão neopentecostal de espiritualidade. Já
na década de 90, Prócoro Velasques Filho, aponta que um fenômeno a ser
observado é o rápido desenvolvimento das ditas “religiões do espírito”, no cenário
eclesiástico brasileiro, ao mesmo tempo que há uma estagnação e até mesmo
declínio do chamado cristianismo tradicional, protestante e católico, que não
conseguem responder a demanda que se instalou na mística popular.
Protestantismo e catolicismo não têm sido capazes de satisfazer a exigência mística
popular. Perderam sua tradicional capacidade de influenciar e mobilizar as massas;
de sustentar com clareza o lugar de Deus no mundo, de promover e animar a
construção de uma nova sociedade. O vazio deixado por esse fracasso vem sendo
crescentemente ocupado pelo que se chama habitualmente “pentecostalismo”, que
o autor prefere designar como “religiões do espírito”.52
É notório que, desde que sua análise foi publicada, o cenário eclesial
brasileiro continua a sofrer transformações. Acrescenta-se a isto que qualquer
análise sobre uma conjuntura tão extensa e complexa, não será unanimidade e terá
possíveis dificuldades. Mas sua descrição dos aspectos das “religiões do espírito”
mostra como uma concepção reducionista do humano permanece subjugando a
visão da espiritualidade e vida cristã.
Em geral, as religiões do espírito, são de orientação carismática protestante
(neopentecostal), e as da renovação carismática católica, guardadas determinadas
distancias entre as duas correntes.
Filho resume as características que distinguem estas religiosidades nas
seguintes ênfases: forte misticismo, evidenciado pelo movimento de “curas
divinas”. Diferentemente do protestantismo tradicional e do pentecostalismo
clássico, com sua ênfase na conversão individual, “as religiões do espírito
dedicam-se à cura, à expulsão de demônios e ao benzimento.” Salvação e cura,
neste caso, são idênticas. E toda enfermidade, males de qualquer ordem são de
origem espiritual, causados por demônios que não podem ser combatidos pela
medicina tradicional. Há um forte traço comercial capitaneado pelo movimento de
massas e pelos exagerados apelos financeiros, motivados pelo oferecimento de
soluções imediatas de problemas de quaisquer ordens. Há também um forte
52, FILHO, Prócoro Velasques. Declínio do cristianismo tradicional e ascensão das religiões do
espírito. In: MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO Prócoro Velasques. Introdução ao
protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p. 249.
139
controle das pessoas, que Filho denomina de “ascendência sobre as massas”.
Através da exploração e exarcebação do emocionalismo em seus ambientes de
culto.53
Filho aponta que nas religiões do espírito, Deus é visto como estranho à
realidade histórica e social. Uma compreensão que decorre da subjetivação do
dualismo tradicional. Deus não atua nas estruturas do mundo, mas somente no
interior das pessoas. Não se relaciona com a história dos povos, sem interesse
positivo na fruição da vida humana – trabalho, lazer, sensualidade, situações de
pobreza, e demais aspectos da vida - mas somente participa da interioridade
humana. 54
Em uma sociedade de consumo, onde a força do chamado capitalismo
selvagem, produz uma legião de excluídos que acabam vitimados por toda sorte
de tragédias sociais, as religiões do espírito servem como fuga da realidade e
lenitivo aos oprimidos. Ao mesmo tempo eliminam todo desejo de luta por
mudanças estruturais sérias. Como o Reino de Deus é uma realidade puramente a-
histórica, existe apenas na interioridade do indivíduo. E como os problemas são
causados por Satanás e pelo pecado, nunca pelas estruturas, a solução somente
pode vir pela luta contra Satanás e pelo forte controle de tudo que possa apontar
para o pecado na vida humana, que se traduz em uma religiosidade guiada por
padrões rigorosos de comportamento, sustentados por uma vigilância policialesca
da vida comunitária.55
O sociólogo protestante Paul Freston chama a atenção em pequeno artigo,
escrito em 1997, onde analisa o movimento de expansão da Igreja Universal do
Reino de Deus (IURD) em Portugal e na Inglaterra. O autor afirma que está diante
de uma das principais transformações religiosas do final do século XX, a
transformação do pentecostalismo em religião global e a mudança de centro, não
somente numérico, mas também do impulso expansionista internacional, para
regiões distantes dos centros históricos do protestantismo.
O que nos interessa no pequeno artigo são as razões pelas quais a AEP
(Associação Evangélica Portuguesa) nega o pedido de filiação da IURD como
igreja evangélica no país:
53 Cf. FILHO, Declínio do cristianismo tradicional, p. 261. 54 Cf. Ibid. p. 262. 55 Cf. Ibid. p. 263.
140
O parecer de uma comissão da AEP sobre o pedido da IURD, datado de Janeiro de
1993, conclui que o corpo de doutrinas « tem grande proximidade com os
princípios doutrinários da AEP, contudo as idéias-força […] assim como algumas
práticas, colocam a IURD fora do universo tradicional […] das "Igrejas
evangélicas portuguesas" ». Os principais pontos de desvio seriam quatro.
Primeiro, a IURD possui « rígida hierarquia com poderes unipessoais
discricionários ». Em segundo lugar, os líderes são imunes « à apreciação das suas
vidas, com o fundamento de que são pessoas "comandadas" directamente por Deus,
a quem ele fala por sonhos, visões e pela Biblia ». Em terceiro lugar, a IURD usa «
métodos mágico-sacramentais na relação do "humano" com o "divino" e do
"material" com o "espiritual" », como rosas vermelhas para saúde, rosas amarelas
para prosperidade, rosas brancas para questões sentimentais e fotos ungidas com
óleos santos. Em último lugar, ela não dá ênfase às « doutrinas fundamentais do
Evangelho, mas sim à transmissão de "idéias-força" com laivos de conteúdo
evangélico, mas algumas heréticas ». Na lista das idéias heréticas, lemos que :« –
todos os males […] são de origem demoníaca ;– a cura é um direito adquirido
através de Cristo ;– o pastor tem o dom de curar […] independentemente da fé do
doente ;– a libertação completa [da opressão demoníaca] só é conseguida com a
participação na […] igreja ; ninguém foi abençoado em casa ;– o batismo por
imersão é a condição indispensável para todas as bênçãos ;– no batismo o pecado é
sepultado e ele não tem mais domínio sobre o batizado ;– pela participação na
Santa Ceia […] o participante goza a mesma saúde física que Cristo gozava ;[na
Ceia] o pão […] dá total saúde física e o vinho […] dá saúde espiritual ;– todos os
homens são filhos de Deus e alvo de todo o carinho e providência paternal do Pai
(não considera o problema do pecado original) ;– o dinheiro é o sangue da Igreja,
sem o qual nada se fará ;– o dízimo é fundamental para a vida física, espiritual e
financeira do cristão fiel 56
Está ai contido o cerne de uma nova religiosidade e espiritualidade que se tem
infiltrado nas igrejas protestantes no Brasil. Hoje fala-se do neopentecostalismo
não como fenômeno local de determinadas comunidades, mas como fenômeno
epocal. É forte o processo de neopentecostalização do brasil evangélico.
O também sociólogo, pertencente a Assembleia de Deus, Gedeon Alencar,
no seu, interessante livro Protestantismo Tupiniquim, procura traçar um retrato do
protestantismo brasileiro em meados da primeira década do século XXI, e analisa
a contribuição (e não contribuição) evangélica à cultura brasileira. Alencar fala de
um processo de mimetismo denominacional, onde por questões mercadológicas e
culturais, de maneira sincrética, as denominações protestantes começam a
parecerem umas com as outras. “Existia marcos teóricos distintos, estilos
eclesiásticos específicos, posições doutrinárias definidas e até estereótipos
diferentes.”57 Que, aos poucos, não existem mais.
56 FRESTON, Paul Charles. A Igreja Universal do Reino de Deus na Europa. Lusotopie, Paris, v.
1999, n.1, p. 383-404. 57 Cf. ALENCAR, G. F. Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição à
cultura brasileira. 1. ed. São Paulo: Arte Editorial, 2005, 26.
141
Como resposta amorosa, nossos autores, Gesché e Rubio, dialogam, em seus
respectivos trabalhos, fornecendo à reflexão cristã e pastoral uma base sólida e
extremamente rica que deve ser observada para a superação de uma
espiritualidade contra o corpo. E por isto, não cristã. O grande desafio pastoral
cristão é a de propor uma espiritualidade humana, que não caia nos abismos
reducionistas de um espiritualismo alienante, desencarnado, “assassino”, e que
não considera as dimensões ou aspectos constitutivos do humano e da vida
humana.
Não é possível refletir sobre a dimensão da espiritualidade cristã colocando
Cristo, fundamento e paradigma de toda espiritualidade, de fora. Segundo nossos
autores, vemos no Cristo encarnado, a interseção perfeita entre espiritualidade e
corporeidade, integrando, não somente, corpo e espírito/alma na pessoa humana,
mas todos os demais aspectos ou dimensões da vida humana.
A encarnação de Cristo é tão significativa à fé cristã e a vida humana em
todos os seus aspectos, beleza e dificuldades. É na pessoa de Jesus que se vê
claramente a espiritualidade integradora, vivida em resposta ao dom de Deus e na
abertura-diálogo ao todo da vida. Abertura expressa no serviço amoroso aos
outros, e nos demais aspectos da vida. Como disse Rubio, “uma espiritualidade
extremamente rica e capaz de cativar.” 58
Por isto, espiritualidade viva que faz viver e somente pode acontecer diante
do encontro maravilho do ser humano com o Cristo, vivo. É o professor Rubio
chama atenção na introdução do seu livro, Encontro com o Cristo Vivo. Onde
expõe algumas profundas inquietações na evangelização do povo latino americano
e brasileiro. Anunciar o Evangelho não é somente afirmar um pilar dogmático,
sem levar em consideração a vida e todo o seu pulsar. Sua proposta é que tal
mensagem não pode prescindir do encontro mais fundamental: com o Cristo Vivo.
Não somente um encontro com aquilo que se diz dele, mas com a pessoa de Jesus.
Encontro este que não pode deixar de fora quem Cristo é, consequentemente,
quem somos. Pois Cristo é Deus que se faz encontro.
Sem dúvida, fala-se na pessoa de Jesus Cristo e os dogmas cristológicos são
ensinados. Mas, infelizmente, apresenta-se um Cristo distante, perdido num
emaranhado de palavras e de ideias incompreensíveis para a imensa maioria dos
nossos católicos. Trata-se de uma apresentação incapaz de tocar o coração das
58 GARCIA RUBIO, O Humano Integrado, p. 261.
142
pessoas e, portanto, de impulsionar à conversão pessoal e comunitária. Deparamo-
nos, assim, com o Cristo professado na fé, mas separado da vivência cotidiana e
desvinculado da história e de seus desafios.59
Desse modo, uma consequência já salientada no texto, a presença maciça de
um ambiente praticamente continental de injustiça social, que aponta o Brasil
como um dos países mais injustos, não pode conviver pacificamente com o
anúncio do encontro e presença com Jesus Cristo vivo.
Como anunciar a realidade do amor de Deus, manifestado mediante Jesus Cristo,
quando se perpetuam, às vezes em nome desse Deus, situações em que o ser
humano é impedido de tornar-se humano? Na perspectiva da revelação do Deus
bíblico, sabemos que a negação do ser humano constitui sempre a negação do Deus
da vida, do Deus-amor (Ágape).60
Não somente a evangelização incompleta e com graves distorções, vistas
através de um cristianismo falho em seu compromisso ético, especialmente no
âmbito econômico, social e político.61 Mais do que falha, há real e intencional
descompromisso, catapultado por uma compreensão de mundo e vida cristã postas
em lados diametrais opostos, como vimos.
A partir de Cristo, nosso chamado é também para vida, levando em
consideração os dilemas e enfrentamentos no corpo, seremos aperfeiçoados nEle,
seguindo seus passos em vida e na morte. Como Ele é, também o seremos. Isto é
um dos pontos mais fascinantes, pois enxerga um ser humano de verdade que
participa da relação com Deus com seu corpo, suas inquietações, suas pulsões,
seus agravantes. Neste processo de lidar com seus próprios limites e dificuldades
no esforço significativo de desvencilhar-se do que não é útil, vai sendo
transformado na imagem de Cristo, filho de Deus, Senhor nosso. Uma
espiritualidade integrada e dinamizada pela abertura relacional a Deus. Abertura
que é caminho de aperfeiçoamento e transformação humanos que toca todos os
aspectos da vida. É o ser humano que se posta todo diante de Deus, é o ser
humano todo que é chamado a viver a vida como ela é.
59 GARCIA RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas,
1994, p.4. 60 GARCIA RUBIO, O encontro com Jesus Cristo vivo, p.4. 61 Cf. Ibid. p. 5.
143
5.4
Corpo e sexualidade
Em decorrência da necessária valorização da corporeidade humana, como
etapa fundamental a uma visão integral e integrada do ser humano, a questão da
sexualidade, sempre controversa, ocupa lugar importante. A pesada crítica contra
o sentido de sexualidade vivido pela igreja cristã, também gerou espaço para um
novo olhar e diálogo assumido corajosamente pela reflexão teológico-cristã. O
autor Garcia Rubio demonstra aguda preocupação com a devida compreensão da
sexualidade como dimensão que deva integrar o todo do ser humano. Ainda que
Gesché não trabalhe diretamente, nos seus textos analisados, com o tema da
sexualidade, sua concepção de ser humano fundamenta solidamente princípios e
entendimentos para uma vivência da sexualidade no caminho da verdadeira
humanização.
5.4.1 A pesada crítica do sentido de sexualidade na fé cristã
Trazemos aqui a crítica feita pela filósofa Marilena Chauí, em seu livro
Repressão sexual: essa nossa des(conhecida)62, onde dedica parte de sua análise a
perceber como a concepção cristã de sexualidade, fortemente marcada pelo
pecado, contribuiu para os sentidos repressores e interditos sexuais na vivência da
sexualidade ocidental contemporânea.
Passemos a uma síntese de tal crítica:
O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
62 CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa des(conhecida). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1984.
144
O que não tem limite.63
A canção descreve algo que está lá, presente como força avassaladora, que
teimosamente nos “desacata”, nos embriaga, não tem limite, não tem juízo. Para
alguns comentadores, é certo que o contexto para o qual a música foi composta
diz muito. Composição do músico, escritor, dramaturgo brasileiro Francisco
Buarque de Holanda, ou somente Chico Buarque, em 1976, para o filme "Dona
Flor e Seus Dois Maridos", baseado no livro homônimo de Jorge Amado. A
canção tem três versões, que marcam passagens diferentes da trama: "Abertura",
"À Flor da Pele" e "À Flor da Terra". "O que será? (À flor da pele)" saiu no álbum
“Geraes”, de Milton Nascimento.64
Marilena Chauí utiliza pequenos trechos da canção para ilustrar sua fala
sobre repressão sexual. Destaca parte da terceira estrofe, “do que não tem
vergonha, nem nunca terá”, propondo que é curioso que “isso” que falam e
cantam os autores, nunca é nomeado. “Isso”, segundo a autora, pode fornecer uma
pista do que seja repressão sexual, pois como é proposto no dicionário, os termos
“sexual” e “sexualidade” não apresentam qualquer sentido pejorativo, qualquer
dimensão do sexo que não seja de cunho puramente biológico, fisiológico,
anatômico. Contudo, ao juntar-se ao termo repressão - vexar, envergonhar,
esconder, - ganham novos sentidos que indicam atitudes, práticas, operações
psíquicas, sociais e culturais.65
Chauí afirma que repressão sexual tem a ver com interdições, proibições,
punições, permissões, e recompensas na questão da sexualidade que quebram a
simples naturalidade biológico-animal do sexo para uma concepção de existência
como fenômeno cultural ou histórico.66 E neste caminho de construção
sociocultural, a força da influência da mentalidade cristã sobre a realidade
ocidental, gerou uma noção do sexo e da sexualidade como lugar do mal e da
maldade, como coisa feia e vulgar, como algo a ser repelido, barrado, contido,
força de morte, destruidora dos seres humanos.
“nem Dez mandamentos vão conciliar...que nem todos os santos, será que será?”
63 HOLANDA, Chico Buarque. O que será que será? Á flor da pele. 1976 64 HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo : Leya, 2009, p. 146-148. 65 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p. 15. 66 Cf. Ibid.
145
A noção que se fixou na sociedade ocidental foi a do sexo como lugar do
pecado. A religião e a sexo caminham para lados antagônicos, opostos e
excludentes. A religião tem função pedagógica e moderadora, com intuito de
conter a expressão sexual, propondo seres humanos quase assexuados. O sexo
somente será tolerado porque não é possível ser mortificado em definitivo, é
inimigo indomável, “o que não tem limite”.
Para compreender a recusa da sexualidade pelo cristianismo, Chauí visita os
relatos bíblicos da criação nos primeiros e segundo capítulos de Genesis. Na
análise dos textos, conclui que não afirmam nenhuma negatividade ao sexo. O ser
humano foi criado, intencionalmente, homem e mulher, diferenciados pelo corpo.
Diante da constatação propõe a seguinte questão: Se Deus cria seres humanos
sexuados e o prazer sexual é inerente, como entender a condenação do sexo pelo
cristianismo?67
Em sua concepção, a compreensão do que se denominou Pecado Original
carrega esta dificuldade. O Pecado Original possui duas faces: o deixar-se seduzir
(tentação) pela promessa de bens maiores dos que os já disponíveis; e a
transgressão do interdito do conhecimento do bem e do mal. Seus efeitos:
primeiro, a descoberta da nudez e o sentimento de vergonha, de um lado e o medo
do castigo, de outro; e o segundo, a perda do Paraíso.68
Perder o Paraíso é afastar-se de Deus, foi esta a consequência da queda. É
tornar-se mortal, conhecer a dor, a carência, a morte. O Pecado Original descobre
a essência humana, cria seres finitos. A queda é finitude. É a tendência para a
morte de tudo que um dia experimentou vida. O Pecado Original revela ao
humano sua corporeidade, e ter corpo é ser finito, ser limitado, ser tendente à
morte. Nascer significa não ser eterno, ter começo e fim. E a descoberta do sexo,
pela vergonha e nudez é seu ponto maior de revelação. Por causa da queda, o sexo
tornou-se mal. E tornou-se mal porque, nas palavras de Chauí “é a perpetuação da
finitude”. Por causa do sexo, o ser humano traz à vida outros seres tendentes ao
mal e à morte. São estes os sentidos pelos quais compreende que o sexo será
sempre visto como uma marca da queda, sempre presente no cotidiano das
gentes.69
67 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p.85-86. 68 Cf. Ibid. 86. 69 Cf. Ibid. p. 87.
146
A vinculação do sexo com a morte e, consequentemente, do sexo com a procriação,
faz com que na religião cristã, a sexualidade se restrinja à função reprodutora.
Embora o sexo esteja essencialmente atado ao pecado, todas as atividades sexuais
que não tenham finalidade procriadora são consideradas ainda mais pecaminosas,
colocadas sob a categoria da concupiscência e da luxúria e como pecados mortais.
Além disso, como o sexo é função vital de um ser decaído, quanto menor a
necessidade sexual sentida, tanto menos decaído alguém se torna, purificando-se
cada vez mais. Donde toda uma pedagogia cristã que incentiva e estimula a prática
da continência (moderação) e da abstinência (supressão) sexuais, graças a
disciplinas corporais e espirituais, de tal modo que a elevação espiritual traz como
consequência o abaixamento da intensidade do desejo e, conforme a mesma
mecânica, a elevação da intensidade do desejo sexual traz o abaixamento
espiritual.70
A identificação entre sexo e morte, segundo Chauí sempre percorreu a
trajetória histórica da reflexão cristã e de seitas religiosas sob a mesma influência.
O advento da volta de Cristo, aguardada por muitos, sempre justificou grande
afastamento das relações sexuais, sobretudo com fins de procriação. Julgavam
desnecessária a perpetuação da espécie, assim inúmeras seitas proibiam o sexo.
Ideia que sempre atingem certo clímax diante da proximidade de término de
milênio, tanto do primeiro, quanto do segundo milênio da Era Cristã.71
Como medida à incontinência sexual, remédios eficazes foram prescritos: a
virgindade, o casamento, o trabalho. A virgindade como valor altíssimo, um dos
remédios mais eficazes contra as paixões e perpetuação da morte, será plenamente
afirmada. Chauí demonstra em um texto de São Gregório de Niza:
...quando a morte, depois de haver reinado desde Adão até Maria Virgem, nela
encontrando uma barreira intransponível, também dela se aproximou, batendo num
rochedo, quebrou-se. Assim também em toda alma que ultrapassa a vida carnal
pela virgindade, o poder da morte se quebra e se dissolve, por não saber onde
enfiar o seu dardo.72
Com referências claras a relação direta entre a morte e o sexo, como por
exemplo, na imagem do dardo. Nas representações da antiguidade o Amor (Eros)
é figura representada pelo Cupido, que tem nas mãos um arco e um dardo pronto a
ser disparado, com um alforje às costas cheio de outros dardos. Também em
inúmeras pinturas, o amor é representado com uma venda nos olhos, disparando
70 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p. 87. 71 Cf. Ibid. p. 88. 72 Ibid.
147
dardos sem ver. Chauí seguindo consideração de estudiosos da iconografia antiga
compreende que tal venda não se refere somente ao amor sendo cego, mas a figura
da morte, como sendo relacionada ao amor.73
E porque então a virgindade continua tão difícil de perpetuar-se como opção
natural a quem deseja livrar-se da força e poder da morte? Porque a virgindade
não é resposta natural da vontade humana. Somente é obtida por força férrea e
disciplina da vontade, pois como filhos de Adão e Eva, somos seres sexuados e
negar isto no corpo é penoso demais. Somos corpos desejantes e almas
enfraquecidas. Somente quando a virgindade vem como uma graça de Deus ao ser
humano, como o foi em Maria, vem com brandura. Do contrário é uma dura
conquista, responde Chauí.74
No pensamento de Gregório de Niza, Tertuliano e Graciano, o pecado
original, que trouxe morte ao corpo humano, só pode encontrar duas soluções: ou
ser alimentado pelas relações carnais, isto é, relações sexuais de toda ordem, e
tornar-se morte interminável, inflamando a pessoa e alastrando seu fogo (outra
figura para o amor, como em Cantares de Salomão), sobre outros. Mas com isto,
também tendente extinguir-se uma vez que consuma tudo que tem para queimar,
como faz a labareda; ou ser extinguido, barrado, pelo interdito do corpo, no caso a
virgindade, como solução a romper com o ciclo de morte que se instalou. Segundo
Cahuí, este será o sentido cristão de mortificação da carne.75
Em segundo, o matrimônio também será visto como remédio à
incontinência sexual. Menos eficaz e nobre que o celibato, contudo, preferível a
uma vida entregue a pujança destruidora do sexo: fornicação, adultério,
masturbação, homossexualismo, prostituição, etc. Para Chauí, compreensão
advinda do pensamento do Apóstolo Paulo, sobretudo em sua primeira carta aos
Coríntios: “Penso que é bom para o homem que não toque em mulher. Entretanto,
para evitar a impudícia, que cada um tenha a sua mulher, e cada mulher tenha seu
marido. Que o marido de à sua mulher o que lhe deve e que a mulher aja da
mesma maneira com relação ao marido.”(I Co 7, 1-3). Ainda que a autora
reconheça o inovador lugar da mulher nesta afirmação, como alguém equiparada
ao marido, em situação de igualdade, pesa sobre a mulher o estigma de ser
73 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p.88. 74 Cf. Ibid. p. 89. 75 Cf. Ibid. p. 90.
148
culpada do pecado original. Mais sensual e sexuada que o marido, mais fraca e
sujeita às tentações, tem no casamento um freio, um remédio. Assim, a
sacramentação do casamento é um remédio contra o pecado original e um controle
contra as mulheres.76
Segundo Chaui, teólogos recorrendo à Epístola aos Efésios de São Paulo, à
Santo Ambrósio e a Santo Agostinho, estabelecem:
1) não deve haver prazer na relação conjugal, e para tanto o marido deve limitar-se
a penetração na esposa, sem tocá-la em qualquer outra parte, o mesmo devendo
fazer a mulher; 2) o marido deve domar e submeter a esposa que a ele deve total
obediência, pois a “ordem natural é que a mulher sirva ao homem”; como
consequência, no leito conjugal, a esposa deve ser passiva, jamais ficando em
posições “contrárias à natureza”, isto é, sobre o homem; (...) 3) como o Genesis
afirma que foi ao criar o homem, e não a mulher, que o Senhor decidiu fazê-lo à
sua imagem e semelhança, a mulher deve estar sempre coberta, fora e no leito
conjugal, porque seu corpo não manifesta, nem a imagem, nem a glória de Deus;77
Chaui apresenta um terceiro remédio contra o pecado original, o trabalho
como meio de submissão do corpo, seu adestramento. Isto é visto na
espiritualidade protestante reformada, como abordado no primeiro capítulo de
desta pesquisa. Aqui afirma-se o trabalho como força impedidora do concurso
sexual livre e sem amarras.
Como afirma Aranha e Martins, o trabalho, neste caso é visto como
principio de adestramento do corpo que deve ser submetido a uma disciplina cada
vez mais ferrenha e forçada, como as longas jornadas de trabalho, fazendo com
que o trabalho não seja somente um freio para o sexo, mas “que promova um
processo de dessexualização e deserotização do corpo.”78
O percurso que Chauí propõe é importante porque refaz o caminho de toda
crítica que recaiu sobre o cristianismo e sua influência na sociedade, atribuindo a
este o principal interdito em relação à sexualidade.
Neste ponto, são oportunas as conclusões a que chegou o importante
filósofo e pensador francês Michel Foucault (1926-1984). Para Foucault a questão
da repressão é quase que inerente à vivência sexual nas relações sociais. “...Dizer
que o sexo não é reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder, a relação
76 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p. 91. 77 Ibid. p. 98. 78 ARANHA, Maria Lúcia de A.; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a
Filosofia, 2003. p. 275
149
não é de repressão, corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril.”79Contudo, é
interessante a afirmação que faz, fundamentado nas conclusões de Paul Veyne,
historiador da antiguidade romana que desenvolveu uma série de estudos sobre a
sexualidade no mundo romano antes do cristianismo. Este afirma que já existia
uma moral sexual, em geral de origem estoica, baseada em estruturas sociais
ideológicas do Império Romano.80
Em geral atribui-se diretamente ao cristianismo as seguintes características:
a regra da monogamia; em segundo, a função da sexualidade, não somente a
principal, mas única e exclusiva, a da procriação; e a forte desqualificação do
prazer sexual. “O prazer sexual é um mal – mal que precisa ser evitado e ao qual,
consequentemente, é preciso atribuir a menor importância possível. (...) essas três
características definiram o cristianismo.”81
Segundo Foucault, os trabalhos de Paul Veyne mostram que tais princípios
já existiam no mundo romano, antes do surgimento do cristianismo. Casar-se e
respeitar sua mulher, fazer amor com ela para ter filhos, libertar-se das tiranias do
desejo sexual já existiam como modos de vida na sociedade romana.
O cristianismo não é, portanto, responsável por toda série de proibições, de
desqualificações, de limitações da sexualidade frequentemente atribuídas a ele. A
poligamia, o prazer fora do casamento, a valorização do prazer, a indiferença em
relação aos filhos já havia desaparecido, no essencial, no mundo romano antes do
cristianismo, e somente havia uma pequena elite, uma pequena camada, uma
pequena casta social de privilegiados, de pessoas ricas – ricas, portanto livres – que
não praticavam esses princípios, mas basicamente eles já estavam incorporados.82
Mas isto significa que o cristianismo não desempenhou papel na história da
sexualidade? Ao contrário, desempenhou importante papel, mas o que trouxe
foram novas técnicas de repressão e controle dessa moral sexual. O Cristianismo
traz com seus dogmas a ideia de pastorado, ou seja, a existência de uma categoria
de indivíduos singulares que desempenhavam, na sociedade, o papel de
condutores, guiando outros indivíduos ao longo de sua vida e regulando o que
poderia ser feito ou não. Este é o poder exercido pela religião.83
79 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988, p. 13 80 Cf. FOUCAULT, Michel. Sexualidade e Poder. In: Ética, Sexualidade, Política: Coleção Ditos
& Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 [1978], p. 64. 81 Ibid. p. 64. 82 Cf. FOUCAULT, Michel. Sexualidade e Poder , p. 64. 83 Cf. Ibid. p. 65.
150
Ainda que refaça o percurso pelo qual passa a repressão sexual, Foucault
admite que a mensagem cristã atrelou-se muito fortemente a ideia da sexualidade
como má:
...o esgotamento progressivo do organismo, a morte do indivíduo, a destruição de
sua raça e, finalmente, o dano causado a toda humanidade, foram, regularmente, ao
longo de toda literatura loquaz, prometidos para aqueles que abusassem de seu
sexo. Esses medos induzidos parecem ter constituído a herança “naturalista” e
“científica”, no pensamento médico do Século XIX, de uma tradição cristã que
colocava o prazer no campo da morte e do mal.84
Mas não como completamente isolada daquilo que já existia no ambiente
social antes do advento do cristianismo. A filosofia moral da antiguidade já
guardava determinados preceitos, que foram abraçados e editados pelo
cristianismo emergente.85
Evidentemente, pela síntese apresentada, recaí sobre a fé cristã, ainda assim
grande negatividade em relação ao sexo e sexualidade. A perspectiva desta
pesquisa não é negá-la, mas compreender como a emergência da importância do
corpo, como lugar para pensar o ser humano provocou no cristianismo um
repensar maduro e corajoso sobre tais questões. Surge uma nova perspectiva,
positiva e iluminadora de um projeto real para o ser humano, sendo corpo
sexuado.
5.4.2 Da fixação genitalizada à beleza da sexualidade humana
No terceiro capítulo da pesquisa, já foram destacados aspectos fundamentais
sobre a maneira como o ser humano se autocompreende em sua sexualidade. Foi
também visto, resumidamente, como as Escrituras, iluminadas por este novo
olhar, afirmam o alto valor e dignidade da sexualidade humana. Neste capítulo
conclusivo, pretende-se sinalizar considerações que se somam àquelas.
A questão da sexualidade sempre foi problemática na vivência das
comunidades cristãs. Por um lado o esforço teológico procura ressaltar que a
sexualidade é dimensão de profunda beleza e riqueza humana, ofertada pelo Deus,
84 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1984, p.19 85 Cf. Ibid. p. 17-19.
151
criador e salvador. Isto sem descuidar de seu aspecto ambíguo e enigmático.86 Por
outro lado, o medo do corpo sempre esteve presente no ambiente eclesial cristão.
O que pode o corpo? O que não pode? Podemos falar sobre oração, adoração,
sobre a Palavra, mas sexualidade sempre foi assunto velado, vigiado, conflituoso e
abrasador. Assunto perigoso. Durante séculos a abordagem da igreja foi
inexistente ou inapropriada, preconceituosa, e opressora.
Garcia Rubio afirmará que o medo do corpo está centrado, sobretudo, no
domínio da sexualidade.87O caminho que leva à maturidade, precisa ver superado
o medo do corpo e a sua consequente desvalorização. Porque o medo gera
encobrimentos, rejeições e violência, que por sua vez, geram desumanização e
atrofia afetiva. O ser humano é seu corpo, e a dimensão da sexualidade é parte
inerente do que ele é. Negá-la, escondê-la, puni-la sempre representará perda do
ser.
Alinhado a esta compreensão, o professor Antonio Moser também afirma
que a sexualidade como componente indissociável da história de cada pessoa e da
humanidade, sempre fascinou, ao mesmo tempo em que sempre atemorizou. O
fascínio se deve a intuição de que a sexualidade é caminho para a felicidade,
através do amor, e sua plena realização. O temor aponta para outra constatação, a
de que a sexualidade pode estar na origem de conflitos mortais, tanto na existência
da pessoa, quando nos encontros e desencontros da sociedade.88
Como afirma Rubio: “Essa visão pejorativa da sexualidade, marcada pela
negatividade do pecado...” redundou em um afastamento, negação, repressão,
suspeita desta dimensão tão vital à vida, em todas as suas esferas. Dimensão
básica do ser humano. Contudo, não se pode negar, a despeito de toda beleza da
sexualidade também existe forte elemento de ambiguidade no ser humano.89
Na igreja, justificava-se o sexo, com muitas ressalvas, somente visando à
procriação, uma visão estritamente biológico-genital do sexo. Um sentido quase
mecanicista. Deu-se ai um reducionismo antropológico que não ficou restrito
86 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Sou feliz sozinho? A importância do outro em minha vida. In:
GARCIA RUBIO, Alfonso; AMADO, Joel Portella (orgs.). Espiritualidade cristã em tempos de
mudança. Contribuições teológico-pastorais, Petrópolis, Vozes, 2009, p. 87. 87 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Evangelização e maturidade afetiva. São Paulo: Paulinas, 2006,
p. 102. 88 Cf. MOSER, Antonio. Corpo e sexualidade: do biológico ao virtual. In: SOCIEDADE DE
TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. Corporeidade e teologia. São Paulo: Paulinas, 2004,
p. 143. 89 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 464.
152
somente às comunidades cristãs, mas foi derramado na vida em sociedade
também. Já que a visão dualista antropológica que dá origem a tais distorções
afeta a autocompreensão do ser humano em todos os âmbitos.90
É um erro tal estreitamento. O mesmo esforço que se faz de não reduzir o
ser humano ao corpo, visão que praticamente transforma o corpo em um objeto,
precisa existir em relação à sexualidade. É preciso passar de uma concepção do
sexo genitalizado a uma concepção de sexualidade, que é energia que abarca a
realidade humana. Energia que emerge em meio às contradições que caracterizam
a complexidade do viver humano. Muito tem sido afirmado a respeito desta
mudança da fixação genital para a exuberância da sexualidade, que abarca o ser
humano todo, em sua relação com o outro e a vida.91
Professor Garcia elucida que insere o tema da sexualidade com o devido
destaque em uma obra teológica para chamar a atenção para a absoluta
importância que esta temática tem para a teologia e a vida humana. Apesar de
tarefa não simples, e perpassada por problemática muito complexa. Estabelece,
com isso, importante lugar de diálogo com a contemporaneidade. Pois o esforço
de abordar teologicamente a questão da sexualidade não pode prescindir dos
diversos avanços nas pesquisas científicas sobre a sexualidade humana. Biologia
humana, etnologia, psicologia, psicanálise, antropologia cultural, sociologia, etc.92
Enfrentar os ditames da sociedade, em relação à sexualidade,
fundamentando-a com a compreensão bíblico-teológica é uma postura que
demanda coragem e discernimento. Pois, na sociedade atual, o corpo ocupa
importante lugar, preocupação de tantas agendas e sob tantos olhares. Veiculado
às reivindicações pelo direito ao próprio corpo e o próprio prazer, bandeira de
diferentes movimentos como hippie, gay, feminista. Como afirma Matos, o corpo
como plataforma da revolução sexual, nos últimos 60 anos passou de corpo
ocultado para o corpo como locus da sensitividade, sensibilidade e expressão.93
Como visto no primeiro capítulo, na sociedade pós-moderna, diversos temas
e preocupações emergem deste cenário: sexo como sendo a força motriz de uma
sociedade de consumo, o ser humano tornado objeto; novos arranjos sexuais,
90 Cf. RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 460-463. 91 Cf. Ibid. p. 463. 92 Cf. Ibid. p. 459-491. 93 MATOS, Maria Izilda. Corpo e a história: ocultar, expor e analisar. In: SOCIEDADE DE
TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. Corporeidade e teologia. São Paulo: Paulinas, 2004,
p. 65-66.
153
enfrentam-se as questões de gênero, a questão da homossexualidade, sexualidade
na idade madura, as relações de poder entre homens e mulheres; são questões,
dentre tantas, que convidam a igreja para o diálogo sincero e amoroso, diante de
uma sociedade aturdida por tantas vozes.
No pensamento do professor Garcia, uma das primeiras necessidades é de se
admitir a dificuldade que se impôs no esforço teológico, para uma, mais ampla e
integral, compreensão da sexualidade. Não se pode cobrar dos antepassados um
conhecimento que não podiam ter. Daí justifica-se que tardiamente a teologia
tenha lançado olhar renovado sobre a sexualidade. O diálogo com as ciências e o
mundo da modernidade, tem papel importante para tal posicionamento.94
Hoje, compreende-se que os problemas em relação ao corpo, sobretudo no
ambiente religioso, não tem a ver com a sexualidade em si, mas com uma
determinada visão que se criou dela. O medo do corpo advém do medo de uma
sexualidade mal compreendida, e tratada debaixo de uma visão pejorativa desta e
do ser humano.95
Tal mudança não poupa a igreja de enfrentamentos e tensões constantes,
pois, no diálogo com as ciências, o desafio da humanização da sexualidade é
menos óbvio e difícil.
Se fosse somente pelo condicionamento cultural devido ao influxo do racionalismo
dualista, entretanto, até que não seria tão difícil enfrentar o desafio da humanização
da sexualidade. O problema é bem mais profundo. Com efeito, os estudos
realizados pelas diversas ciências humanas sobre a sexualidade ressaltam sua
radical ambiguidade. Esses estudos sublinham, de maneira especial, o caráter
desconcertante, enigmático, misterioso e ameaçador da sexualidade. Não é de
estranhar que, desde sempre, os grupos humanos e as sociedades tenham procurado
controlar e ditar normas para o exercício da sexualidade. Dado que nos seres
humanos o instinto sexual não é regulado naturalmente, como nos animais,
podendo surgir com facilidade, a rivalidade, explodindo a violência.96
A Fé cristã não se furta a uma resposta. E a visão de sexualidade que será
afirmada pressupõe uma determinada visão do ser humano. Perspectiva tão
fundamental para a fé cristã é a revelação do Deus de amor e do ser humano como
sujeito aberto a alteridade.97
94 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 103. 95 Cf. Ibid. 96 Ibid. p. 104. 97 Cf. Ibid. p. 105.
154
Nesta perspectiva, a sexualidade é humanizante. Quando duas pessoas
aceitam o próprio limite, e assumem realmente que o outro é distinto, rejeitando
todo tipo de violência. Por outro lado, uma vivência desumanizante da
sexualidade se dá quando não se aceita o próprio limite, se rejeita a diferença que
a outra pessoa possui e se pratica a violência. Neste caso temos uma subjetividade
fechada desenvolvendo relações de dominação e coisificação do outro.98
Nesta direção, a fé cristã persiste por afirmar a beleza da criação e a
consequente beleza da sexualidade humana. O corpo humano, lugar da
diferenciação homem-mulher, lugar de relação. Lugar de abertura e de uma
interioridade embebida em afetividade, e não de exterioridade vazia. A
sexualidade humana é muito mais do que encontro genital e aparelhos
reprodutores. O corpo humano, apesar do pecado e queda, não é mais visto por
tais lentes. Mas positivamente, pela beleza e expressividade da sexualidade,
verdadeira marca com que foi criado.
O sexo é a relação de máxima intimidade entre duas pessoas. A relação
sexual é uma experiência que não pode ser dissociada da vida como um todo – é e
deve ser uma relação integral. Não dá, como querem muitos, viver de relação em
relação só com o corpo. Sexo afeta a vida como um todo. Apesar de não ter em si
mesmo um caráter sagrado99, é símbolo da aliança de Deus com seu povo,100 sinal
também da relação nupcial entre Cristo e seu povo.101 Pode se dizer a expressão
sexual tem seu espelho na comunhão da Trindade. Deus Pai, Deus Filho, Deus
Espírito são um e são três. Unem-se em perfeita comunhão e não anulam um ao
outro, não absorvem um ao outro. Tornam-se um em perfeita comunhão.
O desastroso é que a relação sexual dentro de uma sexualidade fechada e
violenta, ao invés de resultar na máxima intimidade, pode resultar no máximo
isolamento. Porque ao invés de produzir uma relação integral pode gerar pessoas
fragmentadas – gente dividida, partida, quebrada, violentada. Ao invés de
reproduzir a imagem de Deus, caminho da maturidade, pode nos desumanizar, nos
fazer mais parecidos com animais.
É a teologia, quem pode, agora, criticar a maneira como a sociedade lida
com a questão da sexualidade. A crítica que recai, atualmente, sobre a vivência
98 Cf. GARCIA RUBIO, Elementos de antropologia teológica, p.210. 99 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 478. 100 Cf. Ibid. p. 480. 101 Cf. Ibid. p. 482
155
humana da sexualidade mostra como, mesmo superando toda dificuldade de uma
visão negativa religiosa em torno da sexualidade, não superamos o verdadeiro
desafio: vencer toda forma de desumanização fundamentada em uma visão mal
orientada da sexualidade. Garcia Rubio afirma que a superação de controles do
tipo religioso que incidiam sobre a sexualidade, não significou libertação e
superação de outros aprisionamentos, pois, agora, outros controles se colocaram
no lugar. Hoje, o comportamento sexual é ditado por uma sexologia vulgarizada,
revestida por “um verniz” científico. Uma nova moral, a moral do prazer, que
pode ser resumida em duas normas:102
a) É necessário dizer tudo em matéria sexual. Nada de ocultamento nem de
reticências. Deve ser utilizada uma linguagem clara e direta para tratar do sexo.
b) O que importa acima de tudo é a consecução do orgasmo. Esta é a principal
exigência na relação sexual. A ternura e o afeto, o envolvimento pessoal
profundo, toda esta riqueza relacional tende a ser substituída pela técnica
sexual a fim de “sair-se bem”, de “gozar” e de “satisfazer” o(a) parceiro(a). É a
mecanização da sexualidade e o império do orgasmo a serviço do
empobrecimento da vivência da sexualidade.103
A título de uma linguagem clara sobre a sexualidade, descamba-se para toda
exploração midiática e pornografia. E a crítica não é moralista, mas tenta
demonstrar como isto significa um grande empobrecimento. A sexualidade
pretensamente trazida às claras e sem enigma, sofre como antes, um pesado
reducionismo à mera funcionalidade biológica. Completamente desvinculada do
relacionamento pessoal, tem no prazer sexual sua mais importante finalidade. O
“império do orgasmo” acaba por gerar um ambiente de profundo egoísmo e
violência, um obstáculo à abertura generosa aos outros nos diversos aspectos da
vida. Segundo Rubio, um povo dominado por uma mentalidade auto-erótica não
encontra energia e capacidade de doação para um compromisso real com a justiça
e a solidariedade. Uma vez que a realidade histórica está paralisada na
manutenção de ambientes de profundo egoísmo.104
Por isto é tão significativo o caminho que os autores, Gesché e Rubio,
percorreram, a partir do corajoso resgate das concepções bíblicas e da reflexão
teológica eclesial. Uma visão positiva, de integralidade do ser humano, a favor da
102 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 111. 103 MAY, Rollo. Eros e repressão, amor e vontade, p.46-48. 104 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 112.
156
vida e da relação, onde o corpo é reafirmado agora, como lugar de encontro.
Lugar de abertura generosa. Lugar da profunda experiência de Deus, lugar de
encontro com o outro e com toda realidade criada. O ser humano como ser de
alteridade.
É o Gesché afirma, o ser humano foi feito para o encontro. Mesmo o
encontro com Deus não faz sumir o ser humano, não o despersonaliza. Pelo
contrário, o torna aquilo que deveria de fato ser. Gesché afirma que ter
necessidade do outro é algo inerente ao humano. Pois o ser humano tem desejo do
outro para sentir-se confirmado. O ser humano não foi feito para a solidão, pelo
contrário, a ausência e separação é que lhe trará morte. O ser humano é ser de
alteridade. Não é Narciso procurando unicamente admirar-se (pode-se falar aqui
de autoerotismo), mas alguém que se vê no outro, no outro se percebe. E para isto
é preciso a alteridade do segundo (do próximo) e a alteridade do terceiro (Deus).
Sem referencial torna-se apenas repetição de si mesmo, e por isto mesmo, perde a
si mesmo, de vista e entendimento. Como diz Gesché, torna-se inidentificável. 105
Isto é, sem o outro, o ser humano também não se identificará a si mesmo. O
que termina por perder é a própria humanidade. Por isto é tão fundamental o
encontro ser vivido como “sair de si em busca de outrem”, e não como “invadir o
outro para conquistar, suplantar” a afirmação do mais forte sobre o mais fraco.
Todo encontro precisa ser espaço para o oferecimento de si mesmo, e a aceitação
do que se é oferecido. E a sexualidade humana precisa ser vivida nesta relação de
troca generosa e gratuita. Tudo é tomado, arrancado, roubado, manipulado, não
leva em conta o outro enquanto pessoa, e sim, como uma coisa a ser usada para
satisfação do primeiro. Não se deu verdadeiro encontro e sim repetição de si
mesmo, como afirmou Gesché.
A relação sexual se faz pelo encontro. Deixar alguém chegar tão perto, e tão
próximo, convidá-lo a entrar, em si, não é somente contato genital, é relação
íntima que vai além da corporeidade, é penetração mútua entre os seres inteiros.
Sem que ninguém roube o viole ninguém, tudo deve ser oferecido,
generosamente, amorosamente.
É que para Gesché, no fundo o ser humano é um ser visitado. Ser que
recebe. Ser de acolhida. É certo que é um ser de liberdade, autonomia, tem
105 Cf. GESCHÉ, Adolphé. O ser humano. São Paulo: Paulinas, 2003, p.115.
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consciência de si mesmo. Porém é também um ser que recebe. Ser de recepção, do
outro, e da vida.
É que o ser humano, no fundo, é um ser visitado. Certamente ele é liberdade,
autonomia, consciência de si mesmo, o Cogito de Descartes não é falso, ao mostrar
no ser humano um Sujeito que se anuncia a partir de si mesmo. Esse ser humano,
porém, é também um ser que recebe. Ao falar dele como um ser visitado – e isso
no nível de uma simples antropologia profana – eu não deixo de pensar no mistério
da visitação. (...) Receber, ser visitado, não apontam para um antropologia nem
para uma teologia que ameaçam o sujeito.106
Como discorre Gesché, cada um de nós é um ser humano. E é muito
admirável que o termo escolhido para designar o mais elevado de nossa filosofia,
o “ser”, é um verbo passivo. Uma receptividade que nos constrói, nos constitui e
nos enriquece. Descrito na belíssima expressão de Gesché: “É aí que o outro
encontra em nós lugar inalienável”.107
É desta forma que Gesché enxerga a relação do ser humano com o Deus
doador. Se Deus doa de si, o verdadeiro dom não nos rebaixa. Foi-nos dado
somente para que sejamos nós mesmos. Deus é o nosso “lugar inalienável” e sem
o que Ele é para nós, não somos o que deveríamos ser. Estabelece-se, então, um
ciclo amoroso de vida, pois o verdadeiro dom nos impele a também nos tornarmos
doadores. O verdadeiro dom quebra o ciclo fechado e mecânico de chantagens,
trocas interesseiras, dependência e alienação.108 É na partilha que a vida se dá e o
humano se faz presença. Nada pode ser tomado, roubado, violentamente
adquirido, mas somente ser oferecido e recebido, o que nos impulsiona a uma
existência que abandone o egoísmo, fechada e receosa do outro.
Toda vida de Cristo foi encontro verdadeiro: oferecimento e receptividade.
É marcadamente significativo que os últimos gestos de Cristo sejam perpetuados
como modelos a iluminar toda a vivência humana, bem como a ação missional da
Igreja. A partilha e oferecimento do pão e vinho na ceia; o lavar os pés dos
discípulos; e o seu derradeiro e maior oferecimento, na cruz (Jo 13:1-16; 19, 17-
19), são marcos que reconfiguram absolutamente toda a base das relações
humanas, e não se restringem a vivência personalista da vida, nem da sexualidade,
mas irradia-se nas dimensões sociais, culturais, econômicas, etc.
106 GESCHÉ, O ser humano, p. 116. 107 Cf. Ibid. 108 Cf. Ibid. p. 117.
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Garcia Rubio nos afirma que é grave a vivência da sexualidade em uma
subjetividade fechada em si mesma, negadora do outro, que resulta em uma
relação de poder que violenta, que desumaniza. Mais uma vez nos apresenta a
lucidez do pensamento de Enrique Dussel, que é quem analisa a complexa
problemática que resumidamente apresentamos. Sobretudo na América Latina, a
sexualidade foi pesadamente influenciada pela tradição colonial e neocolonial do
homem branco conquistador, que se afirma de maneira violenta sobre uma
população, que se torna dependente e conquistada. Na relação erótica homem-
mulher, é o homem, o “eu conquistador” de povos e terras, mas também da
mulher da terra, índias, mestiças, negras, mulatas, a mulheres-objeto da volúpia e
da vontade de poder e de prazer do homem.109 Segundo Dussel, a mulher latino-
americana sofre uma dupla dominação: dominada por ser latino-americana,
dominação por ser mulher.
No processo da conquista da América, o europeu não só dominou o índio, mas
também violou a índia. Cortés se juntou Malinche, uma índia, mãe do mestiço. O
ego cogito funda ontologicamente o “eu conquisto” e o ego fálico, duas dimensões
de dominação do homem sobre o homem, mas agora de uma nação sobre a outra,
de uma classe sobre a outra. A sexualidade é assim uma dominação política,
econômica e cultural.110
Este sujeito conquistador, precursor do “eu moderno”, é o sujeito dominador
da relação erótica. Daí a vivência da sexualidade só poderá ser marcada pela
relação opressor-oprimido.
O ser humano como subjetividade fechada em si mesma, negadora do outro
precisamente enquanto diferente, marcada a relação homem-mulher pela
prepotência machista, é claro que o resultado só poderia ser a “conquista” da
mulher, objetivada como instrumento da voluptuosidade do homem.111
Segundo Garcia Rubio, tal dificuldade não é somente de foro individual, há
uma forte dimensão política na sexualidade que se instala. Já que oriunda de uma
concepção de homem e de mulher que perpassa toda a cultura e que atinge, não
somente as relações que se dão na intimidade, mas na maneira como se
compreende o ser humano, homem-mulher, em todos os âmbitos. A exploração
109 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 478. 110 DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. México: Editorial Edicon,
1977, p. 89. 111 GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 470.
159
comercial que coisifica a figura feminina é prova disto. As consequências
abarcam todas as dimensões da vida em sociedade. 112
É na compreensão destas dificuldades que o professor Garcia se propõe a
pensar a questão da libertação sexual tão propalada pela sociedade. É libertação de
fato o que tem sido vivenciado pela sociedade ocidental capitalista e imperialista?
Até que ponto ela está a serviço da personalização de cada ser humano e da
sociedade?113
É certo que se buscou um caminho de superação de antigos tabus, mas a
solução a resposta não redundou em real e integral libertação. Pois educar,
integrar humanamente a sexualidade, e vivê-la a serviço do encontro pessoal, foi
vista como nova repressão. Então, de fato, nenhuma mudança fundamental se fez.
O sexo, como antes nas chamadas épocas “obscurantistas”, é vivenciado sem a
conexão do relacionamento pessoal, onde a pessoa é vista como objeto do prazer
egoísta de alguém. O prazer sexual reduzido a mero divertimento inconsequente.
O auto-erotismo é o que enforma a compreensão da sexualidade tanto do
indivíduo quanto da sociedade. O sexo comercializado, consumido como
mercadoria rentabilíssima na sociedade de consumo. Gerando graves
consequências, tais como: a “erotização” da propaganda comercial violentando
psiquicamente as pessoas, e realizando graves manipulações; inibição das energias
do ser humano para uma nova disposição do compromisso sério em favor de uma
convivência social; a coisificação do sexo produzindo tédio e um ciclo vicioso de
mais consumo, onde fragilizam-se cada vez mais os vínculos, em busca de
overdoses de prazer, caminho tendente a perversões sexuais.114
Não! Não é libertação, a vivência da sexualidade baseada em um auto-
erotismo machista que coisifica a mulher como mero instrumento de prazer. Do
ponto de vista ético, é iníquo e profundamente injusto. Mas também, da mesma
forma, um auto-erotismo feminista na medida em que coisifica o parceiro. Sempre
que fechada em si mesmo, a sexualidade resultará em relação que coisifica o
outro, profana sua dignidade pessoal, com resultados devastadores a toda vivência
humana.115
112 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 470. 113 Cf. Ibid. p. 472. 114 Cf. Ibid. 115 Cf. Ibid.
160
Em boa hora deve ser superada a desvalorização da sexualidade, o moralismo
superficial, a separação brutal entre o sexo reduzido a mera genitalidade, e o
carinho, o afeto e a ternura. Não para fazer da sexualidade uma finalidade em si
mesma, separada do projeto de vida pessoal, mas para torna-la uma vivência
privilegiada, da experiência da alteridade.116
A igreja está a serviço de um processo de libertação que seja integral no ser
humano. A verdadeira libertação sexual se dará sempre na abertura-serviço à
corporeidade sexuada-pessoal do outro,117 que não descuida dos fatores sociais
que perpetuam situações de dominação e violência contra o humano. Caminho
que encontra na revelação bíblico-cristã seu verdadeiro fundamento, pois, o ser
humano criado, pelo Deus criador e salvador, precisa viver, na realidade histórica,
a beleza e também os dilemas e dificuldades de uma sexualidade integral e
integrado com o todo da vida. Por isto, aceitar o dom de Cristo, como aquele que
viveu no corpo sexuado a verdadeira alteridade, na abertura do amor-serviço ao
outro, e na recíproca aceitação ao dom de Deus, é caminho necessário a este novo
lugar da sexualidade humana.
5.5
Síntese conclusiva: Cristianismo para pensar o corpo
Como já afirmado no primeiro capítulo da pesquisa, o corpo pode ser um
dos poucos lugares onde existe espaço para falar ao homem contemporâneo. Isto
porque há uma necessidade ainda fortemente presente de uma visão do ser
humano que consiga integrar aspectos da vida, e que supere violências e posturas
tão desumanas como as que convivemos. Ainda que pesada crítica tenha sido
desferida contra a fé cristã, como formadora da moralidade ocidental, acusada de
ocultar o corpo, e perder de vista o ser humano concreto, nos dilemas de sua
realidade social. Também, na sociedade contemporânea não se deu grande avanço,
já que o corpo, agora, idolatrado, contribuiu para uma compreensão sempre
reducionista do ser humano, visto agora como objeto, mercadorizado, fechado em
si mesmo, motivado egoisticamente.
116 GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 113. 117 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 471.
161
Na perspectiva pastoral aqui apresentada, os autores, Garcia Rubio e
Gesché, nos mostram que toda devida valorização do corpo somente pode ser real
se afirmada e fundamentada dentro de uma visão integrada do ser humano,
corporeidade e espiritualidade, aberto a relação com outros, e a relação com Deus.
Foram trazidas aqui perspectivas fundamentais da vida humana que precisam ser
revistas e valorizadas como caminho à humanização integral. O desafio do
equilíbrio e valorização do corpo, que precisa ser visto numa dinâmica que leve
em consideração que o ser humano não é somente corpo, é espírito também.
Preocupação devidamente confirmada pelo corajoso posicionamento da Igreja
Católica, na constituição pastoral Gaudium et Spes, que ecumenicamente lança
novas luzes a uma evangelização que não divorcie a vivência da fé cristã aos
desafios sociais. Por isto, olhamos para a questão da espiritualidade cristã como
perspectiva de vida integrada e que integre as dimensões da vida. Nesta
perspectiva foi encarada a questão da sexualidade humana.